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Que bobagem, Pasternak! Livro erra sobre psicanálise em 9 pontos – Parte 2

Texto originalmente publicado na coluna do psicanalista Christian Dunker no blog da Uol Tilt

Na coluna anterior discutimos a função e a importância da divulgação científica no Brasil, necessidade que se tornou ainda mais patente depois da maneira como enfrentamos a crise mundial de covid-19, bem como a facilidade que estamos apresentando, em termos comparativos, para lidar com fake news e demais manipulações acríticas de informação, saber e conhecimento.

Por isso a divulgação científica deveria, sobretudo, seguir as regras da própria prática da ciência, pois desta maneira não apenas se fala sobre o que é ciência, mas se mostra, em escala reduzida e adaptada, como procede um cientista.

Ou seja, como ele levanta perguntas, trata de reunir evidências, como ela assume compromisso com métodos que tornam o caminho de sua investigação capaz de ser percorrido por outros e, no limite, por qualquer um.

Reconhecer peculiaridades do objeto, cruzar achados de diferentes disciplinas, combinar estilos de demonstração são procedimentos básicos naquilo que anda em rarefação crescente na cultura educacional e no debate público brasileiro: a chamada ciência básica, aquela que ensina ciência transversal, história da ciência e as abordagens elementares sobre os fenômenos da natureza e das humanidades.

Ora, para mostrar como não se deve fazer divulgação cientifica, tomemos como exemplo o livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi (“Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério”, editora Contexto) naquilo que ele toca a psicanálise, para mostrar como vieses e distorções de pensamento podem dificultar a formação do pensamento científico, naquilo que ele tem de mais próximo da filosofia, ou seja, a capacidade de levantar dúvidas e criar hipóteses prescindindo do recurso à autoridade, ao dogmatismo e às crenças constituídas.

Examinemos então afirmações que permitem elucidar tais vieses:

1. Eficácia da psicanálise

A Psicologia científica cobra evidências mais robustas para justificar alegações teóricas quanto a sucessos clínicos”

p. 186

Há centenas de estudos controlados mostrando a eficácia da psicanálise, das Terapias Psicodinâmicas e das Psicoterapias Psicodinâmicas de Longo Prazo, bem como inúmeros estudos neurocientíficos que corroboram a psicanálise.

Há meta-análises que comprovam a eficácia igual ou maior do que as chamadas terapias empiricamente sustentadas.

Evidências de eficácia e eficiência da psicanálise e de suas manualizações como terapia psicodinâmica foram apresentadas.

Dizer que os critérios de confiabilidade dos testes de regularidade estatística reduzem o nível de confiabilidade é uma falácia pois prova que:

A psicanálise apresenta evidências (que são testáveis ao nível da discussão de qual programa de qualificação deve ser usado);
Ela não se recusa a prestar contas ou se justificar cientificamente;


Outras psicoterapias também fracassam quando se eleva os níveis de exigência metodológicos e;


Isso acontece em muitas e na maior parte das pesquisas em medicina, como declara o Instituto Cochrane.


Portanto, estamos aqui diante do viés de parcialidade.

Em vez de trazer o dissenso científico, as hipóteses concorrentes e a controvérsia que move o debate científico, apresenta-se apenas uma versão das evidências, julga-se evidências de forma desigual e gradualmente se infiltra nas afirmações científicas acordos, consensos ou normas criadas para qualificar e hierarquizar a força das evidências.

2. Conhecimento e antiguidade

“Desde os anos 1950 a psicanálise é dada como exemplo de pseudociência”

Nenhum conhecimento é mais verdadeiro ou mais falso pela sua antiguidade.

Os Elementos de Euclides e a Lógica de Aristóteles continuam eficazes para o enfrentamento de inúmeros problemas, ainda que a matemática e a lógica tenham avançado em complexidade e alcance.

O uso de palavras em ciência deve cuidar criteriosamente do fato de que muitas vezes as mesmas palavras possuem um sentido corrente e popular, muito diverso do uso técnico conceitual.

O conceito de pseudociência, proposto por Popper, emerge no contexto do esforço deste autor para demarcar o conhecimento científico daquilo que pode ser considerado, naquele momento, como não científico.

Com o passar do tempo a palavra pseudociência adquiriu um sentido negativo, de impostura, má-fé, que nem sempre está contido no conceito original.

No entanto, a principal característica da pseudociência para Popper é que seus enunciados não são falseáveis, ou seja, eles não podem ser contraditados por experiências empíricas ou examinados por sua consistência lógica.

