Luci Cavallero: “É muito importante que a produção da teoria feminista não se desvincule do processo político”

A pesquisadora percorre a onda feminista que se ativou nos últimos anos —com movimentos como o NiUnaMenos ou as greves— produzindo teoria enraizada na ação, com foco na ofensiva do neoliberalismo contra a reprodução social.

Buenos Aires, Argentina. Foto de Luci Cavallero, socióloga, feminista e pesquisadora. Junto com Verónica Gago, publicou o livro “Uma leitura feminista da dívida”.

Há alguns anos, a socióloga e pesquisadora argentina Luci Cavallero, junto com sua parceira de escrita e ação, Verónica Gago, se aprofunda nos campos do trabalho, pensões ou dívidas a partir de uma perspectiva feminista. Uma reflexão que não pode ser separada, como ela esclarece várias vezes durante a conversa, da discussão política coletiva dentro do movimento feminista e das várias situações sociais e econômicas onde essa conversa ocorre. 

A autora, junto com Gago, do livro “Uma leitura feminista da dívida” (disponível aqui), participou no final de fevereiro do Congresso Internacional Feminista “We call it feminism. Feminismo para um mundo melhor”, organizado pelo Ministério da Igualdade. Após uma intensa agenda, pouco antes de ter que pegar um avião de volta a Buenos Aires, Cavallero ofereceu ao jornal El Salto um amplo olhar sobre o papel das instituições feministas e seus limites, o sindicalismo feminista, a dívida ou o salário-base universal.

Que impressões você leva do Congresso Feminista Internacional?

A primeira sensação que tenho é que houve muita participação do ativismo feminista local e com convidados internacionais de diferentes procedencias e espaços de militância. Acho que o Congresso foi uma oportunidade de recorrer a e discutir uma questão que pairava no ar: o que aconteceu recentemente com o novo ciclo de lutas feministas? Isso pressupõe várias coisas. Tanto a questão sobre o que conseguiu se instituir como debate coletivo e como transferencias de sensibilidade, quanto a questão do que significa essas discussões terem chegado às instituições, quais são os desafios, quais são os limites dessas experiências e políticas públicas. Se trata de uma pergunta antiga em uma nova conjuntura: Quais são as relações mais virtuosas e possíveis entre instituição e movimento? Acho que isso também se refletiu na composição das mesas, onde se encontravam trajetórias de ativismo local, jornalistas, artistas e também pessoas com cargos institucionais ligados a agendas feministas.

Justamente esse arco, que começa nos movimentos e entra nas instituições para aplicar políticas públicas feministas, também faz parte do seu trabalho. Por exemplo, depois de participar do debate sobre a dívida dentro do movimento feminista, você agora faz parte da equipe que implementa um programa na Província de Buenos Aires para lidar com dívidas abusivas de mães de famílias monoparentais.


O primeiro ponto a se destacar é que a estrutura institucional feminista é fortemente atacada por movimentos de extrema-direita na Espanha e na Argentina. Então, obviamente, acontecem muitos problemas porque, em geral,  os recursos que chegam são poucos e os orçamentos são baixíssimos. Digo que a institucionalidade que deveria estar lutando pela sua existência e pelos motivos de ser permanente frente a outras instituições nas quais se dirigem as críticas mais duras. O que tentei promover foi uma política pública que se encarregasse da situação de superendividamento das famílias monoparentais da província de Buenos Aires, a maior do país.

O programa foi votado no Legislativo e reconhece o endividamento como problema social prioritário em termos de violência econômica contra a mulher. Vai ser executado pelo Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual. No entanto, ainda não está em vigor.

Você participa como militante e pesquisadora de uma agenda que aborda como o feminismo e o sindicalismo se cruzam para transcender essa falsa segregação entre trabalho remunerado e trabalho doméstico ou comunitário, tornando visível o trabalho não remunerado. Quão potente é partir do lugar de que somos todas trabalhadoras? 

Temos uma avaliação compartilhada com o coletivo NiUnaMenos sobre como foram esses anos de organização de greves feministas. Acreditamos que um dos equilíbrios mais importantes é a aliança entre feministas e sindicalistas, uma confluência entre duas experiências históricas que de alguma forma foram separadas. As que eram sindicalistas tinham muitos problemas em se autodenominar feministas e nós que somos feministas tínhamos um certo ressentimento com o sindicalismo. Acredito que a greve feminista permitiu que essas realidades, essas experiências vitais, se misturassem. Não apenas para revitalizar o sindicalismo realmente existente, mas para ampliar o que se entende por sindicalismo, para implantar um sindicalismo que leve a sério as questões da reprodução da vida.Por exemplo, um sindicalismo contra o aumento do aluguel, um sindicalismo que cuida do custo da alimentação, um sindicalismo que também pode colocar em pauta a reivindicação das trabalhadoras domésticas e comunitárias. 

Estas últimas são uma realidade trabalhista muito difundida na América Latina, são elas que trabalham nas comunidades, na produção de alimentos, saúde, são elas que acompanham casos de violência de gênero e que não são reconhecidos. Aí vemos uma grande dívida pendente: seis anos depois da primeira greve, ainda não conseguimos que o trabalho comunitário e de apoio múto, que é vital, seja remunerado de forma digna. Trata-se de feminismos capazes de se encarregar de realidades trabalhistas heterogêneas, migrantes, precárias e que respondem às políticas que o neoliberalismo instalou em nossos países.

Você também fala do direito de envelhecer em paz, ou seja, de enfrentar os efeitos da divisão sexual do trabalho ao longo de todo o ciclo da vida, e transfere essa perspectiva para a demanda por aposentadorias justas.

