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Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui

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