Ora, um autor como Grünbaum, curiosamente citado pelos autores em questão, mostrou em 1984 que a psicanálise comporta falseamento de proposições. Para este autor existem argumentos circulares (tally arguments) que são problemáticos no interior da psicanálise, e que ela deveria se esforçar por produzir evidências extraclínicas.

De fato, um pesquisador americano chamado Schevrin [1] apresentou uma evidência deste tipo, com a qual Grünbaum consentiu quanto a sua pertinência.

Um divulgador científico não pode desconhecer fatos para apresentar afirmações contundentes.

Juízos desqualificativos devem ser evitados.

3. Casos clínicos de Freud

“Os casos trazidos por Freud estão distorcidos”

p. 189

“Os casos clínicos de Freud são imposturas do início ao fim”

p. 190

Desde os anos 1980 vários pesquisadores em história da psicanálise como Masson, Sulloway, Rozen, Swales e Crews revisitaram os casos clínicos de Freud e, conversando com ex-pacientes, inclusive casos não publicados, trouxeram um retrato de como Freud trabalhava efetivamente.

Vários destes relatos continham contradições com o que Freud dizia que devíamos fazer na condução e tratamentos. Isso tornou os casos clínicos um material pouco rigoroso e impreciso para avaliar a prática psicanalítica.

Mas seria justo examinar relatos clínicos de cem anos atrás com os mesmos padrões de rigor e fidelidade que exigiríamos hoje?

O trabalho destes autores esteve ligado a uma grande onda de críticas à psicanálise que tomou conta principalmente dos meios de comunicação norte-americanos nos anos 1990.

Curiosamente, não se encontrou nessa devassa nenhum sinal de assédio, intrusão aproveitadora na vida de pacientes ou faltas éticas mais graves.

Casos clínicos devem ser lidos como paradigmas e exemplos, não como generalizações indutivas. Muitos são modelos de fracasso, não de sucesso ou prova de eficiência.

Não é por pesquisas randomizadas com duplo cego e placebo que a psicanálise construiu seu sistema de métodos, técnicas e transmissão de conceitos.

Isso deveria ser levado em conta na apresentação ou no ajuizamento de suas evidências.

4. Religiosidade da psicanálise

“O projeto científico a princípio legítimo [da psicanálise] degenerou em uma forma de religião secular”

p. 185

Não se apresenta nenhuma evidência científica sobre isso. Nenhuma pesquisa mostrando a não eficiência ou a religiosidade da psicanálise.

Mesmo se não existissem evidências, isso não equivale a evidências negativas, ou seja, a prova do que se está a afirmar.

Trata-se de uma opinião que cria um viés de contrariedade.

Isso parece ser a tônica de artigos sobre a psicanálise divulgados em Questão de Ciência com títulos como “Negacionistas que agora defendem a ciência”, “Conspiração do Inconsciente” ou “Ciclo Interminável de Confirmação da Pseudociência”.

O viés de confirmação apresentados por tais textos está abaixo da crítica.

O dogmatismo na exposição está acima do razoável e a ausência de argumentação é patente.

5. Ciências humanas

“[…] Se o método pelo qual a psicanálise foi construída não se sustenta, as humanidades também não se sustentam – incluindo História, Ciência Política, Linguística e Economia também não […] a psicanálise é o homem-bomba no prédio das humanas”

p. 185

Aqui salta aos olhos a mistura de desinformação, preconceito e generalização imprópria.

Há muitos outros métodos em ciências humanas. A psicanálise não é tão central assim e há muitas críticas dentro das ciências humanas à psicanálise.

Em resumo, não se deve criar espantalhos, nem conceituais nem políticos, para imaginar que assim é mais fácil destruí-los.

No debate de ideias é ruim, na divulgação científica é péssimo.

A imagem de um “homem-bomba” sugere que psicanalistas agem como terroristas, indiferentes ao debate científico, incapazes de apresentar razões e justificativas para o que fazem, além de serem nocivos.

O argumento sub-reptício é de que deveríamos eliminar “o homem-bomba” como forma de purificar as “ciências humanas” de sua falta de ciência, rigor e boa-fé.

Ora, a ideia de que as ciências humanas são um problema, quando elas não seguem padrões, normas e procedimentos das ciências ditas “duras” como as exatas, é conhecido como cientificismo, cientismo ou de forma um tanto imprecisa de “positivismo”.

Afinal se a história, a linguística, a sociologia, as ciências políticas, a teoria da literatura, a antropologia devem ser tornadas ilícitas, junto com a psicanálise, é porque elas não estão de acordo com este único pensamento convencional, normativo e coercitivo, como estamos vendo agora, chamado ciência.