Esse foi um tema que apareceu com muita força em 2018. Como o feminismo respondeu à questão da previdência? O processo político foi muito interessante. O governo de Mauricio Macri, ultra neoliberal, chega a um acordo com o Fundo Monetário Internacional. Uma das primeiras exigências do FMI foi que o Estado anulasse a possibilidade de moratórias de pensões, lei que vigora desde 2004 e que permite as trabalhadoras que durante anos trabalharam em domicílio ou tiveram patrões que não contribuíram [que não contribuíram para segurança social], podem no final da vida pagar essas contribuições e reformar-se como trabalhadoras registradas. É um mecanismo de reparação face a uma desigualdade laboral que nos afeta, precisamente porque trabalhamos em casa e porque a maioria das trabalhadoras trabalha em tarefas de cuidado, mas que depois não acaba por lhes dar direito a uma aposentadoria. Assim, nós utilizamos o slogan: “As contribuições que nos faltam são do patriarcado”, e “Nem uma aposentada a menos”, para destacar a necessidade do feminismo assumir esta realidade e o direito à aposentadoria como contrapartida necessária da ideia de “trabalhadoras somos todas”. Se somos todas trabalhadoras, também temos que poder nos aposentar, e temos que encontrar formas reparatórias na Previdência Social que dêem conta de todas as desigualdades que passamos durante nossas vidas.

Como o feminismo tem enfrentado essa violência institucional e burocrática que implica que são as mulheres que devem lutar por subsídios, que devem justificar a pobreza de seus núcleos familiares?

Esta é uma questão muito importante para nós. Desde a primeira greve nacional em 2016, as assembléias são realizadas no Sindicato das Trabalhadoras da Economia Popular, que são as que realizam trabalhos comunitários que o Estado reconhece de forma muito precária e, ao mesmo tempo, são permanentemente identificadas e estigmatizadas como população subsidiaria e não trabalhadora.

Sabemos que o ajuste econômico exigido pelo endividamento precisa de uma validação moral. Esse validação moral gera uma hierarquia de méritos, onde o tempo todo, o que tentam fazer é deslegitimar a vida de mulheres pobres, porque são culpabilizadas como mães, porque usam subsídios sociais para comprar outras coisas que não comida para a sua família, etc. Claro que isso acontece sem se colocar uma lupa sobre as riquezas de outras pessoas, nem se julga quem são os detentores de uma concentração absurda de capital. São estigmatizadas as trabalhadoras da economia popular, que também sustentam a reprodução da vida em condições precárias. Sobre elas, paradoxalmente, o neoliberalismo ativa sua vigilância moral. Não há planos de austeridade e de ajuste que possam prescindir uma produção de populações que devam ser punidas, criminalizadas. Tentamos o tempo todo nos articular em lutas que não só não estão na defensiva contra o avanço reajustador e moralizador, mas estão na ofensiva: trata-se de dizer que somos as trabalhadoras e isso nos é devido. Nós somos as credoras. É o movimento que busca inverter que faz a dívida externa, né? Não somos nós que devemos, são eles que devem a nós, porque fazemos um trabalho que sustenta a vida e que não é reconhecido ao mesmo tempo que é explorado.

E em todo esse mecanismo, que lugar ocupa a figura da subjetividade devedora, como ela opera?

O que temos investigado, junto com Verónica Gago, é como essas políticas de austeridade do Fundo Monetário Internacional geraram um transbordamento de dívida para as famílias: dívida externa que se transforma em dívida privada e que as famílias devem assumir. O que descobrimos é que a dívida estava sendo assumida principalmente por mulheres trabalhadoras da economia popular, ou seja, mulheres que recebem algum subsídio do Estado. E isso é um paradoxo, são as mulheres que mais trabalham e ao mesmo tempo as que mais se endividam. Por que? Porque existe uma relação entre o trabalho não remunerado e o trabalho mal remunerado e a necessidade de contrair empréstimos para viver. A dívida torna-se um mandato que não pode ser ignorado. É assim que se produzem as subjetividades devedoras. Por isso o slogan “sem dívidas nos queremos” é muito importante, porque utilizamos para questionar o impacto dessa dívida externa com o Fundo Monetário Internacional em termos de cortes orçamentários, em termos de redução do investimento social do Estado , mas também porque a dívida externa surge nas famílias como uma necessidade de endividamento que é maioritariamente da responsabilidade das mulheres.

Dentre essas dívidas contínuas, está a dívida com aluguel de moradia. Conte-nos sobre as alianças com sindicatos de inquilinos e inquilinas…

A partir das lutas feministas é preciso fazer uma conexão com os conflitos que vão surgindo conjunturalmente porque fazem parte das lutas pela reprodução social. Nós, em plena pandemia, tivemos muitas consultas e demandas em relação à moradia. A habitação tornou-se quase a principal violência econômica naquele momento de emergência. Quem não tem acesso a uma possibilidade de aluguel, por exemplo, não consegue sair de uma situação de violência. Além disso, muitas mulheres chefes de família que estão alugando suas casas começaram a receber pressão dos proprietários. Então começamos a falar em “violência patrimonial” para sinalizar as ameaças e chantagens as inquilinas porque não podiam pagar o aluguel em plena pandemia, muitas desempregadas, sem renda, e com os filhos em casa. Os lares mais afetados durante a pandemia foram, mais uma vez, os monoparentais, os mais ameaçados de despejos. Nesse contexto, passamos a trabalhar cada vez mais com o Sindicato dos Inquilinos e Inquilinas, como forma de fazer também uma aliança estratégica para nos envolvermos nesse conflito que hoje é a principal reivindicação de quem vive uma situação de violência. Elas precisam de um lugar para onde ir, precisam ter autonomia financeira para sair daquela situação. Mas é também o principal problema de quem aluga, agora agravado pela inflação e pela especulação imobiliária. Então outra das coisas que fiz aqui foi me encontrar com colegas da PAH e do Sindicato dos Inquilinos e Inquilinas, bater um papo, trocar um pouco sobre essa situação e como a pauta feminista também está na luta pela moradia e ao mesmo tempo a luta pela habitação está na agenda feminista.

Você estava falando de autonomia agora, você tem trabalhado a questão do salário base universal. No Estado espanhol falamos de renda básica universal. O termo salário está mais associado ao reconhecimento do trabalho não remunerado, enquanto quando falamos de renda focamos na redistribuição, no acesso a recursos mínimos como um direito, desvinculado do fator trabalho. De fato, certos feminismos criticam a possibilidade de remunerar o trabalho de cuidado —como defendiam à época pensadoras como Silvia Federici— e veem tanto a ideia de salário quanto de renda como o risco de essencializar o papel da mulher como cuidadora . Você tem refletido sobre isso?

