Na cidade de Porto Alegre (RS), em 08 de março de 2023 (8M), o dia das mulheres foi marcado por manifestações políticas com ações de visibilidade, resistência, luta contra a violência de gênero e pelos direitos dos corpos femininos. Nessa ocasião, como parte de uma pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) – Eixo 3, foram recolhidos sonhos de mulheres. Entre recortes de sonhos noturnos, muitas delas narraram fragmentos de sonhos diurnos, já outras disseram que não têm tempo para sonhar – questão que, à nossa escuta, é de importante relevância. Afinal, quais futuros são possíveis sem o ensejo de sonhos no presente?
Desde a publicação, em 1900, de A Interpretação dos Sonhos (obra fundadora da psicanálise), Freud sustentou que os sonhos se apresentam fundamentalmente a partir de imagens e que são a realização disfarçada de um desejo reprimido. Ao longo do tempo, esse debate sobre os sonhos e sua relação com a vida psíquica foi tomando novas proporções e, através de um conjunto de pesquisas universitárias sobre os sonhos na atualidade, por volta de 2019 se começou a pensá-los articulando inconsciente, cultura e os acontecimentos do mundo social que trazem a marca da história e de ações políticas.
Resulta dessa produção acadêmica o conceito de oniropolítica, termo que orienta a proposta de pensar a função coletiva do sonho a partir dos restos diurnos que neles se manifestam para interrogar as formas políticas e sociais contemporâneas, bem como para resgatar a dimensão do sujeito e do desejo na vida em vigília.
Dentre os trabalhos já publicados sobre o tema, há o livro “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia”, organizado por Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski, publicado em 2021 pela editora Autêntica. Estas são pesquisas que não se servem apenas da psicanálise e por isso contam com outros campos do conhecimento, como, por exemplo, a teoria de Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão que também se interessou pelo tema do sonho e pela sua dimensão de análise social.
Nessa perspectiva, o que nos parece mais relevante é a problematização acerca do que os sonhos podem dizer sobre a vida diurna e de como eles podem nos inspirar com saídas inventivas para os impasses de nossa época a partir das demandas que durante o sonho se apresentam. Ou seja, podem os sonhos ser uma tentativa de resposta subjetiva também às questões que vivemos em vigília?
Nas manifestações sociopolíticas do 8M, entre as narrativas oníricas relatadas pelas mulheres, elegemos o relato de uma sonhadora que trouxe fragmentos de vários sonhos: (1.º) “Estava em um aniversário e minha avó, já morta, estava dando conselhos”; (2.º) “Estou fugindo de um perseguidor que é sempre um homem ou policial. O sonho é recorrente e eu consigo fugir porque sou ninja”; (3.º) “Sonho bastante com casas”; e (4.º) “Estou ‘trepando’, seja com homem ou mulher. Devo ter esses sonhos porque faz tempo que não transo”.
Se pensarmos esses fragmentos de sonhos como um saber não consciente sobre os fenômenos sociais de uma época e se considerarmos que eles têm a estrutura de um despertar, tal como propõe Walter Benjamin, como podemos aproximar o tema dos sonhos e o feminismo para então pensar uma perspectiva feminista para a oniropolítica? Os fragmentos dos sonhos de mulheres engajadas em movimentos sociais e políticos nos permitem criar uma outra gramática sobre o lugar dos corpos femininos no laço social contemporâneo?
Jacques Lacan, psicanalista expoente da obra freudiana, formalizou uma teoria na qual evidenciou que o laço social, ou seja, aquilo que produz enlace entre os sujeitos, é designado como discurso. Nesse sentido, os discursos são aparelhos de linguagem que organizam modos de relacionamento interpessoal – operação que estabelece, por exemplo, lugares de fala, visibilidade, poder e hierarquização, tal como podemos observar no discurso patriarcal ou no discurso colonizador. Em vista disso, se entendermos o feminismo como a invenção política de uma contraexperiência ao discurso dominante ou, ainda, a invenção de outra modalidade de laço social possível por meio da desmontagem da engrenagem patriarcal, como propõe a filósofa feminista Márcia Tiburi, não poderiam os sonhos sinalizar os elementos que desalinham tal engrenagem?
