Quando VerónicaGago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reproduçãosocial como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modeloneoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reproduçãosocial refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.
A entrevista é de EmilianaPariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reproduçãosocial, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.
Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reproduçãosocial serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.
Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.
No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?
“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzira vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.
É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutasfeministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reproduçãosocial, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.
Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismoé violento e que a violênciapatriarcal é, por sua vez, neoliberal”.
Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.
Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violênciaestrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.
Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.
Essa é mais uma potência dos feminismosatuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violênciasistêmica.
Soma-se a isso o fato de que os movimentosfeministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.
Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.
Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a ofertaneoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violênciasistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.
Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.
Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?
As crises facilitam certa criatividade política e a autogestãoereapropriaçãodefunções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentosfeministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reproduçãosocial, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutasfeministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.
Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?
É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.
Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.
Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?
Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirizaçãodareproduçãosocial, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reproduçãosocial que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.
Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.
Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.
Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?
Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.
Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.
Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formasde recolonizaçãodonossocontinente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.
Esta entrevista com Verónica Gago, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de San Martin (UNSAM), busca dialogar com as recentes movimentações construídas no bojo das lutas e interpretações que têm marcado os últimos anos na América Latina. Este tem sido um período atravessado por uma pujante produção e tradução para o português de livros de mulheres intelectuais e feministas de várias tradições, e por intensas mobilizações pelos direitos das mulheres, como as lutas pelo direito ao aborto e de enfrentamento ao feminicídio, que criaram ressonância em diversos países e continentes, e que vêm provocando uma inflexão por novas perguntas e métodos de ler, interpretar e incidir na realidade social. No conjunto destas articulações, tem-se ampliado ações que buscam melhor conhecer a produção latino-americana e é neste movimento que se inserem os diálogos com Verónica Gago. Em nosso encontro, durante o Seminário Internacional “As perspectivas feministas sobre a geopolítica global patriarcal e racista”, realizado em Salvador (BA), em 2019 – momento de articulação dos movimentos e intelectuais feministas da América Latina, que coincidia com a visita realizada pela italiana Silvia Federici para o lançamento do livro “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” –, propusemos a realização desta entrevista. Com a impossibilidade de realizá-la durante o seminário, contamos com a generosidade de Verónica de responder às perguntas que formulamos por escrito. Esta forma de realização da entrevista permitiu uma elaboração densa e rica, e que compartilha também novos debates produzidos pós-seminário, que coincidem com novas publicações suas, mencionadas ao longo da entrevista. Nossa tradução buscou preservar com o máximo cuidado as complexas elaborações apresentadas, mantendo aspectos da formatação do texto da entrevista – grifos e itálicos – enviado por Verónica, que buscavam destacar e salientar algumas ideias nas análises. Esperamos que o diálogo consolidado nesta entrevista contribua com a partilha, mas também o reconhecimento, das elaborações que se têm construído na íntima relação entre academia e militância, expressas na experiência da Verónica Gago e que refletem uma estratégia de produção de conhecimento mobilizada por muitas mulheres nas universidades da América Latina.
Você poderia se apresentar, falar um pouco sobre você? Verónica Gago – Me chamo Verónica Gago. Vivo em Buenos Aires (ainda que não tenha nascido aqui, e sim em um povoado a 200 quilômetros da capital). Estudei Ciência Política na Universidade de Buenos Aires e depois de vários anos, nos quais só me dediquei à militância e ao trabalho, iniciei o Doutorado em Ciências Sociais. Sou professora nesta mesma Universidade de ensino na graduação e pós-graduação sobre economia internacional e teoria política. Também trabalho na Universidade Nacional de San Martin, onde sou responsável pelos cursos de teoria crítica, economias populares e economia feminista. Sou investigadora no Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET). Comecei minha militância na Universidade como estudante e continuei vinculada a um grupo de investigação e ação militante que se chama Coletivo Situações. Como parte dessa iniciativa também se formou a Editora independente Tinta Limón, da qual sigo sendo editora. Desde 2016, sou parte do coletivo NiUnaMenos.
Como foi o teu encontro com o feminismo, enquanto teoria e movimento social? Verónica Gago – Na militância na universidade, o feminismo estava presente entre as companheiras que conformavam o Coletivo Situações, porém de uma forma que não buscava, acredito, impactar de modo direto as lógicas mistas da organização do próprio coletivo. Sem dúvida, a discussão sobre o papel das mulheres na política – ainda sem nomear especificamente como feminismo – era muito forte nos debates que circulavam então nos anos 1970, também sobre as trajetórias de várias militantes que se fizeram feministas durante seus exílios, e também sobre como essas dinâmicas e biografias se expressaram na década de 1980, momento que aqui se chamou “transição à democracia”. Tem um ponto fundamental que marca a sensibilidade de várias gerações, o papel das Mães e Avós da Praça de Maio, como um fio vermelho de longa duração. Neste contexto, a militância vinculada aos direitos humanos dessa geração foi fundamental para nós que tínhamos em torno dos 20 anos nos anos de 1990, já que foi um primeiro momento de ação direta, em que o “escracho” aos genocidas, que estavam impunes em suas casas, foi um modo de pôr em prática outra ideia de justiça. Nesse momento, se tenho que me referir a uma experiência de feminismo que me/nos marcou, a nós que militávamos juntas naquele momento, foi conhecer a prática de Mulheres Criando, da Bolívia. Tanto seus grafitis, como seu periódico, que difundíamos em Buenos Aires. Logo, uma das experiências de formação mais intensas para mim foi vivenciar a crise de 2001, na qual movimentos sociais muito importantes, especialmente de trabalhadorxs desempregadxs, abriram um horizonte político popular muito radical. Nestas experiências, com as quais me vinculei a partir do coletivo do qual era parte, elaborou-se um desafio à legitimidade política do neoliberalismo e para todxs nós, que nos comprometemos com as assembleias, os piquetes e as redes de intercâmbio e organização, foi como atravessar um limiar de como habitar as ruas e vivenciar uma nova política. A partir do trabalho editorial, alguns anos depois, também estabelecemos uma relação com companheiras cuja trajetória de luta e pensamento são chaves para uma sensibilidade e um arquivo feminista que, para mim, seria muito importante. Refiro-me a pessoas como Silvia Federici, Raquel Gutiérrez Aguilar, Silvia Rivera Cusicanqui e Suely Rolnik. Logo, com minha militância no coletivo NiUnaMenos, sou parte de uma experiência que nos permite viver e militar de forma plena o feminismo, no preciso momento em que ele se torna um movimento social, massivo e radical, algo que é uma novidade em nosso país e, ao mesmo tempo, que existe dessa forma na medida em que expressa uma conexão e uma força transnacional muito potente.
Como tua militância no NiUnaMenos e tua formação como cientista social se encontram na tua atuação como pesquisadora? Verónica Gago – Minhas problemáticas de investigação estiveram sempre vinculadas ao trabalho, desde o ponto de vista das dinâmicas do que se chama feminização do trabalho, e do trabalho migrante, que se encontram, sem dúvida, com as economias subalternas. Isto imediatamente me levou a indagar a partir das perspectivas feministas. Tanto no que sistematizei para meu trabalho de tese, como nas questões que me interessavam previamente em termos teóricos e de minhas experiências, essas questões se conectavam. Daí também é que comecei a aprofundar minhas formulações sobre o mapa do neoliberalismo na América Latina. O fiz partindo de minha investigação que se localizava na Argentina, mas à medida que envolvia trajetórias feminizadas migrantes e pela própria dinâmica do capital transnacional – especialmente em sua fase de hegemonia financeira –, tornou-se essencial sair de um “nacionalismo metodológico” para pensar outras chaves explicativas. Minha investigação sempre teve, para mim, um caráter de intervenção política e esteve associada a formas de militância, mesmo quando parte dela era realizada na universidade. Isto tem relação também com uma tradição de compromisso político da universidade pública e gratuita em nosso país. Minha militância no NiUnaMenos e especialmente na dinâmica de organização da greve feminista internacional certamente se articula e impacta de múltiplas maneiras minha própria pesquisa, sobretudo porque a greve produz um mapeamento prático da heterogeneidade das formas de trabalho em uma chave feminista, colocando, em primeiro lugar – como falarei mais à frente – trajetórias de vida e trabalho historicamente desvalorizadas e superexploradas. Desta maneira, acredito que tenha uma contaminação recíproca das formas de prática política e da investigação militante que faz com que a produção de conceitos não seja um monopólio da academia, nem que a prática política se reivindique como anti-intelectual.
