Quando VerónicaGago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reproduçãosocial como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modeloneoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reproduçãosocial refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.
A entrevista é de EmilianaPariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reproduçãosocial, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.
Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reproduçãosocial serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.
Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.
No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?
“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzira vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.
É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutasfeministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reproduçãosocial, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.
Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismoé violento e que a violênciapatriarcal é, por sua vez, neoliberal”.
Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.
Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violênciaestrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.
Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.
Essa é mais uma potência dos feminismosatuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violênciasistêmica.
Soma-se a isso o fato de que os movimentosfeministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.
Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.
Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a ofertaneoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violênciasistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.
Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.
Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?
As crises facilitam certa criatividade política e a autogestãoereapropriaçãodefunções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentosfeministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reproduçãosocial, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutasfeministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.
Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?
É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.
Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.
Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?
Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirizaçãodareproduçãosocial, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reproduçãosocial que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.
Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.
Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.
Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?
Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.
Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.
Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formasde recolonizaçãodonossocontinente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.
A pesquisadora percorre a onda feminista que se ativou nos últimos anos —com movimentos como o NiUnaMenos ou as greves— produzindo teoria enraizada na ação, com foco na ofensiva do neoliberalismo contra a reprodução social.
Há alguns anos, a socióloga e pesquisadora argentina Luci Cavallero, junto com sua parceira de escrita e ação, Verónica Gago, se aprofunda nos campos do trabalho, pensões ou dívidas a partir de uma perspectiva feminista. Uma reflexão que não pode ser separada, como ela esclarece várias vezes durante a conversa, da discussão política coletiva dentro do movimento feminista e das várias situações sociais e econômicas onde essa conversa ocorre.
A autora, junto com Gago, do livro “Uma leitura feminista da dívida” (disponível aqui), participou no final de fevereiro do Congresso Internacional Feminista “We call it feminism. Feminismo para um mundo melhor”, organizado pelo Ministério da Igualdade. Após uma intensa agenda, pouco antes de ter que pegar um avião de volta a Buenos Aires, Cavallero ofereceu ao jornal El Salto um amplo olhar sobre o papel das instituições feministas e seus limites, o sindicalismo feminista, a dívida ou o salário-base universal.
Que impressões você leva do Congresso Feminista Internacional?
A primeira sensação que tenho é que houve muita participação do ativismo feminista local e com convidados internacionais de diferentes procedencias e espaços de militância. Acho que o Congresso foi uma oportunidade de recorrer a e discutir uma questão que pairava no ar: o que aconteceu recentemente com o novo ciclo de lutas feministas? Isso pressupõe várias coisas. Tanto a questão sobre o que conseguiu se instituir como debate coletivo e como transferencias de sensibilidade, quanto a questão do que significa essas discussões terem chegado às instituições, quais são os desafios, quais são os limites dessas experiências e políticas públicas. Se trata de uma pergunta antiga em uma nova conjuntura: Quais são as relações mais virtuosas e possíveis entre instituição e movimento? Acho que isso também se refletiu na composição das mesas, onde se encontravam trajetórias de ativismo local, jornalistas, artistas e também pessoas com cargos institucionais ligados a agendas feministas.
Justamente esse arco, que começa nos movimentos e entra nas instituições para aplicar políticas públicas feministas, também faz parte do seu trabalho. Por exemplo, depois de participar do debate sobre a dívida dentro do movimento feminista, você agora faz parte da equipe que implementa um programa na Província de Buenos Aires para lidar com dívidas abusivas de mães de famílias monoparentais.
O primeiro ponto a se destacar é que a estrutura institucional feminista é fortemente atacada por movimentos de extrema-direita na Espanha e na Argentina. Então, obviamente, acontecem muitos problemas porque, em geral, os recursos que chegam são poucos e os orçamentos são baixíssimos. Digo que a institucionalidade que deveria estar lutando pela sua existência e pelos motivos de ser permanente frente a outras instituições nas quais se dirigem as críticas mais duras. O que tentei promover foi uma política pública que se encarregasse da situação de superendividamento das famílias monoparentais da província de Buenos Aires, a maior do país.
O programa foi votado no Legislativo e reconhece o endividamento como problema social prioritário em termos de violência econômica contra a mulher. Vai ser executado pelo Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual. No entanto, ainda não está em vigor.
Você participa como militante e pesquisadora de uma agenda que aborda como o feminismo e o sindicalismo se cruzam para transcender essa falsa segregação entre trabalho remunerado e trabalho doméstico ou comunitário, tornando visível o trabalho não remunerado. Quão potente é partir do lugar de que somos todas trabalhadoras?
Temos uma avaliação compartilhada com o coletivo NiUnaMenos sobre como foram esses anos de organização de greves feministas. Acreditamos que um dos equilíbrios mais importantes é a aliança entre feministas e sindicalistas, uma confluência entre duas experiências históricas que de alguma forma foram separadas. As que eram sindicalistas tinham muitos problemas em se autodenominar feministas e nós que somos feministas tínhamos um certo ressentimento com o sindicalismo. Acredito que a greve feminista permitiu que essas realidades, essas experiências vitais, se misturassem. Não apenas para revitalizar o sindicalismo realmente existente, mas para ampliar o que se entende por sindicalismo, para implantar um sindicalismo que leve a sério as questões da reprodução da vida.Por exemplo, um sindicalismo contra o aumento do aluguel, um sindicalismo que cuida do custo da alimentação, um sindicalismo que também pode colocar em pauta a reivindicação das trabalhadoras domésticas e comunitárias.
Estas últimas são uma realidade trabalhista muito difundida na América Latina, são elas que trabalham nas comunidades, na produção de alimentos, saúde, são elas que acompanham casos de violência de gênero e que não são reconhecidos. Aí vemos uma grande dívida pendente: seis anos depois da primeira greve, ainda não conseguimos que o trabalho comunitário e de apoio múto, que é vital, seja remunerado de forma digna. Trata-se de feminismos capazes de se encarregar de realidades trabalhistas heterogêneas, migrantes, precárias e que respondem às políticas que o neoliberalismo instalou em nossos países.
