Texto originalmente publicado na coluna do psicanalista Christian Dunker no blog da Uol Tilt

O livro de Pasternak e Orsi —do qual falamos nas duas últimas colunas (veja a parte 1 e a parte 2)— traz um tema interessante, ainda que tenha sido tão maltratado. Como avaliar as psicoterapias? Como saber qual funciona para o que e para quem?

Aqui salta aos olhos a dificuldade em transpor diretamente os princípios da Medicina Baseada em Evidências para uma possível Psicologia Baseada em Evidências.

Qual seria exatamente o princípio ativo das psicoterapias?
Como imaginar um placebo psicoterápico?

(A ideia de um ator falando de forma trivial com a pessoa não garante que isso não tenha efeitos terapêuticos).

Ainda assim a apresentação é parcial e contraditória.

Pode e deve-se fazer pesquisa sobre avaliação de psicoterapias, mas desde os anos 1950, os resultados são muito divergentes, com autores dizendo que as psicoterapias em geral não funcionam (Eisenk), que elas funcionam mais do que as medicações (tamanho de efeito = 0.87, contra 0.40 em média para antidepressivos, por exemplo) ou que todas elas possuem efeitos positivos (chamado efeito Dodo) [1], assim como existem efeitos adversos ou iatrogênicos das psicoterapias (como qualquer método de tratamento).

Sim, “pacientes tendem a confirmar a orientação teórica de seus terapeutas” (p. 197), mas onde está a evidência científica de que os pacientes em psicanálise pioram mais ou confirmam mais isso do que outras psicoterapias? Zero. Nenhuma pesquisa é trazida, ao contrário do que se espera de alguém que se compromete com uma posição evidencialista em ciência.

Neste cenário de incerteza, Pasternak e Orsi concluem que as psicoterapias podem ser controladas como as medicações, mas também que “a psicoterapia é uma atividade voltada para o mercado” (p. 183).

Mas então:


Onde estão os biomarcadores para que eu possa medir o nível de neurotransmissores cerebrais de um depressivo e assim controlar seu aumento ou diminuição depois das psicoterapias?
Onde estão os diagnósticos etiológicos que me permitam confiar que uma transtorno de pânico ou um transtorno de déficit de atenção com hiperatividade têm a mesma confiabilidade diagnóstica que temos na medicina?
Onde estão as descrições conclusivas de curso e desenlace das doenças mentais?
Aliás, por que chamamos elas de “transtornos” (disorders) e não de doenças?
Qual o princípio ativo da psicoterapia?
Resultado desta ilusão exagerada de controle são as contradições do texto.

Primeiro afirmam que “evidências clínicas são insuficientes, inconclusivas ou inválidas porque os pacientes insatisfeitos não voltam” (p. 182) para, em seguida, se contradizerem, trazendo para o próprio texto [o caso] “O Homem dos Lobos”, que “voltou” para dizer que a análise o prejudicou, que Freud inventou memórias e que ele nunca foi propriamente curado (p. 190).

Afirmam que só 1% relata efeitos negativos e que 10% dos pacientes pioram (p. 184), mas há dados em contrário que falam em 20% de pacientes que relatam benefícios inesperados trazidos pela psicoterapia.

Primeiro dizem que “não existem evidências convincentes de que qualquer forma de psicoterapia particular, ou ingrediente específicos em geral, seja crucial para produzir os efeitos da psicoterapia” (p. 184), mas quando não se trata de psicanálise “existem resultados de pesquisas, conduzidas por boas práticas que confirmam eficácia do método” (p. 184).

Ou seja, caçam “cerejas” pela floresta das evidências para apresentar o retrato que já têm na cabeça.

Trazemos, portanto, cinco considerações sobre a dificuldade de avaliar psicoterapias:

1.

Existe controvérsia na literatura sobre o que constituem evidências de boa qualidade, quais métodos devem ser empregados para estabelecer a eficácia de uma terapia, quais as melhores formas de medir resultados.

Critérios de evidência produzidos para a pesquisa em medicina são problematicamente aplicados para avaliar práticas da psicologia clínica [2].

2.

Há apenas algumas áreas da medicina em que os estudos mostraram uma boa qualidade de pesquisas [3].


Entre elas estão as pesquisas sobre alfabetização em saúde, triagem de câncer [4] e diretrizes de prática clínica para o tratamento do transtorno por uso de opioides [5].