Acredito que isso tem a ver com uma história de lutas. Ainda que o debate tenha sido global, apareceu de formas diferentes em diferentes países. Nós não podemos separar a luta por um salário universal do que vem acontecendo na Argentina em relação a luta dos movimentos sociais pelo reconhecimento das tarefas que se cumprem. É também onde está a maioria das companheiras que fazem trabalhos comunitários. Portanto, na Argentina a demanda aparece como salário porque salário é a palavra mágica que reconhece que um trabalho anterior foi feito, que o trabalho já feito deve ser remunerado. Acho que seria preciso pensar, obviamente, que existem pontos de contato com essa ideia de renda, mas nos parece mais adequado chamá-la de salário. E claro, na discussão feminista tem toda a discussão de como garantir que esse salário não acabe por consolidar a condição de mulher trabalhadora em tarefas reprodutivas. Mas me parece que a chave aqui é lutar ao mesmo tempo: lutar por salários, por melhores serviços públicos de assistência, por licença maternidade e paternidade, para dissociar os mandatos de gênero em relação aos cuidados.

Você coloca muita ênfase, no discurso e nas suas práticas, na necessidade de unir pesquisa e movimento…

O que escrevemos se faz dentro de um processo político, que é o processo político da luta feminista na Argentina e, diria mais, na América Latina. Muitos dos conceitos que estão no livro têm a ver com conceitos que estão em diálogo com os processos políticos que, claro, não negam os percursos universitários que temos mas também, no quadro de uma universidade pública aberta a movimentos, tem uma porosidade em relação ao que acontece nas ruas. Portanto, não há uma separação tão nítida entre universidade e movimentos sociais, mas é importante destacar que é um livro que se faz dentro de um processo político e por isso teve também a capacidade de sistematizar palavras que foram saindo das assembléias e que tem a ver com essa ideia de que a economia feminista fala uma linguagem do cotidiano e que discute primeiro com a ideia de que a economia só pode ser um discurso de especialistas, geralmente neoliberais, que propõem uma economia voltada simplesmente para diminuir o déficit fiscal. Nosso objetivo é ajudar a repolitizar a reprodução social: o que comemos, quanto devemos, a quem devemos, por que devemos e como isso também gera uma economia de obediência na vida cotidiana. Daí a necessidade de pensar sempre em relação à produção da violência invisível. É muito importante que a produção de categorias, a produção de teoria, não se desvincule do processo político, que contribua para a sua dinâmica organizativa, que não se gere uma situação em que há umas que pensam e outras que são militantes.

E nesse quadro de desapropriação, a dívida é uma forma de desapropriação do futuro?

Sim, trabalhamos com essa discussão dentro do feminismo. Estamos falando de empréstimos em condições precárias, com juros altíssimos, que acontece muito na América Latina. Primeiro, o que a dívida implica é uma promessa de trabalho futuro. Você está prometendo ao seu credor que vai realizar uma série de ações e que, portanto, não vai realizar outras. Para nós, a dívida tem de ser analisada em relação ao modo como afeta a capacidade de planejar o cotidiano da mulher, mas também para pensar numa fuga de um lar violento, como a dívida limita a indeterminação do tempo que está por vir. Hoje você trabalha mais e ganha menos. Isso ameaça diretamente a possibilidade de usar o tempo para o seu bem-estar e para a ação política. Existe uma disputa muito importante pelo tempo, e nesse sentido a dívida atua diretamente nessa disputa.

A edição brasileira do livro “Uma leitura feminista da dívida”, de Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui.

*Entrevista originalmente publicada pelo jornal El Salto e traduzida livremente pela equipe da Editora Criação Humana.

Verónica Gago, sobre a luta feminista

Tradução da matéria de Emiliana Pariente para La Tercera.

Foto de Verónica Gago por María José Duran, UDP.

Quando a pesquisadora e docente da Universidade de Buenos Aires, Verónica Gago, fala da reprodução social como um território de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua analise é pontual e concreta; a reprodução social se refere a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o nome do conceito, para a reprodução de tal. Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não acontece automaticamente e que o trabalho – porque é trabalho – requer esforços e condições favoráveis ​​para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos concientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros momentos parecia óbvio e fortuito, não é minimamente garantido e não acontece de forma alguma automaticamente.

Para que se realize, pelo contrário, se requer certas garantias e direitos básicos que na atualidade tem sido privatizados e transformados em terreno férteis para negócio. “O conceito de reprodução social nos serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de as atividades de reprodução social não serem óbvias nem asseguradas, mas são um campo de valorização e concentração empresarial do capital, nos dá uma característica histórica desse momento”, reflete.

É esse o debate que tem sido aberto nesses últimos tempos nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para demonstrar o desempenho econômico (que durante muito tempo mostraram ser exitosos) contrastam com a realidade que vivem os setores de média e baixa renda, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que tem superado a linha da pobreza, mas que vive endividada – alcança 43% da população, da qual 44% são mulheres chefes do lar. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isso que está em questão hoje: como se reproduz a vida se não estão garantidos os elementos básicos que permitem a realização harmoniosa e digna de nossas necessidades vitais? “Durante muito tempo se pensou que o salário bastava para reproduzir a vida, mas em momentos de crise vemos que isso não é suficiente para realizar nossas atividades diárias ou ter os recursos essenciais para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, como ela aprofunda, que convergem feminismo e reprodução social, porque são as lutas feministas que têm tematizado esse conjunto de atividades. “O que os feminismos fazem é colocar a reprodução social como campo de luta e, portanto, também mostrar quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente; Por um lado, questionam os mandatos de gênero que fazem das mulheres as responsáveis ​​por garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales, sustenta que são os movimentos feministas os que deram dignidade política às lutas da reprodução social, que durante muito tempo se delinearam como causas subsidiárias à grande luta salarial. “O neoliberalismo quer se vender como uma espécie de pacificação das energias sociais, em que é antes a energia empresarial que organiza o social. E acredito que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes atualmente, vem dizendo que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal também é neoliberal.”

Você fala que os movimentos feministas transferiram a noção de violência a outra dimensão, reformulando até mesmo os valores de vítima e poder.

São os movimentos feministas que estão fazendo uma caracterização da violência que não fica só dentro de casa e que não é lida em termos de violência intrapessoal, mas sim relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e de lugares lares como um dos terminais privilegiados dessa violência. Mas não o confina apenas entre as quatro paredes. Isso dá um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e na vizinhança e expõe a violência como forma de exploração de corpos e territórios.