Você também fala do direito de envelhecer em paz, ou seja, de enfrentar os efeitos da divisão sexual do trabalho ao longo de todo o ciclo da vida, e transfere essa perspectiva para a demanda por aposentadorias justas.
Esse foi um tema que apareceu com muita força em 2018. Como o feminismo respondeu à questão da previdência? O processo político foi muito interessante. O governo de Mauricio Macri, ultra neoliberal, chega a um acordo com o Fundo Monetário Internacional. Uma das primeiras exigências do FMI foi que o Estado anulasse a possibilidade de moratórias de pensões, lei que vigora desde 2004 e que permite as trabalhadoras que durante anos trabalharam em domicílio ou tiveram patrões que não contribuíram [que não contribuíram para segurança social], podem no final da vida pagar essas contribuições e reformar-se como trabalhadoras registradas. É um mecanismo de reparação face a uma desigualdade laboral que nos afeta, precisamente porque trabalhamos em casa e porque a maioria das trabalhadoras trabalha em tarefas de cuidado, mas que depois não acaba por lhes dar direito a uma aposentadoria. Assim, nós utilizamos o slogan: “As contribuições que nos faltam são do patriarcado”, e “Nem uma aposentada a menos”, para destacar a necessidade do feminismo assumir esta realidade e o direito à aposentadoria como contrapartida necessária da ideia de “trabalhadoras somos todas”. Se somos todas trabalhadoras, também temos que poder nos aposentar, e temos que encontrar formas reparatórias na Previdência Social que dêem conta de todas as desigualdades que passamos durante nossas vidas.
Como o feminismo tem enfrentado essa violência institucional e burocrática que implica que são as mulheres que devem lutar por subsídios, que devem justificar a pobreza de seus núcleos familiares?
Esta é uma questão muito importante para nós. Desde a primeira greve nacional em 2016, as assembléias são realizadas no Sindicato das Trabalhadoras da Economia Popular, que são as que realizam trabalhos comunitários que o Estado reconhece de forma muito precária e, ao mesmo tempo, são permanentemente identificadas e estigmatizadas como população subsidiaria e não trabalhadora.
Sabemos que o ajuste econômico exigido pelo endividamento precisa de uma validação moral. Esse validação moral gera uma hierarquia de méritos, onde o tempo todo, o que tentam fazer é deslegitimar a vida de mulheres pobres, porque são culpabilizadas como mães, porque usam subsídios sociais para comprar outras coisas que não comida para a sua família, etc. Claro que isso acontece sem se colocar uma lupa sobre as riquezas de outras pessoas, nem se julga quem são os detentores de uma concentração absurda de capital. São estigmatizadas as trabalhadoras da economia popular, que também sustentam a reprodução da vida em condições precárias. Sobre elas, paradoxalmente, o neoliberalismo ativa sua vigilância moral. Não há planos de austeridade e de ajuste que possam prescindir uma produção de populações que devam ser punidas, criminalizadas. Tentamos o tempo todo nos articular em lutas que não só não estão na defensiva contra o avanço reajustador e moralizador, mas estão na ofensiva: trata-se de dizer que somos as trabalhadoras e isso nos é devido. Nós somos as credoras. É o movimento que busca inverter que faz a dívida externa, né? Não somos nós que devemos, são eles que devem a nós, porque fazemos um trabalho que sustenta a vida e que não é reconhecido ao mesmo tempo que é explorado.
E em todo esse mecanismo, que lugar ocupa a figura da subjetividade devedora, como ela opera?
O que temos investigado, junto com Verónica Gago, é como essas políticas de austeridade do Fundo Monetário Internacional geraram um transbordamento de dívida para as famílias: dívida externa que se transforma em dívida privada e que as famílias devem assumir. O que descobrimos é que a dívida estava sendo assumida principalmente por mulheres trabalhadoras da economia popular, ou seja, mulheres que recebem algum subsídio do Estado. E isso é um paradoxo, são as mulheres que mais trabalham e ao mesmo tempo as que mais se endividam. Por que? Porque existe uma relação entre o trabalho não remunerado e o trabalho mal remunerado e a necessidade de contrair empréstimos para viver. A dívida torna-se um mandato que não pode ser ignorado. É assim que se produzem as subjetividades devedoras. Por isso o slogan “sem dívidas nos queremos” é muito importante, porque utilizamos para questionar o impacto dessa dívida externa com o Fundo Monetário Internacional em termos de cortes orçamentários, em termos de redução do investimento social do Estado , mas também porque a dívida externa surge nas famílias como uma necessidade de endividamento que é maioritariamente da responsabilidade das mulheres.
Dentre essas dívidas contínuas, está a dívida com aluguel de moradia. Conte-nos sobre as alianças com sindicatos de inquilinos e inquilinas…
A partir das lutas feministas é preciso fazer uma conexão com os conflitos que vão surgindo conjunturalmente porque fazem parte das lutas pela reprodução social. Nós, em plena pandemia, tivemos muitas consultas e demandas em relação à moradia. A habitação tornou-se quase a principal violência econômica naquele momento de emergência. Quem não tem acesso a uma possibilidade de aluguel, por exemplo, não consegue sair de uma situação de violência. Além disso, muitas mulheres chefes de família que estão alugando suas casas começaram a receber pressão dos proprietários. Então começamos a falar em “violência patrimonial” para sinalizar as ameaças e chantagens as inquilinas porque não podiam pagar o aluguel em plena pandemia, muitas desempregadas, sem renda, e com os filhos em casa. Os lares mais afetados durante a pandemia foram, mais uma vez, os monoparentais, os mais ameaçados de despejos. Nesse contexto, passamos a trabalhar cada vez mais com o Sindicato dos Inquilinos e Inquilinas, como forma de fazer também uma aliança estratégica para nos envolvermos nesse conflito que hoje é a principal reivindicação de quem vive uma situação de violência. Elas precisam de um lugar para onde ir, precisam ter autonomia financeira para sair daquela situação. Mas é também o principal problema de quem aluga, agora agravado pela inflação e pela especulação imobiliária. Então outra das coisas que fiz aqui foi me encontrar com colegas da PAH e do Sindicato dos Inquilinos e Inquilinas, bater um papo, trocar um pouco sobre essa situação e como a pauta feminista também está na luta pela moradia e ao mesmo tempo a luta pela habitação está na agenda feminista.