Um amplo estudo sobre a qualidade da pesquisa farmacológica e psicoterapêutica com depressão maior [6] examinou confiança geral nos resultados das pesquisas de acordo com AMSTAR2 [7].

O resultado aponta que:

“A qualidade metodológica das pesquisas sobre intervenções farmacológicas e psicológicas para depressão maior em nossa amostra atual e representativa foi decepcionante.”

Apenas quatro revisões foram classificadas como “alta” (três delas Revisões Cochrane), duas como “moderada”, uma como “baixa” e 53 como “criticamente baixa”.

3.

Quanto mais complexa uma intervenção maior heterogeneidade e maior a chance de redução na qualidade do delineamento experimental e da qualidade final da evidência produzida [8].

Um estudo que queira realmente reduzir vieses tão complexos como os que atribuímos às intervenções psicanalíticas teria que modular, além disso, com pelo menos 10 fatores para homogeneizar a amostra [9]:

Sintomas DSM mais comorbidades,
Reação do paciente à psicopatologia,
Massa corporal,
Personalidade,
Nível de inteligência,
Regulação de Emoções,
Adoecimentos,
Passagem por tratamentos médicos (não psicoterápicos),
Desemprego,
Profissão,
Desenvolvimento Social,
Qualidade de Vida.


(a) Intervenções com múltiplos componentes

(b) Intervenções em que ocorre significativa interação entre a intervenção e seu contexto

(c) Intervenções introduzidas em sistemas complexos

4.

Análises análogas feitas com instrumentos semelhantes sobre a produção de pesquisa sobre eficácia e eficiência da psicanálise [10] afirmam, sob a perspectiva da medicina baseada em evidências, que os resultados têm uma força científica apenas moderada e que “não podemos tirar conclusões definitivas sobre a eficácia da psicanálise” [11].


Um estudo que analisou a qualidade de 94 pesquisas sobre Psicoterapia Psicodinâmica, publicados entre 1974 e 2010, com grupo controle randomizado chegou nos seguintes resultados:

a) Das 103 pesquisas:

63 comparavam Psicoterapia Psicodinâmica e Não-Dinâmica


b) Das 39 comparações entre Psicoterapia Psicodinâmica e uma Intervenção Ativa:

6 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior
5 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é inferior
28 mostraram que não há diferença significativa entre ambas


c) Das 24 comparações adequadas com um Fator Inativo:


18 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior.


d) “Isso é suficiente para tornar a Psicoterapia Psicodinâmica um tratamento “empiricamente validado” (de acordo com os padrões da Divisão 12 da Associação Americana de Psicologia) se outros estudos controlados e randomizados de qualidade e tamanho de amostra adequados replicassem os resultados dos estudos positivos existentes para transtornos específicos.” [12]

5.

A LTPP ((long-term psychodynamic psychotherapy ou psicoterapia psicanalítica de longa duração) pode ser superior a outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, onde a força do efeito representou ganho adicional da LTPP em relação a outras formas de psicoterapia, principalmente de longo prazo.

Reanálise estatística das meta-análises de Leichsenring, Abbass, Luyten, Hilsenroth e Rabung, encaminhadas para o escrutínio no artigo em questão, encontraram evidências da eficácia da LTPP no tratamento de transtornos mentais complexos e a força do efeito terapêutico nas replicações foram, em geral, um pouco menores.

Uma nova meta-análise atualizada de ensaios clínicos randomizados comparando LTPP (com duração de pelo menos 1 ano e 40 sessões) com outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, usando critérios de pesquisa transparente, de acordo com os padrões de ciência aberta, com procedimentos meta-analíticos e controle de viés incluindo 191 tamanhos de efeito e 14 estudos elegíveis, revelou tamanhos de efeito pequenos e estatisticamente significativos no pós-tratamento para os domínios de resultados de sintomas psiquiátricos, problemas-alvo, funcionamento social e eficácia geral (Hedges’ g variando entre 0,24 e 0,35).


O tamanho do efeito para o domínio funcionamento da personalidade (0,24) não foi significativo (p = 0,08).

Não foram detectados sinais de viés de publicação [13].

Apenas para visualizar uma comparação geral, esta é a média da força de efeito terapêutico:

Imagem: Christian Dunker

A psicanálise é um tratamento psicoterápico psicodinâmico baseado em evidências [14].
Os tamanhos dos efeitos são tão grandes quanto os de outras terapias que são ativamente promovidas como “apoiadas empiricamente” e “baseadas em evidências”, e os pacientes que recebem terapia psicanalítica não apenas mantêm os ganhos terapêuticos, mas continuam melhorando após o término do tratamento.