Esse é outro dos poderes dos feminismos atuais; sua capacidade de articular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, por serviços sociais, por educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que faz com que todas essas lutas se conectem e ao mesmo tempo se mostrem como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa de vítima e mulher empoderada. Por um lado, a história da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, porque nem todas são. E, por sua vez, como não cair no discurso contrário, empoderado, da empresária de si mesma. Aí está a armadilha.

Por isso é tão importante pensar como se desarma concretamente essa dinâmica, que inclui duas posições muito cômodas ao neoliberalismo. São as únicas duas posições que nos são oferecidas. Acredito que, pelo mesmo motivo, o movimento feminista está mostrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e ao mesmo tempo gerando possibilidades de enfrentamento e também de acompanhamento, luto e contenção. Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal. Porque justamente quando aceitamos ser vítimas parece que abrimos mão de nossa capacidade de desejar e lutar, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É uma dupla que tem que ser desmontada porque funcionam juntas. 

Além disso, são duas posições que partem de uma ideia de indivíduo fechado em si mesmo e a partir do feminismo estão sendo feitas experimentações pessoais e coletivas para ver que outras posições subjetivas existem, posições capazes de combinar luta e dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica sem que este seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que tem problematizado essas dinámicas da reprodução social e que propõem dinâmicas organizadas e colaborativas surgem como uma forma de resistência ao modelo atual?

As crises facilitam certa criatividade política e também a autogestão e reapropriação de funções. Acredito que a reprodução social é um território de experimentação em que os movimentos feministas tem tornado possível evidenciar as carências e por sua vez propor outros modelos de organização. Porque o que está em disputa agora é de que maneira, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse terreno, as lutas feministas estão colocando a pergunta do que significa transformar a vida cotidiana e a partir daí, todo o resto.

Você fala do patriarcado do salário. Como você o explica?

É um conceito de Silvia Federici, que postula que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada; nesse sentido, es trabalhadores que não recebem salário muitas vezes não conseguem reconhecer sua força de trabalho tampouco seu trabalho em si. Isso se aplica aos trabalhadores do campo, que não cobram salario, e também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Ao não receber um salario, ficam automaticamente subjugadas aqueles que sim cobram salario e instaura-se uma hierarquia de ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo disso é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres permanecem fixadas em situações de subordinação e abuso.

Em países latinoamericanos nos quais foram privatizados os direitos fundamentais que são necessários para viver… A dívida se transformou em uma obrigação?

Em países onde as coisas básicas têm que ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em emergências, é uma obrigação. A dívida é hoje aquela que organiza e possibilita a reprodução social, é o que permite uma invasão por parte do sistema financeiro na vida de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, é uma forma de amortecer a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente, mas ao invés de gerar raiva e pensar em como podemos exigir mais renda, o que fazemos é assumir responsabilidade de uma dívida e se sentir culpado. Para sair desse ciclo, nos endividamos porque, no final das contas, é isso que torna a precariedade mais “habitável”. Isso, em determinado momento, é insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente, o corpo se manifesta com dor e doença e depois explode socialmente. É por isso que existem surtos em nossos países.

No Chile explodiu. Inclusive se começou a falar em saúde mental e que esse modelo nos deixou todes mergulhades na depressão. Uma mudança estrutural era realmente desejada?

Acredito que sim. E a mudança acontece, o que acontece é que ela leva tempo e aos poucos se traduz em diferentes temporalidades e dimensões de transformação. Se pensarmos em termos processuais, fica difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, na verdade ele abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Mas não é necessário fechar um processo em relação a um resultado. Hoje temos que pensar que tipo de estratégias as organizações, movimentos, dinâmicas sociais e políticas estão tomando. E não se pode negar que há uma mudança importante nos tipos de discussões públicas sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais. Há também uma pergunta que permanece aberta e é “o que significa hoje enfrentar as formas de re-colonização de nosso continente?”. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento a respeito dessas questões. Não há pacificação na América Latina.

“Acreditamos que o livro é um aporte necessário para visibilizar e problematizar o conceito de dívida, mas sobretudo nos convida a investigar, entendendo a pesquisa como tarefa militante”

por Maria Florencia Cascardo* e Alberta Bottini**

Resenha do livro “Uma leitura feminista da dívida, de Luci Cavallero e Verónica Gago.

Livro “Uma leitura feminista da dívida”. Foto: Carol Ferraz

O livro “Uma leitura feminista da dívida: vivas, livres e sem dívidas nos queremos!” propõe uma nova forma de olhar e compreender a dívida. Diferentemente dos estudos centrados nas abstrações financeiras e macroeconômicas , o livro levanta um olhar feminista da dívida, convidando-nos a compreender o impacto concreto da mesma nos territórios, na vida das pessoas des classes populares e nos corpos de mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não binárias. Sob a perspectiva da economia feminista, nos propusemos nesta resenha a incorporar também a visão da economia popular, social e solidária, como forma de articular duas estratégias teóricas e práticas de resistência que buscam construir uma nova forma de entender o econômico.

O livro de Verónica Gago e Luci Cavallero surge no calor das discussões em torno dos processos de organização das greves feministas, das greves de mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não-binárias, que destacavam o papel econômico do trabalho doméstico não remunerado que realizam e que funciona como suporte invisível do sistema econômico.

Em primeiro lugar queremos destacar uma característica que nos pareceu importante do texto: seu caráter prático que nos permite gerar diálogos reais e concretos entre as teorias e nossas experiências como professoras e pesquisadoras da área de economia popular, social e solidária de universidades públicas dos subúrbios de Buenos Aires e como militantes feministas. E é aí que começa esse convite que nos faz pensar e reconceituar a dívida, não apenas como fenômeno abstrato e distante de nossas vidas, mas como um elemento estruturante das relações sociais e econômicas da nossa sociedade contemporánea. O livro assume então um valor como aporte teórico e como ferramenta de discussão, debate, resistência e construção coletiva. Imaginamos o livro como dispositivo proporcionador de debates com as organizações e sujeitos da economia social, popular e solidária; o compreendemos como uma ferramenta que permite uma leitura feminista, mas também que possibilita a formulação de propostas emancipatórias enquadradas nestas propostas para uma outra economia.