Você estava falando de autonomia agora, você tem trabalhado a questão do salário base universal. No Estado espanhol falamos de renda básica universal. O termo salário está mais associado ao reconhecimento do trabalho não remunerado, enquanto quando falamos de renda focamos na redistribuição, no acesso a recursos mínimos como um direito, desvinculado do fator trabalho. De fato, certos feminismos criticam a possibilidade de remunerar o trabalho de cuidado —como defendiam à época pensadoras como Silvia Federici— e veem tanto a ideia de salário quanto de renda como o risco de essencializar o papel da mulher como cuidadora . Você tem refletido sobre isso?
Acredito que isso tem a ver com uma história de lutas. Ainda que o debate tenha sido global, apareceu de formas diferentes em diferentes países. Nós não podemos separar a luta por um salário universal do que vem acontecendo na Argentina em relação a luta dos movimentos sociais pelo reconhecimento das tarefas que se cumprem. É também onde está a maioria das companheiras que fazem trabalhos comunitários. Portanto, na Argentina a demanda aparece como salário porque salário é a palavra mágica que reconhece que um trabalho anterior foi feito, que o trabalho já feito deve ser remunerado. Acho que seria preciso pensar, obviamente, que existem pontos de contato com essa ideia de renda, mas nos parece mais adequado chamá-la de salário. E claro, na discussão feminista tem toda a discussão de como garantir que esse salário não acabe por consolidar a condição de mulher trabalhadora em tarefas reprodutivas. Mas me parece que a chave aqui é lutar ao mesmo tempo: lutar por salários, por melhores serviços públicos de assistência, por licença maternidade e paternidade, para dissociar os mandatos de gênero em relação aos cuidados.
Você coloca muita ênfase, no discurso e nas suas práticas, na necessidade de unir pesquisa e movimento…
O que escrevemos se faz dentro de um processo político, que é o processo político da luta feminista na Argentina e, diria mais, na América Latina. Muitos dos conceitos que estão no livro têm a ver com conceitos que estão em diálogo com os processos políticos que, claro, não negam os percursos universitários que temos mas também, no quadro de uma universidade pública aberta a movimentos, tem uma porosidade em relação ao que acontece nas ruas. Portanto, não há uma separação tão nítida entre universidade e movimentos sociais, mas é importante destacar que é um livro que se faz dentro de um processo político e por isso teve também a capacidade de sistematizar palavras que foram saindo das assembléias e que tem a ver com essa ideia de que a economia feminista fala uma linguagem do cotidiano e que discute primeiro com a ideia de que a economia só pode ser um discurso de especialistas, geralmente neoliberais, que propõem uma economia voltada simplesmente para diminuir o déficit fiscal. Nosso objetivo é ajudar a repolitizar a reprodução social: o que comemos, quanto devemos, a quem devemos, por que devemos e como isso também gera uma economia de obediência na vida cotidiana. Daí a necessidade de pensar sempre em relação à produção da violência invisível. É muito importante que a produção de categorias, a produção de teoria, não se desvincule do processo político, que contribua para a sua dinâmica organizativa, que não se gere uma situação em que há umas que pensam e outras que são militantes.
E nesse quadro de desapropriação, a dívida é uma forma de desapropriação do futuro?
Sim, trabalhamos com essa discussão dentro do feminismo. Estamos falando de empréstimos em condições precárias, com juros altíssimos, que acontece muito na América Latina. Primeiro, o que a dívida implica é uma promessa de trabalho futuro. Você está prometendo ao seu credor que vai realizar uma série de ações e que, portanto, não vai realizar outras. Para nós, a dívida tem de ser analisada em relação ao modo como afeta a capacidade de planejar o cotidiano da mulher, mas também para pensar numa fuga de um lar violento, como a dívida limita a indeterminação do tempo que está por vir. Hoje você trabalha mais e ganha menos. Isso ameaça diretamente a possibilidade de usar o tempo para o seu bem-estar e para a ação política. Existe uma disputa muito importante pelo tempo, e nesse sentido a dívida atua diretamente nessa disputa.
“Eu estou aqui, porque acredito em vocês. Vocês estão aqui, porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil”.
Essas palavras foram pronunciadas por Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, em meio a um ato público pelo fim do isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um modo de conter os impactos nocivos da pandemia da Covid-19. Para os especialistas brasileiros o momento é de preocupação, já que o país caminha justamente para o pico da curva de transmissão com uma taxa de 400 mortes em 24 horas – isso sem que a doença tenha atingido maciçamente as populações em situação de vulnerabilidade social. O evento no qual o líder da nação discursou aconteceu no dia 19 de abril e reuniu uma pequena multidão que pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e o exército nas ruas.
Afinado com o grupo de apoiadores que o recebeu com gritos de “mito”, o líder da extrema direita brasileira seguiu fazendo uso de bordões nacionalistas, entoando expressões que nos remetem aos líderes fascistas e nazistas da Europa na década de 1930: “Temos um novo Brasil pela frente. Patriotas têm que acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no destaque que ele merece. E acabar com essa patifaria. É o povo no poder”. Para estudiosos brasileiros do campo social e político não há surpresa nesta manifestação, foram falas populistas como essas, carregadas de ódio, autoritarismo e de ameaça aos laços democráticos que levaram o capitão à presidência da República. Já na eleição de 2018, os analistas se perguntavam o que fez com que 55% da população brasileira elegesse como presidente um político cuja trajetória pública, ao longo de 30 anos no Congresso Nacional, foi pautada por morte e não por vida. Suas lutas não foram ao encontro de temas como educação, saúde e ação social, mas, sim na defesa da violência, sobretudo a letal e especialmente contra as minorias. Suas propostas como homem público o levaram a disseminar, em seus discursos e ações, a perigosa combinação de violência e delinquência intelectual, banalizando a barbárie nos laços sociais através de um claro incentivo ao gozo com a tortura e o apagamento do outro. Estariam os brasileiros anunciando simbolicamente o desejo por lideranças maníacas por morte? De que, afinal, se constitui o atual desejo pelo fascismo?
O texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, escrito em 1921, foi primoroso na dose de antecipação do que estava por vir na Europa na década de 1930. Nele, Freudpropôs uma matriz de análise para os governos totalitários a partir do horizonte histórico da Primeira Guerra Mundial. Freud mostrou, em seu estudo, que o funcionamento das massas tentava suprimir a esfera política e, portanto, plural da vida a fim de instalar a dimensão da totalidade – traduzido em termos lacanianos, diríamos que o líder totalitário busca fazer “Um do Outro”, ou seja, produzir o apagamento da diferença e da pluralidade de sentidos na construção de posições e ideias. Seguindo ainda na esteira das construções freudianas, evocamos a noção de que o líder tem uma função central na arquitetura da psicologia das massas em sistemas totalitários, representando o ideal do eu; o líder enlaça sua figura aos membros do grupo e estabelece a premissa de que a identidade da massa se forja na operação de exclusão, questão que implica, obviamente, a segregação e os discursos de ódio a todo aquele que não se perfila à massa e/ou ao seu ideário.
A professora de teoria política da Universidade de Bogaçizi, Zeynep Gambetti, propôs a ideia de que estamos diante de novos fascismos evidenciados através do empobrecimento da linguagem, da erosão de valores progressistas, assim como do fortalecimento de práticas racistas, sexistas, xenófobas e incitadoras do ódio e da violência, afrouxando naturalmente os vínculos de solidariedade e compartilhamento entre os sujeitos. Gambetti agrega a esse cenário atual, do qual o Brasil não é o único signatário, o impacto da financeirização do mundo pela via de práticas neoliberais selvagens, o que não se reduz somente aos efeitos econômicos, mas que também aparece no individualismo de sujeitos que mercantilizam diferentes âmbitos da vida social, como laços e emoções.
Nesta direção, Walter Benjamin dizia que a teoria do fascismo deveria ser examinada não como uma regressão inexplicável do mundo pós-iluminista, tampouco como um eventual parêntese na história da humanidade, mas enquanto fenômeno que surge na história social de um mundo baseado na aceleração constante em direção a um progresso linear. Benjamin entendeu a modernidade do fascismo, bem como sua relação íntima com o futuro, através da associação da barbárie política com a idealização ilusória do progresso científico, industrial e tecnológico. Em sua visão, a futurização do desenvolvimento nas sociedades, cada vez mais financeirizadas, fazia do fascismo uma questão não apenas do passado, mas uma preocupação para o futuro.
Em artigo recente, no qual analisa os efeitos da pandemia no Brasil, Vladimir Safatle recolhe a expressão estado suicidário, utilizada por Paul Virílio, a fim de nomear um modo de funcionamento do estado brasileiro que, impregnado pelas premissas neoliberais, estaria não só operando a gestão das mortes e desaparecimentos dos corpos através da necropolítica, mas gestando, também, sua própria catástrofe com novas formas de violência de Estado. No caso do Brasil, o filósofo sugere que o Estado pode ser o próprio fiador da catástrofe, na medida em que repete compulsivamente a histórica desigualdade social e o genocídio de partes da população no cenário da Covid-19.
É justamente nesta direção que gostaríamos de analisar a situação ímpar de negacionismos relativos aos fatos vividos no Brasil de 2020 em meio à propagação da Covid-19. Em que medida o vírus, em nosso país, poderia estar funcionando como um desestabilizador da aceleração na direção de uma autodestruição? Poderiam os efeitos sociais e políticos que advêm das reações do presidente ao vírus produzir uma espécie de freio de emergência na direção do estado suicidário?
O Brasil de Bolsonaro é o único país, entre os 190 do planeta, a registrar carreatas frequentes que negam a potencialidade mortífera da doença e protestam contra o isolamento social como medida de emergência provocada em resposta à pandemia. Além do enfrentamento frontal das recomendações da OMS passeando pelas ruas de Brasília, cumprimentando os eleitores e promovendo manifestações públicas, o presidente reduz a pandemia a “uma gripizinha” e diz que “ficar em casa é covardia” já que “todos vão morrer um dia”.
No avanço das narrativas do absurdo, o domingo 19 de abril de 2020 foi o ápice de um tom maior da destruição gerada a partir da dicotomia artificiosa entre saúde versuseconomia. Com a participação no evento, Bolsonaro mostrou total indiferença com a saúde da população e suas condições sanitárias, especialmente considerando o número de pessoas que vive abaixo da linha de pobreza no país. A presença de Bolsonaro incitou seus eleitores a uma manifestação contra o estado democrático na qual a multidão pedia o fechamento das instituições e a intervenção militar.
É importante sublinhar que temos pensado que a Covid-19 pode estar funcionando como um movimento na direção de uma certa parada reflexiva sobre o atual cenário político do país. Isso porque, depois de mais de um ano de “desgoverno” bolsonarista no Brasil, no qual argumentos progressistas sustentados em ideários humanitários e sociais não fizeram nenhuma função de frenagem na destruição gradual dos processos democráticos, vemos um movimento acontecer a partir dos líderes das principais instituições democráticas nacionais.