O psicanalista sul-africano Marc Solms fez um bom resumo das evidências de eficácia e eficiência apresentadas pela psicanálise:

“A terapia psicanalítica alcança bons resultados, pelo menos tão bons quanto e, em alguns aspectos, melhores do que outros tratamentos baseados em evidências na psiquiatria atualmente.

  1. A psicoterapia em geral é uma forma de tratamento altamente eficaz. Meta-análises de psicoterapia, estudos de resultados de psicoterapia normalmente revelam tamanhos de efeito entre 0,73 e 0,85. Um tamanho de efeito de 0,8 é considerado grande em pesquisas pesquisa psiquiátrica, 0,5 é considerado moderado e 0,2 é considerado pequeno. Para colocar a eficácia da psicoterapia em perspectiva, medicamentos antidepressivos recentes alcançam tamanhos de efeito entre 0,24 e 0,31 (Kirsch et al., 2008; Turner et al, 2008). As mudanças provocadas pela psicoterapia, não menos do que a terapia medicamentosa, são, obviamente, visualizáveis por meio de imagens cerebrais.
  2. A psicoterapia psicanalítica é igualmente eficaz como outras formas de psicoterapia baseadas em evidências (por exemplo, terapia cognitivo-comportamental (TCC)). Isso agora está inequivocamente estabelecido (Steinert et al, 2017). Além disso, há evidências que sugerem que os efeitos da terapia psicanalítica duram mais tempo – e e até aumentam – após o término do tratamento. A revisão autorizada de Shedler (2010) de todos os estudos controlados e randomizados até o momento relatou tamanhos de efeito entre 0,78 e 1,46, mesmo para formas diluídas e truncadas da terapia psicanalítica. Uma meta-análise, especialmente meta-análise metodologicamente rigorosa (Abbass et al, 2006), produziu um efeito geral de 0,97 para a melhora geral dos sintomas com a terapia psicanalítica. O efeito aumentou para 1,51 quando os pacientes foram avaliados no acompanhamento. Uma meta-análise mais recente –meta-análise de Abbass et al (2014)– produziu um tamanho de efeito geral de 0,71, e a descoberta de efeitos mantidos e aumentados no acompanhamento foi reconfirmado. Isso foi para tratamento psicanalítico de curto prazo. De acordo com a meta-análise de Maat et al (2009), que foi menos metodologicamente rigorosa do que os estudos de Abbass, a psicoterapia psicanalítica de longo prazo produz um tamanho de efeito de 0,78 no término e 0,94 no acompanhamento, e a psicanálise propriamente dita alcança um efeito médio de 0,87 e 1,18 no acompanhamento. Esse é o resultado geral: o tamanho do efeito para a melhora dos sintomas (em oposição à mudança de personalidade) foi de 1,03 para terapia psicanalítica de longo prazo, e para a psicanálise foi de 1,38. Leuzinger-Bohleber et al (2018) informarão em breve tamanhos de efeito ainda maiores para a psicanálise na depressão. A tendência consistente em direção a tamanhos de efeito maiores no acompanhamento sugere que a terapia psicanalítica põe em movimento processos de mudança que continuam após o término da terapia (enquanto os efeitos de outras formas de psicoterapia, como a TCC, tendem a se deteriorar).” [15] [16]

REFERÊNCIAS


[1] Leonardi JL, Meyer SB. Prática Baseada em Evidências em Psicologia e a História da Busca pelas Provas Empíricas da Eficácia das Psicoterapias. Psicol cienc prof [Internet]. 2015Oct;35(4):1139-56.

[2] Reed, Kihlstrom, & Messer, 2006.

[3] In rating overall confidence in the results of the SR according to Shea et al., (2017) only four reviews were rated “high” (three of them Cochrane Reviews), two were “moderate”, one was “low” and 53 were “critically low”. The methodological quality of the SR on pharmacological and psychological interventions for major depression in our current and representative sample was disappointing. On the other hand, there are only few areas in medicine in which studies showed a good quality of SR. They include health literacy and cancer screening (Sharma and Oremus, 2018) ) and SRs referenced in clinical practice guidelines for the treatment of opioid use disorder (Ross et al., 2017).

[4] Sharma e Oremus, 2018.

[5] Ross et al., 2017.

[6] Shea et al. (2017).


[7] The methodological quality of systematic reviews on the treatment of adult major depression needs improvement according to AMSTAR 2: A cross-sectional study In Helyon VOL 6, Issue 9, E04776, September 2020.