Em teu livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” 2, você discute a greve internacional de mulheres. Neste contexto podemos pensar em uma ressignificação da greve a partir da luta feminista? A greve assumiria um novo sentido? Qual? Verónica Gago – Sim, acredito que a prática da greve vivenciada a partir do movimento feminista modifica-a por completo porque, para dizê-lo de modo simples, a greve se pratica “fora do lugar”. Devo explicar: em primeiro lugar, a greve torna-se um dispositivo específico para politizar as violências contra as mulheres, lésbicas, travestis, trans e não binários. Em outras palavras, a greve cruza duas questões que historicamente se viam desencontradas. Conectar as violências machistas com a ferramenta da greve realmente amplia nossa compreensão das violências. Com a ferramenta do “paro”3 [greve] começamos a vincular de modo prático as violências que se enlaçam com a violência machista: a violência econômica na diferença salarial e nas horas de trabalho doméstico não reconhecido e não pago, com o disciplinamento que se enlaça com a falta de autonomia econômica; a violência da exploração que se traduz no lar como impotência masculina e explode em situações de violência “doméstica”; a violência do sucateamento dos serviços públicos com a sobrecarga do trabalho comunitário. A greve, neste sentido, é uma ação que nos situa como sujeitxs políticos frente às violências e sua tentativa sistemática de reduzir nossas dores, colocando-nos na posição de vítimas, a serem culpadas e revitimizadas. A greve nos põe em situação de luta. Não esquece a dor, porém nos retira do “estado” de dor. Mas também, fazendo isso, expande-se e é apropriada por aquelxs que supostamente não estavam autorizadas nem legitimadas para fazer greve, uma ferramenta clássica monopolizada pelo movimento trabalhista e sindical (e majoritariamente masculino, heterossexual e branco). Daí coloca-se uma pergunta prática e teórica muito desafiante: Como a greve feminista é protagonizada simultaneamente desde territórios, sujeitxs e experiências que não cabem na tradicional ideia de trabalhadorxs e que, por isso mesmo, têm a capacidade de reinventá-la e transformá-la? Neste sentido, a greve analisada a partir do movimento feminista, como tem acontecido nos últimos quatro anos inclui, reconhece e visibiliza como força de trabalho, como potência produtiva, como criadoras de valor, uma multiplicidade de sujetxs que historicamente foram definidxs como improdutivxs, ao mesmo tempo que eram superexploradxs. Desta maneira, o “paro” conseguiu traduzir novas gramáticas de exploração, nomeá-las e situá-las, estabelecendo novas gramáticas de conflito. Redefine assim o que é um conflito de “trabalho” porque o alarga: localiza-o, não só nas fábricas ou em espaços de trabalhos formais, para levá-lo a outros lugares – do lar às economias populares, das camponesas às migrantes sem documentos, das feiras aos restaurantes comunitários. Essa trama, que implica um processo político de organização, envolvimento e de compartilhamento, produz as condições para entender a conexão entre o trabalho doméstico e a exploração financeira, o trabalho precário e a hierarquia nos sindicatos, evidenciando as áreas de exploração que historicamente foram invisibilizadas e sua relação íntima com áreas de trabalho “visíveis”. O paro, por esta capacidade de mapear a heterogeneidade do trabalho a partir de uma chave feminista, tomou múltiplas formas, distintas modalidades de protesto, de assembleia, de usos da própria noção de parar e bloquear, de ocupar e esvaziar os espaços de trabalho, as casas e os espaços de produção nos bairros. A partir dessa multiplicidade, outra pergunta também encontra espaço: Por que o paro expressa um modo de subjetivação política, um modo de atravessar fronteiras sobre o limite do possível? Em meu livro, proponho o paro feminista como “lente” de leitura para as reconfigurações do capitalismo contemporâneo, de seus modos específicos de exploração e extração de valor, e das dinâmicas que lhe resistem, sabotam e contestam. Porque se o paro é um modo de parar a continuidade da produção do capital, entendido como relação social, é porque põe em marcha uma desobediência à contínua expropriação de nossas energias vitais, espoliadas em rotinas exaustivas. Por essas razões, novas perguntas continuam se abrindo: que acontece com a prática do paro quando é pensado e praticado com base em sensibilidades que não se reconhecem a priori como de classe e que, sem dúvida, desafiam a própria ideia de classe? Em que sentido esse “deslocamento” do paro, seu “uso” fora do lugar, remapeia as espacialidades e temporalidades da produção e do antagonismo? O paro reinventado pelo feminismo se transformou em seu sentido histórico também ao sair do âmbito estrito dos sindicatos: deixou de ser uma ordem emanada de cima (hierarquia sindical) que se acata ou adere, para converter-se em uma pergunta-investigação concreta e situada: que significa parar para cada realidade existente e de trabalhos diversos? Essa pergunta pode ter um primeiro momento que consiste em explicar por que não se pode fazer paro no lar, ou como vendedora ambulante, ou como encarcerada, ou como trabalhadora freelance (identificando-nos como as que não podem parar), mas imediatamente depois de verificada essa impossibilidade (completamente massiva em nossos países) assume outra força: essas experiências são levadas a ressignificar e expandir o que se suspende quando a greve deve compreender e acomodar essas realidades, ampliando o campo social em que a greve se inscreve e produz efeitos. No livro, descrevo várias situações concretas nas quais essa simultaneidade entre impossibilidade e desejo de parar abrem caminho para uma imaginação política radical. Por último, gostaria de sublinhar que o paro vai além e integra a questão trabalhista porque torna visível que paramos nosso trabalho e paramos contra as estruturas e a ordem que tornam possível a valorização do capital. Esses ordenamentos (da família heteropatriarcal à maternidade compulsória, do aborto clandestino à educação sexista) não são meramente questões culturais ou ideológicas. Eles respondem ao próprio entrelaçamento do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo e destacam que tipo de violência específica necessita hoje o capital e contra quais corpos e territórios ela incide de maneira diferenciada.