Retomando o tema dos novos fascismos, também importa perceber que a onda de neoconservadorismo articulada com o revisionismo histórico e o negacionismo trazidos pela chegada de Bolsonaro ao poder constitui um dos elementos das novas formas de fascismo descritas por Zeynep Gambetti. A negação, que antes atingia o tema das mudanças climáticas e da ditadura no Brasil, atualmente atinge os pressupostos científicos relativos à pandemia, questão que nos parece ter impactado negativamente a popularidade do “mito”, especialmente se consideramos que as negações atuais resultam em mortes imediatas e não em efeitos cujas repercussões só se darão nas gerações vindouras.
Através da pergunta sobre o desejo de fascismo, seguimos a ideia freudiana do líder forjado no lugar de ideal e, finalmente, chegamos no tema do gozo em Lacan. O psicanalista, em seu Seminário 17, fala do gozo como empuxo na direção da totalidade, aquilo que busca fazer “Um do Outro” e que, portanto, não cria laço, atacando o cimento social e constituindo-se, conforme dizia o psicanalista francês, em antilaço. Nesse diapasão, temos pensado que o fascínio pelos traços de novos fascismos em líderes como Bolsonaro pode estar relacionado ao gozo com a destruição do outro. O estilo rude, a linguagem empobrecida e o comportamento anticivilizatório parecem autorizar a humilhação, a morte e a destruição do próximo, ficando o sujeito desobrigado de qualquer recato social, como se o nó libidinal sujeito-cultura se desarticulasse, conforme postulou Freud em Mal-estar na cultura.
Ora, toda essa dinâmica de garantia de condições civilizatórias somente para alguns e não para todos não é propriamente uma novidade no tecido social do Brasil. Segundo Safatle, o Estado brasileiro nunca precisou de uma guerra porque sempre tivemos uma espécie de guerra civil instalada e não declarada. Mesmo acostumados à retórica do sacrifício de alguns pelo bem de outros, parece que, com a Covid-19, temos assistido à ausência de índices homicidários, restando a roleta russa de um morticínio em massa, na qual fica como questão “a história de corpos invisíveis e do capital sem limites”.
Em meio ao caos da Covid-19 no Brasil, vemos uma certa erosão na tentativa totalitária da extrema direita brasileira. Neste cenário, não podemos deixar de sonhar, especialmente porque não sabemos o que será possível no futuro. Por ora, devemos festejar a frenagem na aceleração em direção a um estado totalitário a partir do fato de que o vírus tirou a roupa do Rei, portanto, o Rei já está nu!
Cláudia Perrone e Rose Gurski são psicanalistas e professoras do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Feminista, socióloga e pesquisadora, Lucía Cavallero propõe democratizar essa discussão financeira e retirá-las dos lugares masculinizados. Entrevista para La Rioja/12.
“Tirar a dívida do armário” é um dos capítulos do livro “Uma leitura feminista da dívida”, que Lucía Cavallero escreveu junto a Verónica Gago para analisar o impacto do endividamento externo nos lares. Feminista, socióloga e pesquisadora, Cavallero dialogou com La Rioja/12 sobre como o endividamento afeta de forma diferente as mulheres e pessoas LGBTQIA+. Diretora do Programas Especiais para a Igualdade de Gênero do Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual da província de Buenos Aires, ela diz que “é preciso democratizar a discussão financeira.”
O que significa uma leitura feminista da dívida?
Uma leitura feminista da dívida traz novidades para pensar o problema das finanças em uma conjuntura particular que tem a ver com uma ruptura epistemológica, cognitiva que os feminismos significaram para pensar os problemas econômicos, sociais e políticos, a partir da massificação do movimento feminista nos últimos anos que também tem sido categorias políticas. Acredito que Uma leitura feminista da dívida é parte desse processo e também condensa investigações pessoais minhas e de Verónica Gago e são alguns pontos importante para pensar o mundo das finanças. Acredito que é preciso discutir quem deve falar das finanças, democratizar essa discussão financeira, tirá-las de lugares masculinizados e dos lugares de especialistas e poder falar da vida cotidiana. É também uma maneira de investigar os impactos do endividamento desde os corpos concretos tratando de desarmar essa abstração financeira que sustenta o mundo das finanças. Isso faz parecer que o endividamento se reproduz sozinho e não tem nada a ver conosco, que trabalhamos e colocamos o corpo no dia a dia. Nos propusemos a fazer a investigação contrária. Perguntamos quem são as pessoas que se endividam, por que se endividam e para que se endividam, e quais são as relações entre dívida privada e os lares com os processos de endividamento externo. Vários pontos trazem Uma leitura feminista da dívida. É uma leitura situada e muito concreta do impacto do endividamento.
Há uma relação entre divida privada e o endividamento externo?
É importante pontuar que os processos de endividamento externo associados aos organismos internacionais trazem uma série de condicionalidades para os governos que implicam impactos diferenciados. Situando-nos no último acordo assinado por Mauricio Macri e em 2018, com o empréstimo stand-by firmado com o FMI, trouxeram uma série de impactos no cotidiano de mulheres, lésbicas, travestis, trans. Em primeiro lugar, houve uma queda no nível de renda e salários, e aumento da informalidade do trabalho, do desemprego das mulheres, e houve um processo inflacionário muito importante do qual ainda não conseguimos sair e até aumentou. Esse endividamento, ao mesmo tempo, se traduziu em uma maior necessidade das casas se endividarem. Existem três particularidades desse fenômeno. Tem a ver com a dívida nas casas, mas cresceu como um endividamento para viver, que é algo que não havia acontecido de maneira tão intensa em outros momentos da nossa história, aparece também uma feminização do endividamento, porque são as mulheres que se endividam, porque é delas a função de sustentar as economias na crise e há um endividamento com taxas muito altas.
Depois veio a pandemia
Depois veio a pandemia e a renda não havia se recuperado do que aconteceu no período macrista, e também produziu uma série de dinâmicas que intensificaram o endividamento. A primeira foi que muitas mulheres precisaram ficar em suas casas com maiores cargas de tarefas de cuidado sem poder distribuí-las de outra maneira por causa do perigo de contagio. Houve uma queda dos salários e da renda em geral e uma maior vulnerabilidade ao superendividamento na pandemia. Novas fontes de dívida surgiram, como por exemplo, dívida por aluguel. E está diretamente relacionado ao aumento das tarefas de cuidado e participação no mercado de trabalho.