Este tipo de juízo pode soar arbitrário para muitas pessoas, e isso nos faria entender por que tantas pessoas desconfiam da ciência e não estão dispostos a ceder a consensos como este.

Nesta medida este tipo de juízo cria um tudo ou nada. Ou estamos com a ciência, assim definida, ou estamos contra ela e somos “terroristas”.

A ideia de que se pode ser crítico, capaz de pensar e usar a razão até mesmo para refletir sobre os limites da ciência, como queria Kant, o inventor moderno da separação entre filosofia e ciência, passa longe neste ponto.

6. Erros conceituais

“A existência do inconsciente tem poder”

p. 188

“A evidência relativa aos fatos deve existir independente da teoria”

p. 189

“O conceito de repressão é problemático porque a memória não é armazenada em um hardware, reconstruções implicam a interferência de outras memórias”

p. 195

“Traumas (PSTD) não são memórias faltantes mas lembranças das quais alguém não consegue se livrar”

p. 196

“Transferência é dependência e submissão infantil ao analista”

p. 196

O inconsciente não é um fato, mas uma hipótese.

Sonhos, sintomas, atos falhos, esquecimentos, chistes são fatos aos quais esta hipótese se aplica.

Sua existência independe da teoria psicanalítica e ele é estudado pela psicologia, pelas neurociências e pela medicina muito antes da psicanálise.

Como Freud argumentou, psicanálise não é sugestão, nem influência. E o hipnotismo foi um método descartado explicitamente por Freud em 1897.

Transferência não é submissão, mas um meio de ajudar o paciente a sair delas.

Quem quer divulgar ciência ou anticiência não pode cometer erros conceituais tão elementares.

7. Biógrafo de Freud

“Crews, biógrafo de Freud, definitivamente não é um ótimo ponto de partida”

p. 188

Mostrei como Crews é um biógrafo tendencioso, isolado e divergente de outros biógrafos de Freud.

Um autor “fora da curva” que usa as 666 páginas de seu trabalho para mostrar que Freud usou cocaína por mais tempo do que ele disse que usou (o que parece correto), mas também que seu “desejo de possuir jovens virgens era incompatível com a conhecimento” e que ele teria abusado da irmã e tido um caso com a cunhada, sem qualquer evidência plausível para tais afirmações.

8. Enumerações

“O mundo é controlado por comunistas, marcianos ou pulsões inconscientes, instâncias confirmatórias e provas cabais”

p. 193

Enumerações como estas dominam o livro, que pretende ser um apanhado de práticas as quais não devemos dar valor, nem levar a sério, porque são “bobagens”.

A técnica de reunir adversários em grupos, para homogeneizar preconceitos e somar intolerâncias, não é de fato um procedimento científico, mas uma estratégia típica das retóricas de consumo ou das polarizações ideológicas.

Aqui, mais uma vez, encontramos exemplos “cabais” de como nossos autores sofrem do mal que pretendem erradicar.

9. Psicanalistas poderosos

“Como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular por um século, entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes?”

p. 193

“Os terapeutas que nos manipulam nas trevas”

p. 195

“Eu sei o que você, ou qualquer outro político, escritor, cineasta, povo ou civilização está pensando, melhor do que você”

p. 197

“A mulher que diz não, na verdade diz sim”

p. 194

“Os únicos pensamentos autênticos que a pessoa tem são os que lhe foram dados pelo psicanalista”

p.197

A psicanálise pode ter muitas insuficiências e limitações, mas reduzi-la a um espantalho feito de “lógica pueril” e “conspiração do inconsciente” é um desserviço epistêmico que realmente não se ajusta ao que qualquer psicanalista poderia reconhecer como uma representação minimamente fiel de sua prática.

Fazer bons retratos, modelos rigorosos ou representações fenomenologicamente consistentes do objeto que se quer criticar é um procedimento básico em ciência.

Dizer que psicanalistas impõem seu léxico, suas ideias e seu saber aos pacientes é algo que é clara e francamente criticada pela maior parte de seus autores.

Freud falava em busca de neutralidade, apresentava a psicanálise em contraste com a sugestão e criticava os métodos de influência.

Se há uma fonte para justificar este retrato onde está ela? Faltam evidências. Nenhuma delas, nem robusta nem preliminar, foi apresentada sobre este retrato.

Na próxima coluna, prosseguiremos com a análise do livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi e abordaremos como é possível avaliar as psicoterapias.

REFERÊNCIAS

[1] Beer, Paulo (2018) Psicanálise e Ciência. São Paulo: Blücher.

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