A economia feminista tem problematizado a invisibilidade dos trabalhos domésticos e de cuidados na Economia. Como as greves ajudaram a ampliar a visibilidade destas fronteiras do trabalho na produção e reprodução da vida? Verónica Gago – A greve feminista tem colocado o foco no terreno da reprodução para, como dizia antes, relevar e revelar todas essas tarefas como diretamente produtivas e obrigatórias por ordenamentos de gênero. O modo de visibilizar esses trabalhos imprescindíveis foi a base para sua interrupção: deixar de fazê-los para que sua ausência os torne evidentes em toda a sua presença historicamente invisível e desvalorizada. As teorizações feministas popularizaram a noção de tripla jornada: trabalho fora de casa, trabalho dentro de casa e trabalho afetivo de produção de vínculos e redes de cuidado. Parar essa multiplicidade de tempos é uma subtração que parece quase impossível, porque é nesse excesso que a vida e o trabalho se encontram e onde a reprodução visibiliza-se imediatamente como produção. Fazer “paro”, em todos estes tempos de trabalho, põe em relevo o tempo a partir do ponto de vista feminista, em sua condição sobreposta: como se “produz” a hora que mais tarde é contada como trabalho? Como se produzem xs trabalhadorxs para sua reprodução vital e cotidiana? Portanto, “parar”, nesta chave, é repensar tudo. No trabalho político da greve, realizado entre organizações territoriais e sindicatos, em universidades e em grupos de migrantes, tem-se feito tão popular o que Silvia Federici sintetiza sobre o trabalho reprodutivo dizendo: “não é amor, é trabalho não pago”. Isso significa uma historicização de como se tem organizado o trabalho reprodutivo em nossas sociedades capitalistas, patriarcais e coloniais. Destaca sua obrigatoriedade e sua gratuidade – também obrigatória, seu vínculo com a heteronormatividade, seu caráter de subordinação política ao trabalho considerado produtivo e, também, sua sobreposição com os trabalhos no mercado de trabalho, porque são poucas as que hoje fazem apenas trabalho reprodutivo em suas casas (a figura ideal da “dona de casa”). Além disso, o trabalho reprodutivo não é apenas o que acontece nos lares; também reúne uma série de qualidades que caracterizam cada vez mais o trabalho precarizado – e, por isso, fala-se de uma feminização do trabalho – em geral. Colocando em termos concretos: a dimensão gratuita, não reconhecida, subordinada, intermitente, e às vezes permanente, do trabalho reprodutivo serve hoje para ler os componentes que compõem as formas históricas das economias populares; mas também a precarização como um processo transversal atual. Fornece chaves sobre as formas de exploração intensiva das infraestruturas afetivas e, por sua vez, permite compreender o alargamento extensivo da jornada de trabalho no espaço doméstico e a disponibilidade permanente como recurso subjetivo primordial. Neste sentido, ao incluir o trabalho reprodutivo, mas também o trabalho migrante, precário, de rua, feminizado, a greve feminista tem permitido repensar, requalificar e relançar outro sentido para a greve geral. A tese seria assim: a greve geral se torna realmente geral quando se torna feminista. Porque ela primeira vez alcança todos os espaços, tarefas e formas de trabalho. Por isso, consegue enraizar-se e territorializar-se sem deixar nada de fora e a partir daí produz generalidade. Abarca cada rincão de trabalho não pago e não reconhecido. Traz à luz cada tarefa invisibilizada e não contabilizada como trabalho. E, ao mesmo tempo que as afirmam como espaços de produção de valor, as conecta em sua relação subordinada com outras formas de trabalho. Assim torna-se visível a cadeia de esforços que traçam um continuum entre a casa, o emprego, a rua e a comunidade. Ao contrário do confinamento a que se quer reduzir os feminismos (a um setor, a uma demanda a uma minoria), assumir que a greve é geral só porque é feminista, é uma vitória e é uma vingança histórica. É uma vitória, porque dizemos que se nós paramos, para o mundo. É, por fim, evidenciar que não há produção sem reprodução. E é uma revanche em relação às formas de greve em que o “geral” era sinônimo de uma parcialidade dominante: trabalho assalariado, masculino, sindicalizado, nacional, que sistematicamente excluía o trabalho não reconhecido pelos salários (e sua ordem colonialpatriarcal).
Como podemos pensar as recentes lutas pela legalização e descriminalização do aborto que atravessaram a América Latina e o mundo no último período frente a um contexto de fortalecimento de narrativas fascistas e retomada de uma agenda neoliberal mais ampla? Verónica Gago – Estou interessada em pensar qual é a relação entre ambas as coisas. Por isso, acredito que podemos entender o momento da fascistização atual em termos de contraofensiva. Quer dizer, constatar uma reação à força demonstrada pelos feminismos na região. É importante observar a sequência: a contraofensiva responde a uma ofensiva, a um movimento anterior. Isso envolve situar a emergência dos feminismos, em seu papel de desestabilização da ordem sexual, de gênero e política e tornando-se um ator-chave na disputa das fragmentações da crise econômica em curso. Acredito que é este movimento que deve localizar-se como anterior em relação à virada fascista subsequente na região, com conexões em nível global. Duas considerações emergem daqui. Em termos metodológicos: localizar a força dos feminismos em primeiro lugar, como força constituinte. Em termos políticos: afirmar que os feminismos colocam em marcha uma ameaça aos poderes estabelecidos e ativam uma dinâmica de desobediência que esses poderes tentam conter, opondo formas de repressão, disciplinamento e controle em várias escalas em um momento em que as relações de acumulação estão instáveis. A contraofensiva, em boa medida sintetizada pela “cruzada contra a ideologia de gênero”, é um chamado à ordem e é a produção de inimigos internos que concentra seu ataque nxs sujeitxs dxs feminismo. Por esta razão, a feroz contraofensiva desencadeada contra os feminismos nos dá uma leitura inversa, ao contrário, da força de insubordinação que se tem percebido como já acontecendo e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua radicalização. Neste sentido, o papel das lutas pela legalização do aborto na Argentina e em toda a América Latina acredito que é fundamental. Mas lembremos também que o “paro” na Polônia, em outubro de 2016, também protestava contra a restrição do direito ao aborto. E, ao mesmo tempo, vemos hoje um retrocesso a esse respeito em vários estados dos Estados Unidos. Em outras palavras, não é apenas uma questão do terceiro mundo. No direito ao aborto, está em jogo o poder masculino e eclesial sobre o corpo de mulheres e os corpos gestantes. Na Argentina, com a maré verde de 2018, temos visto a ampliação do debate sobre o aborto em termos de soberania, autonomia e classe, ao mesmo tempo que tem acontecido uma radicalização militante pelas novas gerações. A luta pelo aborto (e toda a reação conservadora que desperta) evidencia que não há forma de governo que não pressuponha intrinsecamente a subordinação das mulheres como o a priori dessa ordem estruturada por, como diz Carole Pateman, um contrato sexual. Por isso, a discussão leva diretamente a pensar a soberania dos corpos e, em particular, um vínculo interessante que concebe os corpos como territórios, segundo o conceito de corpoterritório lançado pelas feministas da América Central. Simultaneamente, a discussão sobre sua clandestinidade remeteu diretamente à importância dos abortos seguros e gratuitos, uma vez que são os custos que o tornam uma prática diferencialmente arriscada, de acordo com as condições sociais e econômicas. Aqui, como um desenvolvimento também presente no livro, tentou-se inverter a força que assumiu esse argumento classista para repudiar a clandestinidade, e a campanha construída a partir da hierarquia da Igreja Católica dizendo que o aborto é algo “estranho” e “externo” às classes populares; em outras palavras: que é uma preocupação exclusiva da classe média. Há mais uma questão: o debate ultrapassou o marco único do argumento da saúde pública, e do aborto como questão preventiva da gravidez não desejada, para abrir justamente as veias de exploração do desejo. A partir da palavra de ordem “a maternidade será desejada ou não será” até a reivindicação por educação sexual integral no currículo educacional, aprofundaram-se os debates sobre sexualidades, corporalidades, vínculos e afetos que deslocaram a questão de modo também radical. Isso permitiu inclusive variações das palavras de ordem sobre o aborto legal: não apenas no hospital, mas reivindicado também nas redes autônomas que o vêm praticando “em qualquer lugar”; não apenas educação sexual para decidir, mas para descobrir; não apenas contraceptivos para não abortar, mas sim para desfrutar; e não apenas aborto para não para morrer, mas para decidir.
A localização histórica das mulheres na economia reprodutiva e de responsabilidade com a reprodução da vida permitiria explicar as mulheres tornarem-se protagonistas nas lutas recentes, considerando as agendas de cuidados, as novas expressões de violência como o avanço sobre os territórios e a expropriação de bens naturais? Verónica Gago – Sim, acredito que hoje é evidente como a reprodução social da vida aparece retificando e repondo e, ao mesmo tempo, criticando o desmonte da infraestrutura pública e lutando na linha de frente contra as desapropriações dos territórios. Vemos isso tanto nas lutas antiextrativistas pela defesa da água e dos territórios como na maneira em que as economias populares constroem hoje infraestrutura comum para a prestação dos serviços chamados básicos, mas que não são: da saúde à urbanização, da eletricidade à educação, da segurança até os alimentos. Deste modo, eu me concentro no livro em como as economias populares funcionam simultaneamente como tecido reprodutivo e produtivo e, como tais, põem em debate as formas concretas de precarização das existências em todos os planos. É por isso que eles conseguem denunciar o nível de desapropriação nos territórios urbanos e suburbanos, que é o que possibilita novas formas de exploração. Por sua vez, isto implica a implantação de um conflito concreto sobre os modos de entender o território como uma nova fábrica social. Com a contraofensiva econômica atual (que anda junto com a contraofensiva militar e a contraofensiva dos fundamentalismos religiosos) vemos uma característica fundamental do neoliberalismo: o aprofundamento da crise da reprodução social que é sustentada por um aumento do trabalho feminizado que substitui as infraestruturas públicas e permanece envolvida na dinâmica da superexploração. A privatização dos serviços públicos ou a restrição de seu alcance significa que essas tarefas (saúde, cuidados, alimentação etc.) devem ser supridas pelas mulheres e os corpos feminizados como tarefa não remunerada e obrigatória. Nesta chave, acredito que se compreende uma agenda de uma ética de cuidado que vocês mencionam: ampliando a noção de cuidado para além do marco familiar e, ao mesmo tempo, transformando-a em uma ferramenta de valorização das resistências vitais.