Com o que se endividam as mulheres e pessoas LGBTQIA+ atualmente?
Hoje nos endividamos porque a renda não é suficiente e se você está no setor popular pode se endividar porque não pode comprar comida. A renda não é suficiente para comprar alimentos que durem até o final do mês e é aí que vem a dívida, o que faz com que você já inicie o mês seguinte endividade e que volte a se endividar já que a sua renda não basta. Também pode acontecer para comprar medicamentos, existem pessoas que se endividam com o aluguel porque antes de deixar de pagá-lo preferem fazer um empréstimo para pagar outras coisas. E depois há outros tipos de endividamento que não são tão problemáticos e acontecem para coisas pontuais como eletrodomésticos, viagens. O que é tão difundido é esse endividamento que começa a vir para completar a renda e que é usado para viver.
Deveria compor a agenda do Estado pensar políticas publicas sobre o endividamento?
O endividamento é um fator importante hoje em dia e que significa o mal estar da grande maioria da população. Sabemos que viver endividades tem um impacto também na subjetividade emocional da vida cotidiana e o Estado deve combater esse problema de maneira integral, pensando que não se pode naturalizar estar endividade para viver e, então, deve haver uma política de recuperação de renda e salários; tem que existir uma política de cancelamento de dívidas, porque as pessoas acumularam dívidas desde o macrismo e na pandemia, e não foi solucionado o cancelamento da dívida interna. Deve ser aplicado um grande plano de desendividamento das famílias, permitindo que todos recuperemos esse tempo em que não pudemos ganhar da inflação.
O acesso à terra ainda é uma dívida do Estado?
Sim, acredito que ainda que estejamos conceituando o problema, a lei de terras está travada no Congresso. Faz tempo que foi apresentada por organizações campesinas e não foi pra frente e é preciso garantir o acesso das mulheres à terra, já que são elas que não são, em sua grande maioria, proprietárias entre aqueles que detém as terras, e são elas que não tem meios de produção para produzir e ao mesmo tempo estão propondo métodos alternativos de produzir, de cadeias alimentares que poderiam avançar no combate à inflação.
Crítica teórica e prática às finanças desde uma perspectiva feminista.
Por Luci Cavallero*, Verónica Gago** e Celeste Perosino***
A pandemia levou uma enorme parcela da população a um processo acelerado de precarização. Novas formas de inclusão financeira através da cobrança de subsídios de emergência são, na sua maioria, dirigidas a ela. As chamadas políticas de “inclusão financeira” confirmam assim uma segunda onda de financeirização das populações mais precarizadas após a era do microcrédito. A inclusão financeira é geralmente de sujeitos já endividades. É necessário gerar informação sobre o endividamento privado com perspectiva de gênero e diversidade.
No meio da crise, ouvimos repetidamente falar da inclusão financeira. Se escuta uma e outra vez, em meio a crise, falar de inclusão financeira. De que se trata? Durante a pandemia, a necessidade de se fazer cumprir o pagamento de subsídios de emergência colocou no centro da cena a inclusão financeira como uma ferramenta para chegar a populações das quais o Estado não tinha registro. Esta situação atualiza uma série de debates seguidos de que, nos últimos anos, o sistema financeiro tem aparecido como parte do problema mais do que da solução.
A proposta baseia-se na crítica teórica e prática dasfinanças que a perspectiva feminista tem implantado nos últimos anos. Nos situamos como parte desse processo que tem propiciado o encontro de experiências sindicais, organizações populares, acadêmicas, políticas, institucionais. A partir de uma leitura feminista, a paisagem dos números e linhas (de pobreza, de dívida, de inflação) envolve corpos concretos. Queremos problematizar ao menos quatro pontos.
Em primeiro lugar, as ferramentas propostas como parte da chamada “inclusão financeira” no momento atual, que fazem parte de um contexto estruturado por quatro anos de endividamento externo e doméstico (registado e não registado) que, náo há como deixar de dizer, implicam cifras de recordes históricos que se traduzem em extrema capacidade de chantagem de um modelo de valorização financeira. Por isso perguntamos: não deveria qualquer tipo de política financeira levar em conta que essa “inclusão” se faz no interior dos mesmos circuitos de valorização e dívida que produzem a situação de pobreza e expropriação?
Logo, constatamos de várias maneiras que a pandemia levou uma enorme parcela da população a um processo acelerado de precarização. Novas formas de inclusão financeira através da cobrança de subsídios de emergência são, na sua maioria, dirigidas a ela. Uma vez Escrito de modo mais direto: o subsídio é suspenso, mas a conta permanece e pra que servirá? O que significa a produção de uma nova população com registo bancário, mas sem renda garantida?
Um terceiro elemento é, ao mesmo tempo, local e global. A crise tem uma dimensão geopolítica: como esse tipo de propostas, financiadas por organizações multilaterais, se inserem na discussão sobre as causas da crise?
Finalmente, parece ser a chave como o movimento feminista tem demonstrado e politizado a interconexão das violências econômicas com as violências machistas, com uma ênfase especial à violência financeira do endividamento doméstico. Nessa linha, é fundamental pensar no quadro geral das ferramentas financeiras, levando em consideração o aumento exponencial da violência doméstica na atual conjuntura.
Política Global
A chamada “inclusão financeira”, embora tenha uma agenda nacional, deve ser enquadrada num processo global que aponta para a crise de 2008 como um ponto fundamental. Desse modo, ainda que atualmente na Argentina esses termos possam ser usados para nomear processos variados, que vão desde o registo bancário para arrecadação de subsídios sociais até o desenvolvimento de instrumentos financeiros para projetos de autogestão, é importante conhecer a dimensão geopolítica na qual surge esta proposta.