Falar da dívida nos leva a pensar no imaterial do que implica o setor financeiro global, e aqui está a primeira contribuição do texto de Gago e Cavallero: as autoras no propõem três movimentos como exercício para repensar os instrumentos financeiros na esfera do cotidiano, analisando seu impacto concreto sobre os territórios e corpos, assim como as experiências coletivas que surgem como mecanismo de resistência frente a mesma: desconfinar, corporizar e desacatar.

O primeiro movimento convida-nos então a tirar a dívida do armário, a expulsá-la desse confinamento à esfera privada; torná-lo visível, nomeá-lo, para deixar de pensar nele como um problema privado e entender esse fenômeno como parte de um problema comum. Tomando as contribuições conceituais de diferentes autores, definem a dívida como um “mecanismo de sujeição e servidão, estruturando a relação devedor-credor como constitutiva do capitalismo” que gera subordinação entre nações, setores, classes, gêneros e raças, entre outros. Pensar a dívida como um mecanismo generalizado de despossessão permite compreender como se produzem e reproduzem mecanismos e estratégias a partir do capital financeiro para a geração de devedores, habilitando desse modo novos mecanismos de exploração que são lidos na chave do extrativismo financeiro.

Abordam esse estudo desde uma leitura feminista, que propõe uma análise do impacto concreto que se contrapõe com as abstrações financeiras, pensando no endividamento da vida doméstica, isto é, a dívida dos setores assalariados e populares (estes últimos altamente feminizados). Assim, é como chegam a compreender a dívida como um mecanismo de dependência, produto do modelo de financeirização proposto pelo neoliberalismo, onde a dívida é o que permite repor o que nos é tirado: acesso a serviços, saúde, moradia, alimentação e trabalho. A dívida é o recurso que aparece quando não há outro recurso e não se encontram mais redes de apoio além do mercado, que não pode ser acessado, retroalimentando um círculo de dependência.

A dívida é o mecanismo a partir do qual os setores populares resolvem seus problemas cotidianos, o que as autoras entendem como um modo de gestão da crise. E destacam que apesar das exorbitantes taxas de juros que devem pagar (por aderirem a esta dívida de organizações usurárias), este endividamento toma conta das economias familiares, financiando o cotidiano e organizando uma estrutura de obediência (cumprir tal obrigação no que for possível), definida como terror financeiro que opera também como um mecanismo de disciplina social, especialmente em relação aos corpos feminizados.

A dívida então passa a ser moeda recorrente, mecanismo de subordinação. Por isso, após desconfinar a dívida, as autoras procuram corporizá-la, analisando a forma como ela se enraiza nos corpos e territórios, funcionando como um dispositivo de exploração transversal que capta a produção do comum, explorando mesmo a disponibilidade de trabalho no futuro. Ao dar corpo à dívida, as autoras permitem ver como esse mecanismo disciplinar se torna muito mais violento nos corpos de mulheres e dissidentes e nos setores populares. A dívida como disciplina, como mecanismo violento e ambíguo que permite a reprodução da dependência e a negação dos nossos desejos.

Na segunda parte do livro, as autoras interpelam a discussão sobre a dívida através de entrevistas com representantes de organizações feministas, da economia popular, social e solidária, e sindicais. As narrativas que o texto nos oferecem nos convidam a pensar como o imaterial se torna material, como o invisível associado ao setor financeiro se faz realidade, história e violência nos corpos das pessoas que vivem às margens.  Assim, as histórias expõem o papel das empresas financeiras no endividamento dos setores populares e permitem observar o impacto do endividamento nos vínculos, na saúde e na vida das pessoas. E aí começa a aprofundar a análise do impacto diferencial dessa dívida sobre mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não-binárias.

Por um lado, a partir do vínculo da dívida com os trabalhos de reprodução (que recaem principalmente nas costas de mulheres e dissidentes): são elas que se endividam para pagar os medicamentos, comprar a comida; resumidamente, são elas que se endividam para ter acesso a tudo o que permite a reprodução da vida das pessoas do lar.  Por outro lado, a partir da interseção entre dívida e autonomia econômica, o livro analisa a forma como a dívida está vinculada à violência de gênero.

É aí que se torna visível o terceiro movimento que as autoras nos propõem: uma vez desconfinada e incorporada a dívida, chegamos ao ponto do desacato. Essas entrevistas também permitem visualizar as resistências a esses dispositivos de subjugação, destacando o poder de desobediência que se abre a partir das experiências organizativas do movimento feminista.

E é aí, na encruzilhada entre a economia feminista e a economia popular, social e solidária, que nos propomos a pensar experiências que (nos) libertem da dívida e ao mesmo tempo construam coletivamente práticas de trabalho autogeridas. Nos relatos das experiências se nomeiam práticas como o pasanaku na comunidade boliviana, o crédito coletivo gerido no interior das organizações sociais que podemos vincular com práticas existentes entre as organizações da economia popular, social e solidária que pensam o crédito como um recurso para o grupo e não como uma saída individual. O objetivo passa a ser, então, coletivo e comum, a serviço das pessoas e não da acumulação do capital.

Assim são pensados ​​instrumentos de crédito solidário que, por exemplo, propõem a utilização de sistemas de garantia solidária entre os membros de um grupo, valorizando a importância da organização e construindo redes associativas, democráticas e autogeridas.

A incorporação de metodologias inovadoras como garantias solidárias, ou fundos rotativos, permitem a geração de fundos coletivos que são utilizados por quem os requer, devolvendo-os posteriormente para serem utilizados por outro integrante. Ainda dentro dessas estratégias podemos pensar nas moedas sociais utilizadas em feiras de economia social e solidária, que funcionam como instrumento de crédito para comercialização solidária para aquisição de bens e serviços, ao mesmo tempo em que integram produtores e consumidores em formas solidárias de organização do consumo.

Essas estratégias geram a capacidade de mobilizar um recurso com base na motivação coletiva; compartilhando a busca por financiamento que foge da lógica comercial e se orienta pelo princípio da reciprocidade presente nas experiências da economia popular, social e solidária.