Você propõe em seu livro, A razão neoliberal, compreender a “captura” das tramas vitais da produção do cotidiano por uma racionalidade neoliberal, e a partir dessa “captura”, como a produção da vida passa a trabalhar para uma “financeirização” da vida. Como podemos pensar essa produção de subjetividades e de economias barrocas? Verónica Gago – Em A razão neoliberal me propus discutir a noção mesma do neoliberalismo, o modo de historicizá-lo em nossa região, de aprofundar debates teóricos e de traçar genealogias a partir das lutas, dando uma ênfase especial ao que significou na Argentina a crise de 2001. Este interesse surgiu junto com a investigação que realizei durante muitos anos sobre economias populares, as estratégias de trabalho, de comercialização e de politização que daí se desdobram. Daqui também começo a refletir como o neoliberalismo não vem só “desde cima” (governos, corporações e organismos internacionais), mas que se faz persistente justamente porque consegue ler e capturar – ou seja, expropriar – tramas vitais que operam produzindo valor, inventando recursos onde não existem, repondo infraestrutura popular ante a expropriação e criando modos de vida que excedem as fronteiras do capital. Como o neoliberalismo vai metamorfoseando-se em nossos países me parece um ponto-chave, que geralmente fica fora de certas caracterizações mais gerais que “aplicam” o termo chave do neoliberalismo a todo o planeta. Eu me propus entendê-lo e contextualizá-lo a partir de seu desembarque e ensamblagens com situações concretas. Na nossa região, essas situações concretas são os territórios nos quais se cozinhou a revolta popular contra a legitimidade política do neoliberalismo nas crises do início dos anos 2000 a que me referia antes. Aí há uma singularidade porque são essas situações nas quais a exigência popular abre uma temporalidade de revolta que logo se mistura com uma tentativa de reconhecimento e estabilização por cima. São estas “economias barrocas”, como as chamo, que obrigam a pluralizar o neoliberalismo além de suas características mais conhecidas (privatizações, desregulamentação, mercantilização etc.). Aqui situo claramente uma perspectiva que olha para “baixo” para encontrar aquilo que antagoniza, e que arruína, estraga e/ou confronta essa pretensa hegemonia, sem por isso ter um programa “anticapitalista” em termos puros ou precisos, mas que não abandona a luta “contra” os modos de expropriação do capital. Essa zona do “entre”, heterogênea e promíscua, é o que me interessa colocar em foco. Com a questão financeira isto se exaspera, acelera, volta mais intensa. Na América Latina, entender como a dívida extrai valor das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias populares, das economias camponesas, das economias consideradas historicamente não produtivas, permite captar os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de colonização da reprodução social. Entendo que a partir daqui podemos ver como funcionam hoje novas formas de extração de valor que exploram trabalhos precários e informais e, ao mesmo tempo, como esses dispositivos de dívida funcionam a partir da moralização das existências desprezadas nas ordens de gênero. Quer dizer, na captura de valor que a dívida pratica, podemos ver uma certa articulação entre reprodução e produção que tem a família heterossexual como núcleo e a superexploração como trama contínua. Com Luci Cavallero temos aprofundado esta investigação fazendo “uma leitura feminista da dívida”, no calor da organização da greve feminista. Temos trabalhado a articulação entre endividamento e trabalho reprodutivo, e também, como a violência machista se faz ainda mais forte com a feminização da pobreza e a falta de autonomia econômica que o endividamento implica. As companheiras da Criação Humana Editora publicaram, esse texto no Brasil, pelo qual esperamos que se converta em uma possibilidade de intercâmbios aqui também.
Você propõe que o neoliberalismo se enraíza nas lógicas comunitárias e isso produz uma experiência de ambivalência na produção do cotidiano, porque a lógica comunitária se opõe à organização macroeconômica. O que poderíamos chamar de resistência nesses contextos? Verónica Gago – Entendo que as dinâmicas comunitárias são um compêndio de saberes, tecnologias e temporalidades históricas que entram em um complexo sistema de relações variáveis com os diversos momentos do capitalismo em suas, também diversas, fases coloniais. Mas, sobretudo, são recursos enormes que se põem em jogo nos protestos, nos movimentos sociais, e também nas formas de economia popular e nas trajetórias migrantes, tanto em sua capacidade de disputar formas de vida com o capitalismo colonial e patriarcal como por abrir espaço em realidades de extrema expropriação e violência. Claro, também há um aproveitamento e uma exploração dessas modalidades comunitárias na medida que se busca compatibilizá-las com as ordens de flexibilidade, precariedade e autogestão da reprodução social como maneira de desresponsabilizar os Estados de certas obrigações. Em todo caso, para pensar essas questões eu trabalho principalmente em diálogo com os textos da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e com os da matemática mexicana Raquel Gutiérrez Aguilar, as quais, para mim, são fundamentais para compreender e situar uma riqueza comunitária que está em permanente tensão entre a exploração e as reinvenções de um horizonte comunitário-popular, para uma multiplicidade de lutas. Esses debates se cruzam com as dinâmicas ambivalentes de subjetivação na governamentalidade neoliberal e, portanto, complexificam as experiências de resistência e insubordinação, tanto nos momentos cotidianos como nos momentos de desdobramento massivo e coletivo. Aqui também me parecem importantes as reflexões das feministas J. K. Gibson-Graham7 e seu trabalho por visibilizar “economias diversas”. Elas o fazem também derivando de Marx uma noção de diferença. A partir daí põem a ênfase em economias que teriam capacidade prefigurativa, antecipatória, em seus desenvolvimentos no presente como não capitalistas. Trata-se de uma perspectiva que põe em relevo o caráter experimental das economias comunitárias que conseguem abrir e descolonizar a imaginação econômica sobre como representamos as alternativas anticapitalistas e como desconstruir a hegemonia do capital a partir dos espaços, aqui e agora. A diferença age para iluminar a realidade efetiva de práticas que negam o capital. Mas, também buscam dar à noção de diferença um caráter processual e experimental. Sua aposta nos permite pensar as economias diversas desde o devenir: elas argumentam que se tem que “cultivar” o desejo e as subjetividades que habitam esses espaços não capitalistas. Deste modo, entrelaçam uma subjetividade que está por vir, mas que por sua vez se constrói com a materialidade do desejo de outra vida no presente. Isso me parece que é importantíssimo para não seguir idealizando um programa “anticapitalista” puro e perfeito, pronto para ser aplicado e, portanto, sujetxs igualmente purxs e já completxs. Para voltar ao início: acredito que exercícios coletivos como o processo político da greve feminista permitem-nos praticar esse caráter processual e experimental do desejo de transformação de nossas resistências.