Acerca do relato da sonhadora no 8M e, seguindo a metodologia benjaminiana na qual o sentido do sonho é forjado a partir da construção de uma constelação que aproxima fragmentos oníricos, podemos pensar que, no relato da sonhadora, iluminam-se os seguintes pontos: (1.º) a transmissão geracional de um saber compartilhado entre mulheres; (2.º) o sentimento de insegurança em relação ao corpo masculino ou àquele que representa a instância de lei ou coerção – a mulher ninja que não se deixa capturar; (3.º) a presença do âmbito doméstico como território majoritariamente feminino, historicamente esvaziado de sentido político; e (4.º) a relação sexual para além da heteronormatividade. Não são essas as questões que borbulham no discurso social de nossa época? Não são questões produtoras dos afetos mais ambivalentes na sociedade atual? Afetos que invocam tanto fenômenos totalitários e estruturas de violência quanto convocam a necessidade de novas formas de saber-fazer política, isto é, de fazer valer a alteridade a fim de ser possível a vida com o outro-diferente.
Neste breve texto que apresentamos aos leitores, buscamos articular a possibilidade de uma política que não apenas aponte para o que não podemos aceitar, mas que possa também nos inspirar com novos caminhos e alternativas. Partindo da psicanálise e da filosofia, optamos por pensar uma oniropolítica feminista, na medida em que ela, ao articular a dimensão do sujeito, do desejo e da política, abre espaço para pensarmos (e, quem sabe, construirmos) outro mundo possível, onde as marcas do patriarcado, do colonialismo e do autoritarismo possam ser transformadas em outras possibilidades de partilha do campo político, mais emancipatórias, de modo que não retornem constantemente na forma de violência.
Cláudia Maria Perrone é professora doutora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS. Coordenadora do NUPPEC/Eixo 3: Psicanálise, Educação, Intervenções Sociopolíticas e Teoria Crítica. Juliana Martins Costa Rancich é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3. Flávia Tridapalli Buechler é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3. Eduardo Bayon Britz tem bacharelado em Ciências Sociais, é psicólogo e mestrando do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisador do NUPPEC/Eixo 3. Gabriela Gomes da Silva é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC – Eixo 3.
Por Luci Cavallero e Verónica Gago. Compartilhamos um pouco do que está disponível na edição ampliada em português do livro “Uma leitura feminista da divida” (já disponível em pré-venda com frete grátis para todo Brasil: clique aqui). Essa investigação impulsiona um movimento de politização e de coletivização do problema financeiro. É uma ferramenta de debate e de formação em sindicatos, universidades, feiras de pequenes produtores, organizações de base e assembléias feministas.
Vivas, livres e sem dívidas nos queremos!
Interrupção Voluntária da Dívida
A ascensão do novo governo de Alberto Fernandez (dezembro de 2019, Argentina) está marcado por duas questões: o impacto do feminismo nos debates e na discussão sobre a “renegociação” de uma dívida externa caracterizada socialmente como “impagável”. Propusemos, assim, um enlace das reivindicações feministas da “marea verde” e da dívida: Interrupção Voluntária da Dívida. É uma forma sintetizada de propor que, além do desendividamento, é preciso que hajam políticas de reconhecimento do valor do trabalho doméstico que nos converte diretamente em credoras de uma acumulação de riquezas que proporcionamos gratuitamente. Dizemos que é hora da reapropriação, de uma interrupção legal da dívida.
Hoje, os efeitos do endividamento recaem sobre aqueles que estão mais vulneráveis e em situação política delicada, porque exploram diretamente a capacidade de reprodução social: o endividamento doméstico e os preços dos alimentos, ambos submetidos a inflação galopante dos últimos anos, que segue sem freio.