As políticas denominadas como sendo de “inclusão financeira” configuram uma segunda onda de financeirização das populações mais precárias após a era dos microcréditos. Um marco desse avanço pode ser lido no documento de 2008 do Banco Mundial intitulado Finance for all (“Finanças para todos”). Nele se postula a necessidade do desenvolvimento de mercados “mais inclusivos” e uma mudança de paradigma com o desenvolvimento de produtos e serviços financeiros que incorporem novas tecnologias, a fim de alcançar setores não bancarizados, mas que possuam algum tipo de conexão digital.
Em 2011, na “Aliança para a Inclusão Financeira” se reatualiza a já conhecida retórica da “Aliança para o Progresso” (aquela que falava das populações fracassadas do Terceiro Mundo), agora em versão high tech. A partir disso, alguns autorxs definem “inclusão financeira” como um “novo consenso de Washington” para ilustrar a confluência de atores que vão desde funcionários públicos e formuladores de políticas públicas até os fundos de investimento, com o apoio explícito do G20.
Na América Latina, essas políticas funcionaram em alguns casos como respostas a exigências sociais e populares que demandaram recursos e serviços. Quer dizer, a expansão das políticas de subsídios e de ajuda – que se deu por meio da expansão da bancarização sobre os setores mais precarizados – foi impulsionada por agendas antiausteridade que, no entanto, encontraram a sua chave na mediação financeira. Esta situação exige leituras para colocar em comparação os momentos de crise, as dinâmicas de protesto e as lógicas financeiras.
Laboratório Financeiro
A primeira ideia de inclusão financeira que hoje circula é o cadastramento de novxs usuárixs no sistema. Isso implica incorporar aqueles que estão fora de qualquer regime bancário. Nos interessa problematizar o que acontece com essa situação frente a pandemia. Aqui há uma conjuntura específica: a extensão de subsídios de emergencia a milhões de pessoas nesses últimos meses, muitas das quais precisam se bancarizar para obtê-lo. Para tanto, em um primeiro nível de analise, se constata que o registro no sistema bancário permitiu a arrecadação da Ingreso Familiar de Emergencia (IFE) para uma grande parcela da população que viu sua renda restringida devido às medidas de Isolamento Social Preventivo e Obrigatório (ASPO). Ou seja, o registro bancario (bancarização) desempenhou efetivamente um papel central na capacidade do Estado de intervir na situação de emergência e houve uma clara intenção do governo de favorecer os bancos públicos nessa tarefa. Porém, à luz do papel do sistema financeiro no contexto do endividamento estrutural de que estamos falando, há questões que não podem ser negligenciadas.
A bancarização daqueles que não eram registrados implicou em quase 2 milhões de pessoas que abriram pela primeira vez uma conta bancária para poder acessar o pagamento de IFE. A primeira leitura geral e com certo consenso é de que essas pessoas passaram a estar incluídas financeiramente. Aqui não podemos deixar de apontar o surgimento de novas tecnologias para mediar essa cobrança, onde a disputa entre empresas privadas de fintech e bancos públicos é estratégica.
O Banco Provincia e o Banco Nación lançaram a abertura de contas virtuais sem custo para a população bancarizada. Paralelamente, foram lançadas linhas de crédito como política paralela à renda emergencial (créditos créditos para trabalhadorxs autônomos registradxs e monotaxa, para pagamento de salários).
Aqui é necessário acrescentar a medida tomada pelo governo nacional de suspender o pagamento das dívidas de Anses e dos empréstimos hipotecários, o que ameniza a situação econômica dos 5,6 milhões de aposentadxs e pensionistxs que têm dívidas com o governo ao mesmo tempo que explica a magnitude do endividamento doméstico dos setores mais pobres.
No entanto, apesar destes esforços, a pandemia gerou uma explosão das dívidas domésticas {link} como uma forma de fazer frente à perda de renda nesses meses e ao aumento do custo de vida. Aqui portanto, é importante destacar que a inclusão muitas vezes se faz sobre uma população que já se encontra endividada, mesmo de formas não formalmente registradas.
Contextualizar
A chamada inclusão financeira na pandemia é, em primeiro lugar, uma forma de registrar aqueles que estavam “fora do radar”. Mas, a abertura de uma conta bancaria é sinônimo de inclusão financeira? O caráter circunstancial dessa medida não garante, por si só, a “continuidade virtuosa” no sistema financeiro. Se não se corresponder com políticas de serviços públicos gratuitos e de qualidade e a políticas de transferência de renda superiores à dinâmica inflacionária, a permanência no sistema financeiro de uma população sem renda ou com renda intermitente e insuficiente pode se tornar um mero veículo para que sejam feitas novas dívidas pessoais.
Nesse sentido, tem que se levar em conta que, na maioria dos casos, o endividamento chega antes mesmo da conta bancaria. Isto é, a inclusão financeira é geralmente de sujeitos já endividados. Por outro lado, a bancarização de mulheres e pessoas trans e travestis se deve principalmente à arrecadação da AUH, IFE e / ou Power Work. Isso reforça o fato já conhecido de que a inclusão financeira de mulheres e pessoas trans acontece em situações de informalidade e precariedade laboral.
Por isso, é necessário sublinhar e contextualizar essa forma de “inclusão”, já que:
Se dá em um momento de empobrecimento e precarização acelerada.
Conecta uma população com renda insuficiente, ou diretamente sem renda, ao interior dos circuitos bancários que participam do endividamento privado a taxas altíssimas dos últimos anos.
Por sua vez, disponibiliza os dados dessa população recentemente bancarizada, podendo ser comercializados e/ou utilizados para direcionar a essas pessoas novas ofertas de crédito.
Em síntese, queremos problematizar a ideia de inclusão em, pelo menos, três aspectos: o momento em que se inclui; o contexto em que se efetua essa inclusão; e em que condições é garantida a permanência no circuito financeiro de populações fortemente empobrecidas enquanto têm seus dados extraídos. Esses pontos devem ser abertos ao debate público, em contraste com a opacidade e o sigilo que caracterizam o sistema financeiro.