A informalidade tem crescido e se transformado na América Latina apresentando contornos a cada dia mais complexos. Que lugar a informalidade ocupa na produção dos territórios? Verónica Gago – A visão dominante sobre a informalidade aponta que se trata de uma economia realizada por pessoas pobres que desenvolvem atividades desorganizadas por fora dos marcos legais (podemos remontar aos anos 1970, quando se produz a incorporação da categoria “economia informal” impulsionada por parte da OIT a partir do trabalho de Keith Hart sobre o Quênia). Parece-me que toda uma série de conceitos e premissas se encadeiam e devem ser criticados: a informalidade como sinônimo de ilegalidade e as assim chamadas economias de subsistência como sinônimo de pobreza. O colonialismo dessas caracterizações é histórico. Creio que há perspectivas, por outro lado, que buscam localizar a quem se desenvolve nas economias populares como parte de uma relação social e laboral específica, na medida em que se trata de uma relação na qual a estrutura dos custos (fiscais, de bens e de capital) é assimétrica com a valorização do trabalho. Funda, neste sentido, um tipo de relação social de exploração que devemos entender com mais profundidade. Por exemplo, como a captação do mais trabalho passa pelo consumo, por uma estrutura fiscal regressiva e por um custo financeiro altíssimo no endividamento do qual falávamos antes. São realidades que emergem frente à desestruturação neoliberal do mundo do trabalho assalariado como modelo capaz de incluir as massas em sua maioria urbanas, e frente ao aprofundamento dos regimes laborais predominantemente flexíveis e desprotegidos no interior desse esquema global. Em termos espaciais, aparecem de modo mais generalizado como uma experiência de bairros marginais ou periféricos das metrópoles latino-americanas e terceiromundistas do chamado Sul Global. São nesses territórios e nessas economias onde se produzem novas imagens da conflitividade trabalhista, mas em uma chave de conflitividade social difusa, ampliando os limites da experiência proletária. Isso quer dizer que essas economias reconceitualizam praticamente o que entendemos por trabalho, enquanto sistematizam formas de trabalho que hoje em nosso continente são majoritárias e que não cabem na categoria de marginais simplesmente por não serem assalariadas de modo estrito. Pensando assim, emergem outras geografias do trabalho que permitem entender os processos de valorização do capital como parte de um processo de colonização em direção a novos territórios que se transformam em espaços de conflito. Claro que um novo tipo e escala de violência está profundamente entrelaçada com as economias populares que todo o tempo trabalham na fronteira (e borrando o limite) entre legalidade e ilegalidade. É justamente a regulação e gestão permanente dessas fronteiras que ficam a cargo das novas “forças” paramilitares, paraestatais etc. Essas violências se moldam em uma dimensão territorial específica. A conflitiva ocupação da terra em áreas urbanas e suburbanas dos últimos anos (que aumenta os conflitos nos territórios camponeses de longa data intensificados pela voracidade do agronegócio) tem assumido uma escala de violência e complexidade que está diretamente vinculada à multiplicação de atores que envolve a especulação imobiliária e que assume modalidades que são ao mesmo tempo formal e informal, legal ou ilegal.
Da época do lançamento de A razão neoliberal até hoje o contexto político e econômico mudou: vemos uma ofensiva ultraconservadora na América Latina e no mundo, um processo articulado e sistêmico. Como localizar as elaborações que você traz no livro para ler este momento? Verónica Gago – A situação no Brasil com o assassinato de Marielle Franco e o triunfo de Bolsonaro tem levado a pergunta sobre o neoliberalismo mais longe: como se está relançando a acumulação neoliberal em aliança com o fascismo com formas extremas de racismo, sexismo e classismo? O neoliberalismo necessita agora aliar-se com forças conservadoras retrógradas porque a desestabilização das autoridades patriarcais põe em risco a própria acumulação do capital. Diríamos assim: o capital é extremamente consciente de sua acumulação orgânica com o colonialismo e o patriarcado para reproduzir-se como relação de obediência. Uma vez que a fábrica e a família heteropatriarcal (mesmo que imaginários) não consigam sustentar disciplinas e uma vez que o controle de segurança é desafiado por formas feministas de gestar a interdependência em épocas de precariedade existencial, a contraofensiva se redobra. Por isso, tem que introduzir em nossa atualidade outra “cena” que abre novas leituras dinâmicas do neoliberalismo. Refiro-me ao movimento feminista que nos últimos anos tem tomado as ruas de modo massivo e radical e que tem transbordado os limites nacionais impulsionando um movimento verdadeiramente internacionalista e cujas ressonâncias fundamentais se enlaçam na América Latina, o melhor: em Abya Yala, traçando novas temporalidades e geografias. Assim, vemos muito claramente por que neoliberalismo e conservadorismo compartilham objetivos estratégicos de normalização. Claro que isso não é uma novidade na América Latina. Aqui, a origem do neoliberalismo é indiscriminadamente violenta. São as ditaduras que vieram reprimir um ciclo de lutas trabalhistas, estudantis e de bairros que marcam seu início. Como princípio do método e como perspectiva desse continente, portanto, é necessário sublinhar a emergência do neoliberalismo como resposta a certas lutas. Por isso, o neoliberalismo se apresenta como um regime de existência do social e um modo do comando político instalado regionalmente, com o massacre estatal e paraestatal da insurgência popular e armada, e consolidado nas décadas seguintes a partir de grandes reformas estruturais, de acordo com a lógica de ajuste de políticas globais. Com isso, quero dizer que a conjunção do neoliberalismo e do fascismo tem, na América Latina, um arquivo-chave. Creio que esse ponto permite, como mencionava, colocar outra perspectiva à ideia de “novidade” de um neoliberalismo que tem deixado sua roupagem liberal e inclusive progressista para conectar sua atualidade com a experiência originária em certas regiões (sem dúvidas, terceiro-mundistas) do mundo.
Esse seminário internacional se propõe a construir uma leitura a partir de quatro preocupações: o extrativismo ampliado, o sistema financeiro, as economias populares e o futuro do trabalho, e apontar caminhos. Quais estratégias são possíveis para essa articulação feminista dentro do contexto que estamos vivendo? Verónica Gago – O movimento feminista a partir da sua multiplicidade (feminismos populares, villeros, indígenas, comunitários, negros, queer, trans) tem desbloqueado uma articulação por baixo das conflitividades e das lutas. Mas isso não é fácil: hoje assume uma multiplicidade de violências articuladas e incrementadas que irrompem nos corpos e nos lares, nos territórios urbanos e rurais e nos locais de trabalho, nas camas e nas fronteiras. E o faz produzindo um diagnóstico feminista dessa conflitividade – que inclui desapropriações e feminicídios, exploração e endividamento, racismo e abusos – baseado em lutas concretas, o qual conecta e enlaça a dor de cada uma com um corpo-território mais amplo. Como dizia antes: por que o movimento feminista politiza de maneira nova e radical a crise da reprodução social como crises, ao mesmo tempo, civilizatória e da estrutura patriarcal da sociedade, o impulso fascista que se põe em marcha para enfrentá-lo propõe economias da obediência para canalizar a crise. Seja pelo lado dos fundamentalismos religiosos ou pelo lado da construção paranoica de um novo inimigo interno, o que constatamos é uma tentativa de aterrorizar as forças de desestabilização arraigadas em um feminismo que tem ultrapassado as fronteiras e é capaz de produzir um código comum entre lutas diversas. O movimento feminista, tomando também as finanças como um terreno de luta contra o empobrecimento generalizado, pratica uma contrapedagogia a respeito de sua violência e suas formas abstratas de exploração dos corpos e dos territórios. Tudo isso nos dá, outra vez, uma possibilidade mais ampla e complexa de entender o que diagnosticamos da aliança do neoliberalismo com as forças conservadoras que se expressam como violências que tomam os corpos feminizados como novos territórios de conquista. Por isso, é necessário animar a crítica ao neoliberalismo como um gesto feminista sobre a maquinaria da dívida – como dispositivo generalizado de exploração financeira -, porque é também apontar contra a maquinaria neoliberal da culpabilização, sustentada pela moral heteropatriarcal e pela exploração de nossas forças vitais. O movimento feminista atual repõe a chave antineoliberal como antagonismo. Por isso mesmo reabre a dinâmica que redefine o neoliberalismo “desde baixo” em termos de seu confronto corpo a corpo. A razão neoliberal se opõe hoje a uma potência feminista (que é a sensibilidade, modo de cálculo, estratégia e produção de sentido): isto é, um modo de pensar, fazer, lutar e desejar que ultrapassa a opção imposta entre ser vítima ou empreendedora (ambas opções de subjetivação do catálogo neoliberal). Por isso mesmo, porque se mete na trincheira cotidiana de disputa com o capital e com os modos renovados de exploração e extração de valor, o movimento feminista atual recebe uma contraofensiva feroz: militar, financeira e religiosa. Estamos precisamente nessa luta agora: não nos deixando expropriar pelo neoliberalismo aliado com o fascismo, com dinâmicas feministas que, juntas, se responsabilizam “desde baixo” por abrir novas possibilidades vitais para todes.
Mônica Vilaça é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, na linha de Trabalho, Políticas Sociais e Desenvolvimento. E-mail: [email protected]
Bárbara Freitas é mestre em Estudos Interdisciplinares em gênero, mulheres e feminismo, PPGNeim – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]
Laboratoria: espaço transnacional de investigação feminista
por Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda.
“A dívida é a escravidão moderna”. Imagem: reprodução.
