por Maria Florencia Cascardo* e Alberta Bottini**
Resenha do livro “Uma leitura feminista da dívida, de Luci Cavallero e Verónica Gago.
O livro “Uma leitura feminista da dívida: vivas, livres e sem dívidas nos queremos!” propõe uma nova forma de olhar e compreender a dívida. Diferentemente dos estudos centrados nas abstrações financeiras e macroeconômicas , o livro levanta um olhar feminista da dívida, convidando-nos a compreender o impacto concreto da mesma nos territórios, na vida das pessoas des classes populares e nos corpos de mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não binárias. Sob a perspectiva da economia feminista, nos propusemos nesta resenha a incorporar também a visão da economia popular, social e solidária, como forma de articular duas estratégias teóricas e práticas de resistência que buscam construir uma nova forma de entender o econômico.
O livro de Verónica Gago e Luci Cavallero surge no calor das discussões em torno dos processos de organização das greves feministas, das greves de mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não-binárias, que destacavam o papel econômico do trabalho doméstico não remunerado que realizam e que funciona como suporte invisível do sistema econômico.
Em primeiro lugar queremos destacar uma característica que nos pareceu importante do texto: seu caráter prático que nos permite gerar diálogos reais e concretos entre as teorias e nossas experiências como professoras e pesquisadoras da área de economia popular, social e solidária de universidades públicas dos subúrbios de Buenos Aires e como militantes feministas. E é aí que começa esse convite que nos faz pensar e reconceituar a dívida, não apenas como fenômeno abstrato e distante de nossas vidas, mas como um elemento estruturante das relações sociais e econômicas da nossa sociedade contemporánea. O livro assume então um valor como aporte teórico e como ferramenta de discussão, debate, resistência e construção coletiva. Imaginamos o livro como dispositivo proporcionador de debates com as organizações e sujeitos da economia social, popular e solidária; o compreendemos como uma ferramenta que permite uma leitura feminista, mas também que possibilita a formulação de propostas emancipatórias enquadradas nestas propostas para uma outra economia.
Falar da dívida nos leva a pensar no imaterial do que implica o setor financeiro global, e aqui está a primeira contribuição do texto de Gago e Cavallero: as autoras no propõem três movimentos como exercício para repensar os instrumentos financeiros na esfera do cotidiano, analisando seu impacto concreto sobre os territórios e corpos, assim como as experiências coletivas que surgem como mecanismo de resistência frente a mesma: desconfinar, corporizar e desacatar.
O primeiro movimento convida-nos então a tirar a dívida do armário, a expulsá-la desse confinamento à esfera privada; torná-lo visível, nomeá-lo, para deixar de pensar nele como um problema privado e entender esse fenômeno como parte de um problema comum. Tomando as contribuições conceituais de diferentes autores, definem a dívida como um “mecanismo de sujeição e servidão, estruturando a relação devedor-credor como constitutiva do capitalismo” que gera subordinação entre nações, setores, classes, gêneros e raças, entre outros. Pensar a dívida como um mecanismo generalizado de despossessão permite compreender como se produzem e reproduzem mecanismos e estratégias a partir do capital financeiro para a geração de devedores, habilitando desse modo novos mecanismos de exploração que são lidos na chave do extrativismo financeiro.
Abordam esse estudo desde uma leitura feminista, que propõe uma análise do impacto concreto que se contrapõe com as abstrações financeiras, pensando no endividamento da vida doméstica, isto é, a dívida dos setores assalariados e populares (estes últimos altamente feminizados). Assim, é como chegam a compreender a dívida como um mecanismo de dependência, produto do modelo de financeirização proposto pelo neoliberalismo, onde a dívida é o que permite repor o que nos é tirado: acesso a serviços, saúde, moradia, alimentação e trabalho. A dívida é o recurso que aparece quando não há outro recurso e não se encontram mais redes de apoio além do mercado, que não pode ser acessado, retroalimentando um círculo de dependência.
A dívida é o mecanismo a partir do qual os setores populares resolvem seus problemas cotidianos, o que as autoras entendem como um modo de gestão da crise. E destacam que apesar das exorbitantes taxas de juros que devem pagar (por aderirem a esta dívida de organizações usurárias), este endividamento toma conta das economias familiares, financiando o cotidiano e organizando uma estrutura de obediência (cumprir tal obrigação no que for possível), definida como terror financeiro que opera também como um mecanismo de disciplina social, especialmente em relação aos corpos feminizados.