[8] Novo Manual da Fundação Cochrane.

[9] Leuzinger, Bohleber, Benecke, Hau (2015) Psychoanalitische Forschung – methonden und Kontroversen in Zeiten wissenschaftlicher Pluraliät. Stutgard: Kohhammer, p. 197.

[10] Maat, (2008) Costs and benefits of Long-Term Psychoanalytic Therapy: changes in health care. Use and work impairment. Harvard Review of Psychiatry, 15(6), 289-300

[11] “Entspechend kommen Maat. (2013) zu der Schlussfolkgerung, dass die Ergebnisse unter der perspective der evidence-based medicine eine only moderade scientific strengh” aufweise das “we cannot drae firm conclusions regarding the effectiveness of psychoanalysis”.

[12] Gerber, A.J., Kocsis, J. H., Milrod, B. L., et al. (2011). A quality-based review of randomized controlled trials of psychodynamic psychotherapy. The American Journal of Psychiatry 168: 19-28.


[13] Christian Franz Josef Woll, Felix D. Schönbrodt. Efficacy of Long-Term Psychoanalytic Psychotherapy (2019) A Meta-Analysis European Psychologist, December 2019, Hogrefe Publishing Group.

[14] Woll, Christian Franz Josef, Schönbrodt, Felix D. (2021) A series of meta-analytic tests of the efficacy of long-term psychoanalytic psychotherapy. European Psychologist, Vol 25(1), 2020, 51-72.

[15] Solms Mark (2018) The scientific standing of psychoanalysis. BJPsych International volume 15 number 1 february 2018

[16] Abbass A. A., Hancock J. T., Henderson J., et al (2006) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders. Cochrane Database Syst Rev, 4,

Abbass A. A., Kisely S. R., Town J. M., et al (2014) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders (update). Cochrane Database Syst Rev, 7,

Bargh J. & Chartrand T. (1999) The unbearable automaticity of being. Am Psychol, 54, 462-479.


Blagys M. D. & Hilsenroth M. J. (2000) Distinctive activities of short-term psychodynamic-interpersonal psychotherapy: a review of the comparative psychotherapy process literature. Clin Psychol, 7, 167-188.

de Maat S., de Jonghe F., Schoevers R., et al (2009) The effectiveness of long-term psychoanalytic therapy: a systematic review of empirical studies. Harv Rev Psychiatry, 17, 11-23.

Hayes A. M., Castonguay L. G. & Goldfried M. R. (1996) Effectiveness of targeting the vulnerability factors of depression in cognitive therapy. J Consult Clin Psychol, 64, 623-627.

Kirsch I., Deacon B. J., Huedo-Medina T. B., et al (2008) Initial severity and antidepressant benefits: a meta-analysis of data submitted to the food and drug administration. PLoS Med, 5, e45.

Leuzinger-Bohleber M., Hautzinger M., Fiedler G., Keller W., Bahrke U., Kallenbach L., Kaufhold J., Ernst M., Negele A., Schött M.,

Küchenhoff H., Günther F., Rüger B. & Beutel M. (2018) Outcome of psychoanalytic and cognitive-behavioral therapy with chronic depressed patients. A controlled trial with preferential and randomized allocation. Br J Psychiatry, submitted.


Norcross J. C. (2005) The psychotherapist’s own psychotherapy: educating and developing psychologists. Am Psychol, 60, 840-850.

Panksepp J. (1998) Affective Neuroscience. Oxford University Press. Shedler J. (2010) The efficacy of psychodynamic psychotherapy. Am Psychol, 65, 98-109.

Solms M. (2017) What is ‘the unconscious’ and where is it located in the brain? A neuropsychoanalytic perspective. Ann NY Acad Sci., 1406: 90-97.

Steinert C., Munder T., Rabung S., Hoyer J. & Leichsenring F. (2017 Psychodynamic Therapy: As Efficacious as Other Empirically

Supported Treatments? A Meta-Analysis Testing Equivalence of Outcomes. Am J Psychiatr, doi: 10.1176/appi.ajp.2017.17010057

Tronson N. C. & Taylor J. R. (2007) Molecular mechanisms of memory reconsolidation. Nat Rev Neurosci, 8, 262-275.


Turner E., Matthews A., Linardatos E., et al (2008) Selective publication of antidepressant trials and its influence on apparent efficacy. N Engl J Med, 358, 252-260.