“Dívida ou vida” dizia um grafite de rua na Calle de la Fe, no bairro madrilenho de Lavapiés. Entendemos dessa demanda: nossa luta pelo direito à moradia digna é, fundamentalmente, uma luta contra a dívida. Nosso movimento, a Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca, leva o nome escolhido em meio ao grande estouro da bolha hipotecária que vivíamos na Espanha a partir do final dos anos 2000. Porém, de uma forma ou de outra a dívida havia pousado em nossas vidas muito antes de sermos hipotecados ou não.
Ao longo de 2020 realizamos uma série de entrevistas, conversas e encontros entre as mulheres da nossa assembleia, das quais nasceu o caderno Até a queda do Patriarcado e não haver mais um despejo. Dívida, habitação e violência patriarcal. Nas histórias, além da hipoteca, apareceram dívidas contraídas para migrar ou estudar; microcréditos para abrir uma empresa, mas também para cobrir emergências de trabalho, como perda de ferramentas de trabalho; dívidas para cobertura privada de saúde; empréstimos ao consumidor e compras parceladas; empréstimos para pagar as contas, para necessidades atuais, como alimentos, produtos de higiene, gasolina, água e eletricidade ou medicamentos. Não houve vidas que não tenham passado por endividamento em um momento ou outro, mas sabemos que, mesmo que o fizesse, a dívida também estaria na vida dessas pessoas por meio da dívida pública e seus mandatos políticos se traduziriam em cortes no sistema de serviços públicos.
A dívida é, ao mesmo tempo, um sistema de formação social que produz obediência; um mecanismo de extração de nossa força vital e de trabalho; e uma máquina geradora de vulnerabilidade, que não só nos expõe à violência financeira que se pratica na relação credor-devedor, mas também a outras violências racistas, sexistas e heteropatriarcais ou trabalhistas. Essas três funções – obediência, extração, vulnerabilidade – são muito úteis no nível estrutural do funcionamento do capitalismo global. Primeiro você cria uma mentalidade, uma predisposição e até uma aceitação; serve para que a nossa criatividade, a nossa energia e o nosso corpo sejam produtivos em contextos utilizáveis para a produção de lucro para os outros, que se acumula nas suas mãos em vez das nossas; e no final essa distribuição de funções se soma a outras violações de nossos direitos que nos deixam sem opção, nem mesmo a possibilidade de fugir.
Uma vez que reconhecemos o que já expomos, começamos a ver outras nuances. Não basta dizer “dívida ou vida”, porque as características de cada dívida definem qual vida e em que condições ela é permitida. Define o ponto de partida da luta, porque olhar atentamente para essas características permite inventar formas de alargar as condições que se dão, de lutar por mais espaço para a vida. Por isso, embora entendamos o endividamento como um mecanismo opressor, embora nos oponhamos à centralidade que ganhou na organização social, embora resistamos à obrigatoriedade do endividamento… as nossas realidades e a nossa luta obrigaram-nos a perguntar também: como viver com dívidas, uma vez que as temos?
Temos dívidas… e ainda assim vivemos. Acreditamos que existe uma conexão entre os efeitos que a dívida tem em nossas vidas e os fatores que diferenciam cada um dos nossos endividamentos. Em nossas conversas, as questões que interessaram foram o valor total da dívida; o valor mensal a ser pago – definido pelos juros e pelo prazo de amortização, além do total –; as garantias entregues e/ou os fiadores a considerar; as condições de retorno e a possibilidade de alterações, tais como a carência, etc; o envolvimento ou não de relações pessoais no esquema de dívidas e reembolsos; também a natureza da parte credora e que tipo de conduta se pode esperar dessa parte. Então nos perguntamos: como se endividar, se for preciso, em menos quantidade e com melhores condições?
Não estamos pensando em esquemas de pirâmide ou ONGs de microcrédito navegando nas bandeiras do feminismo pseudo-espiritual, liberal, caritativo ou tecnocrático. Pensamos em um futuro compartilhado de redes globais de resistência diante da realidade atual do endividamento obrigatório, capaz de mesclar estratégias de default organizadas com a construção de economias comunitárias justas, dignas e sustentáveis. Todas nós contraímos dívidas e queremos viver para contar a respeito. Qual é o seu histórico de dívidas?
Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda são integrantes de PAH Vallekas e seu grupo de mulheres.
Feminista, socióloga e pesquisadora, Lucía Cavallero propõe democratizar essa discussão financeira e retirá-las dos lugares masculinizados. Entrevista para La Rioja/12.
“Tirar a dívida do armário” é um dos capítulos do livro “Uma leitura feminista da dívida”, que Lucía Cavallero escreveu junto a Verónica Gago para analisar o impacto do endividamento externo nos lares. Feminista, socióloga e pesquisadora, Cavallero dialogou com La Rioja/12 sobre como o endividamento afeta de forma diferente as mulheres e pessoas LGBTQIA+. Diretora do Programas Especiais para a Igualdade de Gênero do Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual da província de Buenos Aires, ela diz que “é preciso democratizar a discussão financeira.”
Imagem da matéria “Fome no Brasil tem rosto de mulher, negra e de baixa renda” da Revista Marie Claire.
O que significa uma leitura feminista da dívida?
Uma leitura feminista da dívida traz novidades para pensar o problema das finanças em uma conjuntura particular que tem a ver com uma ruptura epistemológica, cognitiva que os feminismos significaram para pensar os problemas econômicos, sociais e políticos, a partir da massificação do movimento feminista nos últimos anos que também tem sido categorias políticas. Acredito que Uma leitura feminista da dívida é parte desse processo e também condensa investigações pessoais minhas e de Verónica Gago e são alguns pontos importante para pensar o mundo das finanças. Acredito que é preciso discutir quem deve falar das finanças, democratizar essa discussão financeira, tirá-las de lugares masculinizados e dos lugares de especialistas e poder falar da vida cotidiana. É também uma maneira de investigar os impactos do endividamento desde os corpos concretos tratando de desarmar essa abstração financeira que sustenta o mundo das finanças. Isso faz parecer que o endividamento se reproduz sozinho e não tem nada a ver conosco, que trabalhamos e colocamos o corpo no dia a dia. Nos propusemos a fazer a investigação contrária. Perguntamos quem são as pessoas que se endividam, por que se endividam e para que se endividam, e quais são as relações entre dívida privada e os lares com os processos de endividamento externo. Vários pontos trazem Uma leitura feminista da dívida. É uma leitura situada e muito concreta do impacto do endividamento.
Há uma relação entre divida privada e o endividamento externo?
É importante pontuar que os processos de endividamento externo associados aos organismos internacionais trazem uma série de condicionalidades para os governos que implicam impactos diferenciados. Situando-nos no último acordo assinado por Mauricio Macri e em 2018, com o empréstimo stand-by firmado com o FMI, trouxeram uma série de impactos no cotidiano de mulheres, lésbicas, travestis, trans. Em primeiro lugar, houve uma queda no nível de renda e salários, e aumento da informalidade do trabalho, do desemprego das mulheres, e houve um processo inflacionário muito importante do qual ainda não conseguimos sair e até aumentou. Esse endividamento, ao mesmo tempo, se traduziu em uma maior necessidade das casas se endividarem. Existem três particularidades desse fenômeno. Tem a ver com a dívida nas casas, mas cresceu como um endividamento para viver, que é algo que não havia acontecido de maneira tão intensa em outros momentos da nossa história, aparece também uma feminização do endividamento, porque são as mulheres que se endividam, porque é delas a função de sustentar as economias na crise e há um endividamento com taxas muito altas.
Depois veio a pandemia
Depois veio a pandemia e a renda não havia se recuperado do que aconteceu no período macrista, e também produziu uma série de dinâmicas que intensificaram o endividamento. A primeira foi que muitas mulheres precisaram ficar em suas casas com maiores cargas de tarefas de cuidado sem poder distribuí-las de outra maneira por causa do perigo de contagio. Houve uma queda dos salários e da renda em geral e uma maior vulnerabilidade ao superendividamento na pandemia. Novas fontes de dívida surgiram, como por exemplo, dívida por aluguel. E está diretamente relacionado ao aumento das tarefas de cuidado e participação no mercado de trabalho.
Com o que se endividam as mulheres e pessoas LGBTQIA+ atualmente?