Como uma das primeiras medidas de urgência, o novo governo lançou um plano entitulado “Argentina contra a fome”. Devemos levar em consideração que a situação atual é que, no país que é o quarto produtor mundial de farinha de soja, 48% das crianças são pobres.
O plano consiste na entrega de “cartão alimentação” que pretendem distribuir para até 2 milhões de pessoas. O ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo, encarregado da medida, ao explicar por que o plano se instrumentalizou por meio de um sistema de “cartão alimentação” – e não entregando diretamente dinheiro em efetivo -, respondeu com empirismo bruto: qualquer dinheiro efetivo que for dado às famílias contempladas, na medida em que elas estejam totalmente endividadas, seria usado para pagar dívida (formal ou informal). A conclusão é óbvia. O modo de garantir acesso a alimentos está hoje determinado pela dívida dos lares, que literalmente tem parasitado todo tipo de rendimentos: desde pensões a subsídios, onde as beneficiáries da Asignación Universal por Hijo (AUH) desempenham um papel protagonista, desde salários a rendimentos provindos de “bicos”.
Esse vínculo entre dívida e alimentos é fundamental, porque leva ao extremo os efeitos destrutivos da precariedade: endividar-se para comer, primeiro; e, na outra ponta da cadeia, se afogar em dívidas para conseguir produzir alimentos nas economias populares; até, finalmente, cair no funil de monopólio dos supermercados. Vemos, assim, como o diagnóstico sobre o que significa a colonização financeira sobre nossos territórios é muito mais amplo que a gerência da dívida externa, ainda que esteja diretamente relacionada com ela. A dívida externa espalha-se, como sistema capilar de endividamento, na dívida interna e é reforçada pela diminuição do poder de compra das receitas e pela restrição dos serviços públicos. A combinação é explosiva. Ou melhor: apenas alimenta mais dívidas.
As lutas de produtores da terra tem transformado e impactado o desenho atual de políticas públicas para combater a fome. Graças a eles, tem se buscado incluir a agricultura familiar e camponesa e seus circuitos de feiras nas formas de fornecimento de alimentos de qualidade. “Isso foi conquistado através dos “verdurazos”, afirma o Sindicato des Trabalhadores da Terra (UTT), referindo-se à ação política de distribuir grandes quantidades de verduras nas praças como ato político, denunciando a insustentabilidade econômica des pequenes produtores frente à inflação.
Aqui o desafio é delineado. Se por um lado os cartões de alimentação são uma tentativa de institucionalizar as feiras populares e caracterizar o problema da fome a partir do diagnóstico dos movimentos sociais, por outro, o endividamento herdado e o sistema bancário produzem situações de equivalência insustentáveis entre os grandes supermercados e as feiras populares.
As condições de produção e de superexploração que hoje estão na base da agricultura familiar revelam dois problemas estruturais: os limites que impõem não ter acesso a terra (e para tanto o pagamento de arrendamentos caros); e também o trabalho não reconhecido das pequenas agricultoras e camponesas. Um nó quádruplo estreita as possibilidades e torna o quadro ainda mais complexo: a questão tributária, a propriedade/posse da terra, a financeirização dos alimentos e a quantidade de trabalho feminilizado que não é reconhecido e é historicamente desvalorizado, funcionando de fato, como variável de barateamento. Ressalta Rosalía Pellegrini, secretária de Gênero da UTT: “Nossa comida é subsidiada pela nossa autoexploração, estamos endividadas para poder competir em um modelo de produção dependente.”
Fome e mandatos de gênero
Há outra aresta nas declarações públicas que anunciaram a implantação do “cartão alimentação”: o desafio insistente à responsabilidade materna na alimentação des filhes, mesmo que o cartão seja destinado às mães ou pais. A perspectiva feminista contribui e exige que o mandato de gênero nas políticas sociais não seja naturalizado em um contexto de crise extrema. A responsabilização de mães hiperendividadas gera o risco de reintegrar formas de merecimento patriarcal associadas à assistência social.