A dívida então passa a ser moeda recorrente, mecanismo de subordinação. Por isso, após desconfinar a dívida, as autoras procuram corporizá-la, analisando a forma como ela se enraiza nos corpos e territórios, funcionando como um dispositivo de exploração transversal que capta a produção do comum, explorando mesmo a disponibilidade de trabalho no futuro. Ao dar corpo à dívida, as autoras permitem ver como esse mecanismo disciplinar se torna muito mais violento nos corpos de mulheres e dissidentes e nos setores populares. A dívida como disciplina, como mecanismo violento e ambíguo que permite a reprodução da dependência e a negação dos nossos desejos.
Na segunda parte do livro, as autoras interpelam a discussão sobre a dívida através de entrevistas com representantes de organizações feministas, da economia popular, social e solidária, e sindicais. As narrativas que o texto nos oferecem nos convidam a pensar como o imaterial se torna material, como o invisível associado ao setor financeiro se faz realidade, história e violência nos corpos das pessoas que vivem às margens. Assim, as histórias expõem o papel das empresas financeiras no endividamento dos setores populares e permitem observar o impacto do endividamento nos vínculos, na saúde e na vida das pessoas. E aí começa a aprofundar a análise do impacto diferencial dessa dívida sobre mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não-binárias.
Por um lado, a partir do vínculo da dívida com os trabalhos de reprodução (que recaem principalmente nas costas de mulheres e dissidentes): são elas que se endividam para pagar os medicamentos, comprar a comida; resumidamente, são elas que se endividam para ter acesso a tudo o que permite a reprodução da vida das pessoas do lar. Por outro lado, a partir da interseção entre dívida e autonomia econômica, o livro analisa a forma como a dívida está vinculada à violência de gênero.
É aí que se torna visível o terceiro movimento que as autoras nos propõem: uma vez desconfinada e incorporada a dívida, chegamos ao ponto do desacato. Essas entrevistas também permitem visualizar as resistências a esses dispositivos de subjugação, destacando o poder de desobediência que se abre a partir das experiências organizativas do movimento feminista.
E é aí, na encruzilhada entre a economia feminista e a economia popular, social e solidária, que nos propomos a pensar experiências que (nos) libertem da dívida e ao mesmo tempo construam coletivamente práticas de trabalho autogeridas. Nos relatos das experiências se nomeiam práticas como o pasanaku na comunidade boliviana, o crédito coletivo gerido no interior das organizações sociais que podemos vincular com práticas existentes entre as organizações da economia popular, social e solidária que pensam o crédito como um recurso para o grupo e não como uma saída individual. O objetivo passa a ser, então, coletivo e comum, a serviço das pessoas e não da acumulação do capital.
Assim são pensados instrumentos de crédito solidário que, por exemplo, propõem a utilização de sistemas de garantia solidária entre os membros de um grupo, valorizando a importância da organização e construindo redes associativas, democráticas e autogeridas.
A incorporação de metodologias inovadoras como garantias solidárias, ou fundos rotativos, permitem a geração de fundos coletivos que são utilizados por quem os requer, devolvendo-os posteriormente para serem utilizados por outro integrante. Ainda dentro dessas estratégias podemos pensar nas moedas sociais utilizadas em feiras de economia social e solidária, que funcionam como instrumento de crédito para comercialização solidária para aquisição de bens e serviços, ao mesmo tempo em que integram produtores e consumidores em formas solidárias de organização do consumo.
Essas estratégias geram a capacidade de mobilizar um recurso com base na motivação coletiva; compartilhando a busca por financiamento que foge da lógica comercial e se orienta pelo princípio da reciprocidade presente nas experiências da economia popular, social e solidária.
Por fim, acreditamos que o livro é um aporte necessário para visibilizar e problematizar o conceito de dívida, mas sobretudo nos convida a investigar, entendendo a pesquisa como tarefa militante, sobre como os instrumentos financeiros produzem, aumentam e naturalizam a violência machista. Mas, também, como o mesmo sistema capitalista e patriarcal se nutre desses instrumentos para disciplinar e para acumular forças sobre nossas vidas.
O livro é por um lado uma aposta na resistência, desde os feminismo e desde a organização popular e solidária da economia e, por outro lado, um convite à construção de outras formas de viver uma vida que valha a pena ser vivida.
Maria Florencia Cascardo*: Universidad Nacional de Tres de Febrero, Tres de Febrero, Provincia de Buenos Aires, Argentina. ([email protected])
Alberta Bottini**: Universidad Nacional de Quilmes, Quilmes, Provincia de Buenos Aires, Argentina. ([email protected])
As autoras fazem parte do Espacio de Género de la Red Universitaria de la Economía Social Solidaria (RUESS), da Argentina.
Para citar o artigo: Cascardo, M. F. y Bottini, A. (2019). Lucía Cavallero y Verónica Gago, Una lectura feminista de la deuda: ¡Vivas, libres y desendeudadas nos queremos! Buenos Aires, Argentina: Fundación Rosa Luxemburgo, 2019. Otra Economía, 12(22), 293-296.