Hoje nos endividamos porque a renda não é suficiente e se você está no setor popular pode se endividar porque não pode comprar comida. A renda não é suficiente para comprar alimentos que durem até o final do mês e é aí que vem a dívida, o que faz com que você já inicie o mês seguinte endividade e que volte a se endividar já que a sua renda não basta. Também pode acontecer para comprar medicamentos, existem pessoas que se endividam com o aluguel porque antes de deixar de pagá-lo preferem fazer um empréstimo para pagar outras coisas. E depois há outros tipos de endividamento que não são tão problemáticos e acontecem para coisas pontuais como eletrodomésticos, viagens. O que é tão difundido é esse endividamento que começa a vir para completar a renda e que é usado para viver.
Deveria compor a agenda do Estado pensar políticas publicas sobre o endividamento?
O endividamento é um fator importante hoje em dia e que significa o mal estar da grande maioria da população. Sabemos que viver endividades tem um impacto também na subjetividade emocional da vida cotidiana e o Estado deve combater esse problema de maneira integral, pensando que não se pode naturalizar estar endividade para viver e, então, deve haver uma política de recuperação de renda e salários; tem que existir uma política de cancelamento de dívidas, porque as pessoas acumularam dívidas desde o macrismo e na pandemia, e não foi solucionado o cancelamento da dívida interna. Deve ser aplicado um grande plano de desendividamento das famílias, permitindo que todos recuperemos esse tempo em que não pudemos ganhar da inflação.
O acesso à terra ainda é uma dívida do Estado?
Sim, acredito que ainda que estejamos conceituando o problema, a lei de terras está travada no Congresso. Faz tempo que foi apresentada por organizações campesinas e não foi pra frente e é preciso garantir o acesso das mulheres à terra, já que são elas que não são, em sua grande maioria, proprietárias entre aqueles que detém as terras, e são elas que não tem meios de produção para produzir e ao mesmo tempo estão propondo métodos alternativos de produzir, de cadeias alimentares que poderiam avançar no combate à inflação.
Uma mulher e uma criança na fila para pegar comida, frutas e água na praça da Estação em 5 de junho de 2020 em Belo Horizonte, Brasil. Foto: Pedro Vilela.
A pandemia elevou o espaço doméstico como refúgio frente a possibilidade de contágio. “Fique em casa” tornou-se a palavra de ordem para cuidar de si mesmo. E, ao mesmo tempo, a dívida entrou em todas as casas. O que aconteceu quando a vida se limitou aos espaços que os feminismos já haviam apontado como lugares onde se combinam formas de opressão, exploração e “dívidas são produzidas”? A socióloga Lucía Cavallero analisa a repercussão das políticas de ajuste das famílias como dívida doméstica, o paradoxo de que o lugar “seguro” se tornou ao mesmo tempo um território de conquista para o capital financeiro e as implicações do mandato de ter que tomar empréstimos para viver.
Notas para a análise do endividamento do ponto de vista feminista
O debate sobre o endividamento externo deslizou pela janela da campanha eleitoral, tornando inevitável a discussão pública sobre seu impacto, sua origem e sua legitimidade. Mas o que essa obrigação de falar sobre dívida expressa? Que experiência do social a torna inevitável? Por que o tempo de endividamento marca o cotidiano das grandes maiorias das populações? Qual é a ligação entre dívida externa e dívidas privadas? A dívida entra nas casas, não apenas como uma discussão midiática, mas também como uma experiência concreta de estar endividadxs para viver. Neste artigo, proponho dar um relato das chaves metodológicas e políticas a partir da reflexão feminista, para entender a espacialidade e o impacto do endividamento em nossas vidas, postulando que essas reflexões são fundamentais na democratização da discussão sobre o mundo financeiro.
Começar pela casa
Os feminismos têm desordenado os binarismos clássicos que estruturam o imaginário econômico. Assim, tem sido questionada a oposição entre o produtivo e o doméstico e a divisão entre o que conta como “público” e o que conta como “privado”. Isso implica uma ruptura epistemológica na forma de abordar problemas econômicos, ao localizar a vida cotidiana, o espaço doméstico e o trabalho comunitário como lugares estratégicos onde há exploração, mas também resistência. Nesse processo de redefinição das categorias econômicas e, portanto, políticas, a análise do processo de financeirização da vida cotidiana não tem ficado isenta.
Nesse sentido, a perspectiva feminista contribuiu para a pedagogia contra a dívida externa que, em geral, estava associada ao ensino sobre seus efeitos macroeconômicos, de forma desgenerizada, desracializada e sem referências concretas à vida cotidiana. Isso está relacionado ao que a historiadora e filósofa feminista Silvia Federici conceituou como a desvalorização histórica do espaço doméstico como um lugar onde o trabalho das mulheres e corpos feminizados é implantado e com a produção desse espaço como espaço privado, fora da visibilidade pública. Ao mesmo tempo, o espaço doméstico tem sido abordado, inclusive a partir de perspectivas da economia feminista, enfatizando seu caráter desmercantilizado, ou seja, longe do mundo financeiro. Minha perspectiva problematiza essa dupla invisibilização, que nos permite ir na direção oposta à lógica financeira, que finge que a dívida permanece abstrata, que se inviabilize os trabalhos daqueles que a nutrem, que apaga sua gênese violenta também nas casas para produzir um efeito de afastamento com qualquer vida cotidiana. Nesse sentido, minha proposta é aprofundar a caracterização desse espaço doméstico tanto como uma espacialidade concreta do impacto da dívida externa como também como um espaço onde “se produzem as dívidas”[1].
Juntes pelo endividamento
Em nossa “Leitura Feminista da Dívida“[2] investigamos como o endividamento com o Fundo Monetário Internacional feito durante o governo de Mauricio Macri, foi traduzido em políticas de ajuste que se derramaram nos lares como dívida doméstica. Assim, em decorrência da inflação e da consequente perda do poder aquisitivo de subsídios e salários e da dolarização de alimentos e medicamentos, fora produzida uma realidade em que o endividamento se tornou necessário para acessar os bens mais básicos. Isso é o que chamamos de “colonização financeira da reprodução social”[3]. A particularidade desse fenômeno é que o endividamento já não aparece mais associado ao consumo pontual de um bem ou serviço, mas tornou-se uma forma permanente de completar a renda. Aqui, então, uma descoberta importante: há uma mudança qualitativa no que significa dívida nas casas quando aparece como um mandato de envididar-se para viver. Isso constitui uma contribuição feita a partir de uma leitura feminista da dívida partindo da investigação de seus efeitos no cotidiano e centralizando a analise em quem sustenta as economias domésticas nos momentos de crise. Endividar-se para viver, entãoo, tem impactos subjetivos que reorganizam o cotidiano e o espaço doméstico e intensificam os mandatos de género agora associados ao pagamento das dívidas. A presença cotidiana do endividamento põe a dívida no centro, dirigindo todas as energias e esforços para evitar o atraso, inclusive recorrendo a empréstimos familiares e ajudas que também podem significar por em risco vínculos próximos e barriais.
Portanto, é necessário pensar como o endividamento externo, nos últimos anos também foi vivenciado como uma experiência concreta de endividamento na vida cotidiana. Assim, como mencionei, a monumental dívida externa negociada durante o governo de Mauricio Macri deu um salto qualitativo: foi traduzida com velocidade sem precedentes na experiência diária de estar endividada para viver, enquanto a moeda estava desvalorizada e os investimentos internacionais iam embora.
Essa realidade afetou especialmente as mulheres que tomaram empréstimos principalmente através de subsídios como a “Asignación Universal por Hije.” Esse fenômeno se confirmou de forma muito eloquente nos dados do “Centro de Economía Política Argentina (CEPA) [4] sobre o endividamento dos lares pobres: a quantidade de créditos otorgados as beneficiárias de AUH atingiu 92% das alocações existentes entre 2016 e 2019. Em relação aos subsídios sociais, um estudo do Observatório de Direito Social do CTA-Autónoma [5] mostra como o valor da “Asignación Universal por Hijx (AUH)” foi se desvalorizando ao longo do período, tornando-se uma mera garantia para endividar-se.