Por fim, acreditamos que o livro é um aporte necessário para visibilizar e problematizar o conceito de dívida, mas sobretudo nos convida a investigar, entendendo a pesquisa como tarefa militante, sobre como os instrumentos financeiros produzem, aumentam e naturalizam a violência machista. Mas, também, como o mesmo sistema capitalista e patriarcal se nutre desses instrumentos para disciplinar e para acumular forças sobre nossas vidas.

O livro é por um lado uma aposta na resistência, desde os feminismo e desde a organização popular e solidária da economia e, por outro lado, um convite à construção de outras formas de viver uma vida que valha a pena ser vivida.

Maria Florencia Cascardo*: Universidad Nacional de Tres de Febrero, Tres de Febrero, Provincia de Buenos Aires, Argentina. ([email protected])

Alberta Bottini**: Universidad Nacional de Quilmes, Quilmes, Provincia de Buenos Aires, Argentina.  ([email protected])

As autoras fazem parte do Espacio de Género de la Red Universitaria de la Economía Social Solidaria (RUESS), da Argentina.

Para citar o artigo: Cascardo, M. F. y Bottini, A. (2019). Lucía Cavallero y Verónica Gago, Una lectura feminista de la deuda: ¡Vivas, libres y desendeudadas nos queremos! Buenos Aires, Argentina: Fundación Rosa Luxemburgo, 2019. Otra Economía, 12(22), 293-296.

A Covid-19 e a frenagem do desejo de fascismo no Brasil

por Claudia Maria Perrone e Rose Gurski.

“Eu estou aqui, porque acredito em vocês. Vocês estão aqui, porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil”.

Essas palavras foram pronunciadas por Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, em meio a um ato público pelo fim do isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um modo de conter os impactos nocivos da pandemia da Covid-19. Para os especialistas brasileiros o momento é de preocupação, já que o país caminha justamente para o pico da curva de transmissão com uma taxa de 400 mortes em 24 horas – isso sem que a doença tenha atingido maciçamente as populações em situação de vulnerabilidade social. O evento no qual o líder da nação discursou aconteceu no dia 19 de abril e reuniu uma pequena multidão que pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e o exército nas ruas.

Afinado com o  grupo de apoiadores que o recebeu com gritos de “mito”, o líder da extrema direita brasileira seguiu fazendo uso de bordões nacionalistas, entoando expressões que nos remetem aos líderes fascistas e nazistas da Europa na década de 1930: “Temos um novo Brasil pela frente. Patriotas têm que acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no destaque que ele merece. E acabar com essa patifaria. É o povo no poder”. Para estudiosos brasileiros do campo social e político não há surpresa nesta manifestação, foram falas populistas como essas, carregadas de ódio, autoritarismo e de ameaça aos laços democráticos que levaram o capitão à presidência da República. Já na eleição de 2018, os analistas se perguntavam o que fez com que 55% da população brasileira elegesse como presidente um político cuja trajetória pública, ao longo de 30 anos no Congresso Nacional, foi pautada por morte e não por vida. Suas lutas não foram ao encontro de temas como educação, saúde e ação social, mas, sim na defesa da violência, sobretudo a letal e especialmente contra as minorias. Suas propostas como homem público o levaram a disseminar, em seus discursos e ações, a perigosa combinação de violência e delinquência intelectual, banalizando a barbárie nos laços sociais através de um claro incentivo ao gozo com a tortura e o apagamento do outro. Estariam os brasileiros anunciando simbolicamente o desejo por lideranças maníacas por morte? De que, afinal, se constitui o atual desejo pelo fascismo?

O texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, escrito em 1921, foi primoroso na dose de antecipação do que estava por vir na Europa na década de 1930. Nele, Freudpropôs uma matriz de análise para os governos totalitários a partir do horizonte histórico da Primeira Guerra Mundial. Freud mostrou, em seu estudo, que o funcionamento das massas tentava suprimir a esfera política e, portanto, plural da vida a fim de instalar a dimensão da totalidade – traduzido em termos lacanianos, diríamos que o líder totalitário busca fazer “Um do Outro”, ou seja, produzir o apagamento da diferença e da pluralidade de sentidos na construção de posições e ideias. Seguindo ainda na esteira das construções freudianas, evocamos a noção de que o líder tem uma função central na arquitetura da psicologia das massas em sistemas totalitários, representando o ideal do eu; o líder enlaça sua figura aos membros do grupo e estabelece a premissa de que a identidade da massa se forja na operação de exclusão, questão que implica, obviamente, a segregação e os discursos de ódio a todo aquele que não se perfila à massa e/ou ao seu ideário.

A professora de teoria política da Universidade de Bogaçizi, Zeynep Gambetti, propôs a ideia de que estamos diante de novos fascismos evidenciados através do empobrecimento da linguagem, da erosão de valores progressistas, assim como do fortalecimento de práticas racistas, sexistas, xenófobas e incitadoras do ódio e da violência, afrouxando naturalmente os vínculos de solidariedade e compartilhamento entre os sujeitos. Gambetti agrega a esse cenário atual, do qual o Brasil não é o único signatário, o impacto da financeirização do mundo pela via de práticas neoliberais selvagens, o que não se reduz somente aos efeitos econômicos, mas que também aparece no individualismo de sujeitos que mercantilizam diferentes âmbitos da vida social, como laços e emoções.

Nesta direção, Walter Benjamin dizia que a teoria do fascismo deveria ser examinada não como uma regressão inexplicável do mundo pós-iluminista, tampouco como um eventual parêntese na história da humanidade, mas enquanto fenômeno que surge na história social de um mundo baseado na aceleração constante em direção a um progresso linear. Benjamin entendeu a modernidade do fascismo, bem como sua relação íntima com o futuro, através da associação da barbárie política com a idealização ilusória do progresso científico, industrial e tecnológico. Em sua visão, a futurização do desenvolvimento nas sociedades, cada vez mais financeirizadas, fazia do fascismo uma questão não apenas do passado, mas uma preocupação para o futuro.