“Gênero”
A incorporação de uma determinada agenda de gênero à inclusão financeira nessa nova etapa é datada em 2013, quando se publicou Oecd/infe policy guidance on addressing women’s and girls’ needs for financial awareness and education, que é a base que o G20 usa para assumir em sua declaração desse mesmo ano, a necessidade de educar financeiramente a mulheres e meninas. Um ano depois se organiza o “Primeiro encontro de discussão sobre inclusão financeira de mulheres” na Global Policy Forum que teve lugar em Trinidade e Tobago. Assim, a Rede para a Inclusao Financeira de OCDE é uma das organizações internacionais que constrói a política de inclusão/educacao financeira para mulheres.
Em 2015, já se cria o W20 que tem a inclusão financeira entre seus eixos fundamentais. O Woman20 é outra das fábricas que constroem as diretrizes internacionais em matéria de inclusão / educação financeira das mulheres que tem maior alcance devido à sua repercussão nos meios de comunicação de massa, o que a amplia para setores não especializados.
Em 2016 foi organizada a Segunda Conferencia sobre a inclusão financeira da mulher na Tanzania e publicou-se um plano de ação entitulado DENARAU, cujas ações incluem o incentivo à coleta de informações de inclusão financeira desagregada por “sexo” e a inclusão de considerações relativas ao gênero nos planos de inclusão financeira. Essa e a terceira organização global de maior alcance na inclusão financeira de mulheres.
Em 2018 foi realizada em nosso país [Argentina] o encontro da cúpula de lideranças do G20 e o W20 tem lugar nesse encontro com a sua agenda de inclusão financeira baseada na abertura de contas para as [mulheres] precarizadas e acesso a crédito para as empreendedoras sob o lema de que as mulheres são melhores pagadoras. Também são lançadas uma série de iniciativas privadas que planejam finanças com as mulheres: surge na Argentina o “Mujer financiera”, com uma lista de cursos e “Mujeres en Carrera” que tem uma plataforma de educação financeira e negócios. Ao mesmo tempo, cria-se “Mujeres en Finanzas Chile” e “Mujeres en Finanzas México”.
O uso de uma linguagem baseada no gênero no âmbito internacional é construído entre a Red internacional de educación financiera de OCDE, la Alianza para la Inclusión Financiera e o Women 20.
Uma pedagogia financeira feminista
Queremos propor alguns eixos de discussão do que prefigurativamente chamamos pedagogia financeira feminista, como parte da abertura de um debate.
* A pergunta a ser desenvolvida é como nos desendividarmos e que outros dispositivos seriam úteis e necessários como ferramentas para apoiar iniciativas de produção e reprodução social em contextos de privação generalizada.
Desenhar ferramentas financeiras em relação a outras políticas publicas. Não há forma de desendividamento sem provisão de serviços públicos gratuitos e de qualidade, acesso à moradia e redes defornecimento de alimentos e medicamentos desdolarizados. Esse ponto se revelou de máxima importância durante a pandemia, quando o dinheiro proveniente do IFE e de outros subsídios foi majoritariamente absorvido pelos bancos, supermercados, empresas de telecomunicação, empresas de plataforma e pagamento de dívida de alugueis, evidenciando que esses valores não são apenas insuficientes, como também vão parar nas mãos dos atores econômicos privilegiados?
Produzir programas de pedagogia financeira envolvendo xs atorxs dos territórios, revelando os saberes e estratégias existentes e apontando as necessidades de recursos concertos e de desendividamento ao mesmo tempo. Isso implica, na prática, em confrontar o modelo do “iletrado financeiro” (figura que sustenta a ideia de “educação financeira”), enquanto se denunciam os enganos das corporações que realizam empréstimos, taxas de juros.
Gerar novos indicadores de inclusão financeira que não se reduzam apenas ao registro bancário, mas que registrem os comportamentos financeiros de LGBTQI+ (todos os relatórios atuais de inclusão financeira registram apenas homens e mulheres de forma binária) e revelar outras ferramentas disponíveis ou futuras (empréstimos mútuos, caixas de poupança solidárias).
Gerar informação de endividamento privado com perspectiva de gênero e diversidade. Colocação do crédito ao consumo desagregado por gênero, por faixa etária, por situação de emprego (formal/informal), por tipo de rendimento, por tipo de garantia, por condição de habitação, por local de residência. É preciso registrar de forma mais desagregada o endividamento das mulheres em situação de trabalho informal e passar a registrar o endividamento da população trans e travesti. Sem informações reais e exaustivas sobre o endividamento, não há como avançar nos dispositivos de acordo com a situação real.
Reconhecer es trabalhadores bancáries como parte decisiva dos dispositivos de pedagogia financeira. Isso se baseia no fato cotidiano de que geralmente a educação financeira se transmite de maneira individual entre es trabalhadores bancaries e as pessoas usuárias do sistema financeiro quando se aproximam de uma entidade bancária.
Construir a pedagogia financeira na lógica de um serviço público e como medida de prevenção das violências. O diagnóstico da violência econômica e financeira como chave das violências machistas exige uma perspectiva que busque gerar autonomia econômica com horizontes temporais a longo prazo.
* Luci Cavallero é Integrante do Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA) e docente UNTREF.
** Verónica Gago é Integrante do Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA), pesquisadora Conicet e docente UNSAM.
*** Celeste Perosino é militante bancaria. Trabalha na Gerencia de Promoción de Políticas de Género, Resguardo del Respeto y Convivencia Laboral – BCRA.
Artigo publicado originalmente no periódico Página/12 e traduzido e revisado por Laura Alagia e Gabriela Vieira.
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Luci Cavallero e Verónica Gago são autoras do livro Uma leitura feminista da dívida, publicado pela Editora Criação Humana em 2019. Clica aqui pra comprar!