Outra particularidade que vale a pena assinalar são as principais formas de endividamento. Nos setores populares, há uma diversidade de prestadores de dívidas (com quadro jurídico diferente cada um) que, nas economias domésticas, se sobrepõem e se encadeiam. Portanto, em uma mesma unidade doméstica, convergem diferentes formas de endividamento. Uma parcela significativa do endividamento ocorre por meio de “novas entidades ou marcas” chamadas de “licitantes não bancários”, algo que já havia sido apontado por estudos anteriores [6]. Segundo relatório do Banco Central da República Argentina [7] (6), a partir de outubro de 2020 o número de devedores atendidos pelo OPNFC (Outros Provedores de Crédito Não Financeiro) ultrapassa 6,1 milhões, 45% do universo total de devedores em todas as entidades. Essas instituições financeiras não bancárias e instituições não financeiras oferecem empréstimos a taxas substancialmente superiores ao sistema de crédito formal, aumentando as desigualdades entre os setores sociais.
As casas tornaram-se, assim, um espaço de superendividamento que faz com que a espacialidade doméstica se volte estrategicamente para a politização da dívida: como um lugar concreto de impacto do endividamento externo e como espaço de conexão entre endividamento externo e endividamento privado.
A pandemia: mais trabalho de cuidado e mais endividamento
Como fenômeno geral durante a pandemia de Covid-19 tem havido uma diversificação e incremento do endividamento, onde as dívidas “nao bancárias” por atrasos de impostos, serviços de luz, agua, gás, cresceram a ritmo acelerado. Em nossa pesquisa [8], que contou com um trabalho qualitativo na Villa 31 y 31 Bis durante o mês de abril e maio de 2020 detectamos um aumento nas dívidas informais de aluguel que aceleraram os despejos durante a pandemia. Como eu apontei, essas dívidas convivem com outras fontes de endividamento, como empréstimos familiares e empréstimos com financiadores de bairros. Também detectamos e investigamos o surgimento do endividamento por meio de empresas fintech. A fintech é uma nova tecnologia, em um momento de expansão na Argentina e, em particular, diante da crise desencadeada pela conjuntura da pandemia global, que está levando o processo de banco monetário e digitalização a níveis muito mais intensos.
Todo esse fenômeno tem uma velocidade e uma escala impensável diante das restrições presenciais impostas pela pandemia e, por sua vez, torna-se um meio particularmente ágil de acelerar o endividamento devido ao aprofundamento da crise de renda para esses setores que veem suas possibilidades de trabalho reduzidas. Esse avanço das tecnologias financeiras não se baseia apenas no fato de que elas se tornaram a forma preferida de chegada de subsídios emergenciais à população não bancarizada, mas também que trabalham sobre uma população bancária que tem contas de poupança gratuitas em pesos, cujos 62% pertencem a beneficiários de planos sociais e 28% aos benefícios previdenciários, de acordo com dados do Relatório de Inclusão Financeira do BCRA [9].
Ao mesmo tempo, para levantamento da situação de uma população com maiores níveis de acesso ao trabalho formal e com contratos formais de aluguel, trabalhamos juntos em uma pesquisa com a organização Inquilinos Agrupados para levantamento dos dados de endividamento. Os dados mais recentes, de setembro de 2021, indicam que aproximadamente 50% das famílias que alugam têm dívidas[10], evidenciando que o endividamento para acessar bens básicos se estende a parcelas da classe média.
Uma dimensão importante em relação ao estudo do endividamento doméstico é compreender sua relação com o trabalho não remunerado, em sua maioria feminizado. Essa proposta é uma chave metodológica que acrescenta nossa perspectiva feminista de endividamento e que foi fundamental para entender o impacto da pandemia na espacialidade doméstica.
Assim, a necessidade de endividar-se para viver se faz ainda mais forte nos lares monoparentais, com mulheres encarregado de filhos e filhas, convertendo o endividamento em mais uma das formas de intensificação das desigualdades de gênero.
Nesse sentido, durante a crise de Covid-19 houve um aumento dos trabalhos de cuidado, que afetaram as possibilidades de mulheres, e sobretudo de mulheres chefes de família com filhas/os dependentes, participarem do mercado de trabalho. Uma pesquisa realizada pela Dirección de Economía y Género del Min. de Economía y UNICEF[11] com base no EPH do primeiro semestre de 2020, mostra que a pobreza em domicílios monoparentais atingiu 68,3%. O mesmo estudo mostra que houve uma queda de 14% da taxa de atividade para as mulheres chefes de família com crianças e adolescentes, quase 4 pontos a mais do que a queda na taxa geral de atividade para o mesmo período.
Assim, a maior dificuldade de participação no mercado de trabalho, juntamente com o aumento das tarefas de cuidado, tem causado o surgimento de novas dívidas associadas à gestão do cotidiano. O espaço domestico que as passivas mobilizações feministas haviam apontado como espaço onde se combinam formas de exploração e opressão, foi sinalizado na pandemia como lugar de refugio frente a possibilidade de contagio. O paradoxo é que esse espaço “seguro” tornou-se, ao mesmo tempo, um território de conquista para o capital financeiro (o aumento da dívida de aluguel é eloquente nesse sentido).
Dessa forma, o superendividamento intervém com uma função eminentemente política: opera produzindo uma domesticidade atrelada ao pagamento da dívida. Isso porque as mulheres realizam múltiplas atividades para garantir o cumprimento das obrigações financeiras, o que se traduz em uma superexploração de empregos historicamente desvalorizados. Dessa forma, o doméstico é aquele espaço onde os mandatos de gênero e as obrigações financeiras são mais obviamente combinados. Porque a dívida aproveita o mandato que recai sobre as mulheres para sustentar as economias domésticas em situações de crise e, por sua vez, ativa o aumento dos empregos reprodutivos e desvalorizados.
Outro aspecto a destacar é o que a pandemia significou em termos de aceleração das formas de inclusão financeira para a cobrança de subsídios como a Renda Familiar emergencial.Em um relatório anterior, resumimos outro ponto que, em nossa opinião, deveria ser objeto de debate dessa nova onda de inclusão: a bancarização dessa população para recolher subsídios emergenciais mesmo quando se sabe da curta duração dessa transferência monetária (ou seja: a conta bancária permanecerá, o subsídio não vai). Assim, concluímos que “a natureza circunstancial dessa medida não garante, por si só, a continuidade virtuosa do sistema financeiro”. Portanto, se essa permanência não corresponde à prestação de serviços públicos gratuitos e de qualidade, e políticas de transferência de renda maiores que a dinâmica inflacionária, o registro no sistema financeiro de uma população sem renda ou com renda intermitente e insuficiente pode se tornar um mero veículo para assumir novas dívidas pessoais.
Zona de Promessas: endividamento e campanha eleitoral
Como lembra Jason Moore, citando a Grundrisse de Marx, o capital financeiro busca criar um mundo onde a velocidade dos fluxos de capital está constantemente acelerando, resultando no privilégio do tempo sobre o espaço[12].Poderíamos extrapolar esse raciocínio para pensar sobre qual é o espaço que existe para a disputa eleitoral, no tempo das dívidas. Por um lado, a dívida externa aparece como um limite para qualquer promessa do futuro e, ao mesmo tempo, uma população cada vez mais endividada vê o futuro atormentado por obrigações financeiras. A dívida (externa e doméstica) entrou em cada casa e é um elemento central na gestão da crise e, portanto, na produção de subjetividades. Precisamos avançar no enfrentamento desses poderes opacos, opondo-os a uma discussão pública, coletiva e democrática sobre os efeitos do endividamento que começa na vida cotidiana.
Lucía Cavallero é pesquisadora e doutora en Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires. É licenciada em Sociologia também pela UBA e docente da Universidad Nacional de Tres de Febrero. Integra o coletivo Ni Una Menos e é coautora do livro “Uma leitura feminista da dívida”, publicado na Argentina pela Fundação Rosa Luxemburgo (2019), no Brasil por Criação Humana Editora (2021), na Itália pela editora Ombre Corte e na Inglaterra por Pluto Press.
[1] Cavallero, Lucía. Tesis Doctoral: “Deuda, violencia y trabajo reproductivo: un análisis del endeudamiento de las economías populares feminizadas en Buenos Aires (2012-2019)”. Facultad de Ciencias Sociales (UBA).
[2] Cavallero, L y Gago, V (2022). Uma leitura feminista da dívida. Vivas, livres e sem dívidas nos queremos. Porto Alegre: Editora Criação Humana.