Se os cortes nos serviços públicos e a dolarização de tarifas e alimentos durante o governo de Mauricio Macri transferiram os “custos” da reprodução social para a responsabilidade familiar, é necessário restabelecer os serviços públicos para desfamiliarizar a obrigação de alimentação e cuidados. Sobretudo porque o movimento feminista tem colocado em debate o que é a família, quando esta é reduzida à sua norma heteropatriarcal, e porque tem valorizado as redes comunitárias em sua capacidade de produzir vínculos sociais e mediação institucional. “O cartão alimentação é uma medida importante frente as necessidades extremas em que se encontram as nossas companheiras, mas não substitui o alimento que é entregue em cada refeitório, onde são feitos os panelaços populares, e é sobre este trabalho comunitário que pedimos reconhecimento ”, afirma a dirigente do sindicato des trabalhadores da economia popular, Jackie Flores (UTEP).
Uma leitura feminista da inflação
A explicação sobre qual é a causa da inflação é uma batalha política. Diferentes autoras tem apontado elementos que nos permitem fazer uma leitura feminista da inflação, esse mecanismo que acelera o endividamento compulsório e obrigatório.
Argumentos, historicamente conservadores, são adicionados às explicações monetaristas (a emissão) da inflação que a caracterizam como uma doença ou mal moral de uma economia. Ou seja, não se trata apenas de explicações técnicas e econômicas, mas diretamente ligada às expectativas de como viver, consumir e trabalhar. Isso foi argumentado pelo famoso sociólogo de Harvard, Daniel Bell, que colocou o colapso da ordem doméstica da família tradicional como a principal causa da inflação nos Estados Unidos na década de 1970. Já Paul Volcker, chefe da Reserva Federal estadunidense entre 1979 e 1987, ficou conhecido por sua proposta de disciplinar a classe trabalhadora como método contra a inflação, instalando a questão como uma “questão moral”.
A análise feita desses argumentos pela pesquisadora Melinda Cooper, que estuda por que tanto neoliberais quanto conservadores se colocaram contra um programa de baixo orçamento dedicado à mães solteiras afroamericanas, abre uma pista fundamental: nesse subsídio concentrou-se a desobediência das expectativas morais das suas beneficiárias. Essas mães solteiras afroamericanas produziram uma imagem que não se encaixava na marca da família fordista. Ou seja, na perspectiva conservadora, quem recebia esse subsídio era “premiada” pela decisão de ter filhes fora da convivência heteronormativa, e a inflação refletia a inflação de suas expectativas sobre o que fazer das suas vida, sem nenhuma contraprestação obrigatória.
Então, ao clássico argumento neoliberal de que a inflação se deve ao “excesso” de gastos públicos e ao aumento dos salários quando há poder sindical, os conservadores acrescentam uma virada: a inflação marca um deslocamento qualitativo do que se deseja. Mais recentemente os dois argumentos se uniram de forma decisiva.
Para o nosso contexto: como discutir a inflação desarmando uma imagem conservadora do gasto social, intimamente ligada ao governo cessante, que moraliza as mulheres, lésbicas, travestis e trans dos setores populares em seus possíveis gastos, ao mesmo tempo que perdoa a elite financeira local e internacional por terem fugido da responsabilidade de 9 em cada 10 dólares de dívida externa?
Se existem vínculos que expressem a rejeição (ou a fuga de fato) ao contrato familiar, tornar-se devedoras é – como argumenta Silvia Federici -, uma mudança na forma de exploração que levanta outra questão: como se fiscaliza e pune o que está além do salário e do casamento? As reformas punitivas dos direitos sociais (como argumentamos em relação à moratória da aposentadoria), tentam inventar esses dispositivos restabelecendo uma ordem meritocrática patriarcal do que está fora do salário e fora do casamento.
Luci Cavallero é socióloga e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires. Seus trabalhos abordam vínculo entre dívida, capital ilegal e violências.
Verónica Gago é professora e pesquisadora. Também militante feminista e membro do coletivo Ni Una Menos. Faz parte da editora independente Tinta Limón. É autora do livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” (Editora Elefante, 2020).