Em artigo recente, no qual analisa os efeitos da pandemia no Brasil, Vladimir Safatle recolhe a expressão estado suicidário, utilizada por Paul Virílio, a fim de nomear um modo de funcionamento do estado brasileiro que, impregnado pelas premissas neoliberais, estaria não só operando a gestão das mortes e desaparecimentos dos corpos através da necropolítica, mas gestando, também, sua própria catástrofe com novas formas de violência de Estado. No caso do Brasil, o filósofo sugere que o Estado pode ser o próprio fiador da catástrofe, na medida em que repete compulsivamente a histórica desigualdade social e o genocídio de partes da população no cenário da Covid-19.

É justamente nesta direção que gostaríamos de analisar a situação ímpar de negacionismos relativos aos fatos vividos no Brasil de 2020 em meio à propagação da Covid-19. Em que medida o vírus, em nosso país, poderia estar funcionando como um desestabilizador da aceleração na direção de uma autodestruição? Poderiam os efeitos sociais e políticos que advêm das reações do presidente ao vírus produzir uma espécie de freio de emergência na direção do estado suicidário?

O Brasil de Bolsonaro é o único país, entre os 190 do planeta, a registrar carreatas frequentes que negam a potencialidade mortífera da doença e protestam contra o isolamento social como medida de emergência provocada em resposta à pandemia. Além do enfrentamento frontal das recomendações da OMS passeando pelas ruas de Brasília, cumprimentando os eleitores e promovendo manifestações públicas, o presidente reduz a pandemia a “uma gripizinha” e diz que “ficar em casa é covardia” já que “todos vão morrer um dia”.

No avanço das narrativas do absurdo, o domingo 19 de abril de 2020 foi o ápice de um tom maior da destruição gerada a partir da dicotomia artificiosa entre saúde versuseconomia. Com a participação no evento, Bolsonaro mostrou total indiferença com a saúde da população e suas condições sanitárias, especialmente considerando o número de pessoas que vive abaixo da linha de pobreza no país. A presença de Bolsonaro incitou seus eleitores a uma manifestação contra o estado democrático na qual a multidão pedia o fechamento das instituições e a intervenção militar.

É importante sublinhar que temos pensado que a Covid-19 pode estar funcionando como um movimento na direção de uma certa parada reflexiva sobre o atual cenário político do país. Isso porque, depois de mais de um ano de “desgoverno” bolsonarista no Brasil, no qual argumentos progressistas sustentados em ideários humanitários e sociais não fizeram nenhuma função de frenagem na destruição gradual dos processos democráticos, vemos um movimento acontecer a partir dos líderes das principais instituições democráticas nacionais.

Retomando o tema dos novos fascismos, também importa perceber que a onda de neoconservadorismo articulada com o revisionismo histórico e o negacionismo trazidos pela chegada de Bolsonaro ao poder constitui um dos elementos das novas formas de fascismo descritas por Zeynep Gambetti. A negação, que antes atingia o tema das mudanças climáticas e da ditadura no Brasil, atualmente atinge os pressupostos científicos relativos à pandemia, questão que nos parece ter impactado negativamente a popularidade do “mito”, especialmente se consideramos que as negações atuais resultam  em mortes imediatas e não em efeitos cujas repercussões só se darão nas gerações vindouras.

Através da pergunta sobre o desejo de fascismo, seguimos a ideia freudiana do líder forjado no lugar de ideal e, finalmente, chegamos no tema do gozo em Lacan. O psicanalista, em seu Seminário 17, fala do gozo como empuxo na direção da totalidade, aquilo que busca fazer “Um do Outro” e que, portanto, não cria laço, atacando o cimento social e constituindo-se, conforme dizia o psicanalista francês, em antilaço. Nesse diapasão, temos pensado que o fascínio pelos traços de novos fascismos em líderes como Bolsonaro pode estar relacionado ao gozo com a destruição do outro. O estilo rude, a linguagem empobrecida e o comportamento anticivilizatório parecem autorizar a humilhação, a morte e a destruição do próximo, ficando o sujeito desobrigado de qualquer recato social, como se o nó libidinal sujeito-cultura se desarticulasse, conforme postulou Freud em Mal-estar na cultura.

Ora, toda essa dinâmica de garantia de condições civilizatórias somente para alguns e não para todos não é propriamente uma novidade no tecido social do Brasil. Segundo Safatle, o Estado brasileiro nunca precisou de uma guerra porque sempre tivemos uma espécie de guerra civil instalada e não declarada. Mesmo acostumados à retórica do sacrifício de alguns pelo bem de outros, parece que, com a Covid-19, temos assistido à ausência de índices homicidários, restando a roleta russa de um morticínio em massa, na qual fica como questão “a história de corpos invisíveis e do capital sem limites”.

Em meio ao caos da Covid-19 no Brasil, vemos uma certa erosão na tentativa totalitária da extrema direita brasileira. Neste cenário, não podemos deixar de sonhar, especialmente porque não sabemos o que será possível no futuro. Por ora, devemos festejar a frenagem na aceleração em direção a um estado totalitário a partir do fato de que o vírus tirou a roupa do Rei, portanto, o Rei já está nu!

Cláudia Perrone e Rose Gurski são psicanalistas e professoras do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O texto foi originalmente publicado na Revista Cult.


Contraia dívidas e viva para contar sobre isso

Laboratoria: espaço transnacional de investigação feminista

por Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda.

“A dívida é a escravidão moderna”. Imagem: reprodução.

“Dívida ou vida” dizia um grafite de rua na Calle de la Fe, no bairro madrilenho de Lavapiés.  Entendemos dessa demanda: nossa luta pelo direito à moradia digna é, fundamentalmente, uma luta contra a dívida. Nosso movimento, a Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca, leva o nome escolhido em meio ao grande estouro da bolha hipotecária que vivíamos na Espanha a partir do final dos anos 2000. Porém, de uma forma ou de outra a dívida havia pousado em nossas vidas muito antes de sermos hipotecados ou não.

Ao longo de 2020 realizamos uma série de entrevistas, conversas e encontros entre as mulheres da nossa assembleia, das quais nasceu o caderno Até a queda do Patriarcado e não haver mais um despejo. Dívida, habitação e violência patriarcal. Nas histórias, além da hipoteca, apareceram dívidas contraídas para migrar ou estudar; microcréditos para abrir uma empresa, mas também para cobrir emergências de trabalho, como perda de ferramentas de trabalho; dívidas para cobertura privada de saúde; empréstimos ao consumidor e compras parceladas; empréstimos para pagar as contas, para necessidades atuais, como alimentos, produtos de higiene, gasolina, água e eletricidade ou medicamentos. Não houve vidas que não tenham passado por endividamento em um momento ou outro, mas sabemos que, mesmo que o fizesse, a dívida também estaria na vida dessas pessoas por meio da dívida pública e seus mandatos políticos se traduziriam em cortes no sistema de serviços públicos.

A dívida é, ao mesmo tempo, um sistema de formação social que produz obediência; um mecanismo de extração de nossa força vital e de trabalho; e uma máquina geradora de vulnerabilidade, que não só nos expõe à violência financeira que se pratica na relação credor-devedor, mas também a outras violências racistas, sexistas e heteropatriarcais ou trabalhistas. Essas três funções – obediência, extração, vulnerabilidade – são muito úteis no nível estrutural do funcionamento do capitalismo global. Primeiro você cria uma mentalidade, uma predisposição e até uma aceitação; serve para que a nossa criatividade, a nossa energia e o nosso corpo sejam produtivos em contextos utilizáveis ​​para a produção de lucro para os outros, que se acumula nas suas mãos em vez das nossas; e no final essa distribuição de funções se soma a outras violações de nossos direitos que nos deixam sem opção, nem mesmo a possibilidade de fugir.

Uma vez que reconhecemos o que já expomos, começamos a ver outras nuances. Não basta dizer “dívida ou vida”, porque as características de cada dívida definem qual vida e em que condições ela é permitida. Define o ponto de partida da luta, porque olhar atentamente para essas características permite inventar formas de alargar as condições que se dão, de lutar por mais espaço para a vida. Por isso, embora entendamos o endividamento como um mecanismo opressor, embora nos oponhamos à centralidade que ganhou na organização social, embora resistamos à obrigatoriedade do endividamento… as nossas realidades e a nossa luta obrigaram-nos a perguntar também: como viver com dívidas, uma vez que as temos?

Temos dívidas… e ainda assim vivemos. Acreditamos que existe uma conexão entre os efeitos que a dívida tem em nossas vidas e os fatores que diferenciam cada um dos nossos endividamentos. Em nossas conversas, as questões que interessaram foram o valor total da dívida; o valor mensal a ser pago – definido pelos juros e pelo prazo de amortização, além do total –; as garantias entregues e/ou os fiadores a considerar; as condições de retorno e a possibilidade de alterações, tais como a carência, etc; o envolvimento ou não de relações pessoais no esquema de dívidas e reembolsos; também a natureza da parte credora e que tipo de conduta se pode esperar dessa parte. Então nos perguntamos: como se endividar, se for preciso, em menos quantidade e com melhores condições?

Não estamos pensando em esquemas de pirâmide ou ONGs de microcrédito navegando nas bandeiras do feminismo pseudo-espiritual, liberal, caritativo ou tecnocrático. Pensamos em um futuro compartilhado de redes globais de resistência diante da realidade atual do endividamento obrigatório, capaz de mesclar estratégias de default organizadas com a construção de economias comunitárias justas, dignas e sustentáveis. Todas nós contraímos dívidas e queremos viver para contar a respeito. Qual é o seu histórico de dívidas?

Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda são integrantes de PAH Vallekas e seu grupo de mulheres.

Este texto é resultado de uma parceria entre a Revista Cult e a La Laboratoria: espacio transnacional de investigación feminista.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, de Verónica Gago e Luci Cavallero está disponível no nosso site. As autoras são pesquisadoras argentinas e integrantes dos coletivos Ni Una Menos e La Laboratoria: espacio transnacional de investigación feminista. Clique aqui para saber mais.

Práticas Nômades: por devires revolucionários

Por Cecilia Maria Bouças Coimbra

Imagem: reprodução.

Problematizando a si mesma, interrogando-se em seus caminhos de militância, a autora Alice De Marchi Pereira de Souza – através de 21 cartas – vai tecendo uma potente e rica cartografia de algumas práticas militantes hoje.

Vinda de uma geração – diferente da tradicional dos anos de 1960 e 1970 – onde os questionamentos sobre si e o mundo se colocam como principal vertente, Alice nos aponta, dentre os modos de militância que se embaralham e se entrecruzam, um mais ortodoxo e tradicional, onde uma determinada leitura da teoria marxista se faz presente e outro – de onde vem – onde se afirmam os autores da chamada Filosofia da Diferença.

Partindo do alerta feito, em 1977, por Michel Foucault no Prefácio à edição norte-americana de “O Anti-Édipo” de Gilles Deleuze e Félix Guacari, de que “não é preciso ser triste para ser militante”, a autora coloca em análise ao longo dessas cartas, vários conceitos como o de militância, esquerda, direita, direitos humanos, entre outros.

Especialmente através de sua experiencia cotidiana na ONG Justiça Global, mas também através de outros espaços onde atuou, Alice põe a nu esses sedutores e perigosos lugares ocupados pelo militante missionário, visionário, onipotente, arrogante, dono de uma verdade e dono da revolução.

Desse mal, todos nós sofremos. Os sedutores e perigosos discursos-ações que os levam a uma transcendência, a uma finalidade, à política de representação, estão presentes em nós e em nossa ânsia de mudar o outro e o mundo. É o Estado, é a Lei, é a Moral em nós!

Esta pesquisa, diferentemente, irá afirmar a imanência, a não finalidade, a experimentação, a processualidade de nossas práticas. Esse eterno inacabamento, esse estar sempre se fazendo, esse devir revolucionário nos apontam para práticas nômades que fogem, escapam, desnaturalizam, dessacralizam.

Este é o desafio que se coloca para cada um de nós: afirmar micropoliticamente essas práticas nômades em um mundo prenhe de representação, de Estado, de lei, de moral, de verdade, de dogmatismo, de eu…

Rio de Janeiro, Primavera.

Cecilia Maria Bouças Coimbra é psicóloga, fundadora e atual Diretora do Grupo Tortura Nunca Mais – RJ, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia “Estudos da Subjetividade”, da UFF, Pós-Doutora em Ciência Política pelo Núcleo de Esudos da Violência da USP.

O texto acima publicado está na orelha do livro “Modulações militantes por uma vida não fascista”, clica aqui para conhecer.