Corpos no plural: rumo a um manifesto anarcofeminista

Nos últimos anos, tornou-se lugar comum declarar que a dominação ocorre por meio de eixos múltiplos, em que gênero, classe, raça e sexualidade se interseccionam um com o outro. Ainda que haja muitos trabalhos empíricos interessantes produzidos a partir da premissa da interseccionalidade, raramente estes se encontram vinculados à tradição anarquista que os precede. Neste artigo, gostaria de articular esse ponto, mostrando a utilidade, mas também os limites da noção de interseccionalidade, para entender os mecanismos de dominação e, depois, discutir a necessidade de um programa de pesquisa anarcofeminista. Em segundo lugar, tentarei fornecer a estrutura filosófica para tal empreendimento, argumentando que é na ontologia spinozista do transindividual que podemos encontrar os recursos conceituais para pensar sobre a natureza plural dos corpos das mulheres e, portanto, sobre sua opressão. Isso permitirá que eu tente articular a questão de “o que significa ser uma mulher” em termos pluralistas e, assim, também defender uma forma especificamente feminista de anarquismo. Concluindo, retomarei a tradição anarcofeminista para demonstrar por que ela é hoje a melhor aliada possível do feminismo na busca de uma teoria crítica da sociedade.

 

Em 2015, o Departamento de Educação do Estado de Nova Iorque (NYSED) lançou uma nova campanha para deficientes. Como parte do esforço para encorajar as pessoas com deficiência a trabalhar, o NYSED circulou um anúncio no metrô intitulado “Você tem alguma deficiência? Você quer trabalhar?”, e o enriqueceu com diversas imagens, representando, presumivelmente, pessoas
que são passíveis de deficiência. A mensagem comunicada por palavras é clara o suficiente: diz que, se você tem uma deficiência e quer trabalhar, você pode tirar proveito do benevolente NYSED (algo que pode deixá-lo muito feliz, tendo em vista que as pessoas representadas no anúncio estão sorrindo). Mas, além das palavras, o que está sendo comunicado naquilo que eu gostaria de chamar de nível “imaginal”, isto é, no nível das imagens que também são presenças em si mesmas? Considerando que as imagens operam nos sujeitos tanto no nível consciente quanto inconsciente, o que essas imagens estão nos dizendo? E talvez até mais importante: o que elas não estão contando, mas comunicando subrepticiamente? As imagens em exibição mostram, a partir do canto superior direito, um trabalhador da construção civil latino, uma estudante afro-americana, uma mulher de classe média (possivelmente latina), que está sendo ajudada por outra mulher, um mecânico afro-americano diante de um carro e, finalmente, uma mulher de classe média branca, porém idosa, que trabalha em um computador (figura 1). Para o usuário do metrô de Nova Iorque, as imagens não podem deixar de transmitir uma mensagem muito clara: a deficiência provavelmente diz respeito aos corpos raciais da classe trabalhadora, à juventude étnica e às mulheres, posto que, mesmo quando elas estão sentadas confortavelmente à mesa, ainda precisam de alguma ajuda.


Isso é o que está visível nas imagens. Vamos agora perguntar o que permanece invisível. O que está ausente e, no entanto, talvez ainda esteja presente de forma poderosa? Quem é o único claramente ausente dessas imagens, aquele que supostamente não precisa ser abordado por uma campanha de deficiência, aquele que, precisamente por causa de sua ausência conspícua, é implicitamente representado como imune à deficiência? O homem branco de classe média. Este é o seu privilégio invisível: ele é a exceção à deficiência que normalmente pode acontecer a pessoas de um status inferior.

 

Por outro lado, observe como raça, gênero e classe se cruzam nessas imagens. Na imagem do canto superior direito, temos um trabalhador da construção civil latino: seria menos provável que ele fosse incapacitado se fosse um homem branco da classe trabalhadora? O jovem estudante é claramente um afro-americano: os jovens brancos são imunes à deficiência? Por último, mas não menos importante: os únicos expoentes possivelmente brancos e de classe média são mulheres, e é significativo o fato de que ambas estão sendo ajudadas, seja por um computador ou por outra mulher. Homens brancos de classe média são imunes à necessidade
de ajuda? Por que não ocorreu à/ao designer do anúncio inserir um homem branco, entre todos esses diversos corpos, se a verdade é que, de acordo com as estatísticas, os homens brancos são, na verdade, os receptores mais comuns dos benefícios por incapacidade da Previdência Social? 1 Como o privilégio de ser representado como imune à deficiência caminha junto com o de se beneficiar
economicamente por incapacidade?


Alguém poderia continuar a análise do lado “imaginal” da campanha, destacando outros pontos; por exemplo, o fato de todas as imagens reproduzirem e transmitirem claramente um binarismo de gênero binário estereotipado: os homens estão fazendo o trabalho duro (mecânico e ligado à construção), enquanto as mulheres trajam vestes leves e estão sentadas em frente às mesas (e sendo
ajudadas). Além disso, observe que apenas os homens são representados olhando diretamente para você, enquanto o olhar das mulheres é sempre direcionado para outro lugar: presumivelmente em direção à fonte de ajuda que elas claramente demonstram precisar. Ser exposto a tais imagens quando entramos no metrô afeta o modo como os corpos se percebem? Poderia esse desvio presente no olhar (para baixo) das mulheres estar sutilmente ligado, de modo não dito, ao fato de que, apesar de toda pretensa discussão sobre a igualdade entre homens e mulheres, estas ainda estão sujeitas à discriminação sistemática?

 

Mais poderia ser dito a esse respeito, mas o ponto principal que gostaria de salientar sobre a natureza interseccional da discriminação social é o seguinte: quando se trata de representar corpos (e, nesse caso em particular, corpos que são provavelmente afetados por de ciência), gênero, fatores de classe e raça convergem entre si. Mas, se esse é o caso, faz sentido apresentar um manifesto especificamente feminista? Neste texto, gostaria de articular esse ponto, mostrando primeiramente a utilidade, mas também os limites, da noção de interseccionalidade, para, assim, defender a necessidade de avançar para o que chamarei de um programa anarcofeminista. Em segundo lugar, tentarei fornecer o arcabouço filosófico para tal empreendimento, argumentando que é em uma ontologia spinozista do transindividual que podemos encontrar os recursos conceituais para pensar sobre a natureza plural dos corpos das mulheres e, assim, de sua opressão. Isso me permitirá abordar a questão de “o que significa ser uma mulher” em termos pluralistas e, portanto, também defender uma forma especificamente feminista de anarquismo. Em conclusão, voltarei à tradição anarcofeminista e mostrarei por que hoje ela é a melhor aliada do feminismo na busca de uma teoria crítica da sociedade.

 

1. DO DIAGNÓSTICO PARA UMA PROPOSTA POSITIVA: INTERSECCIONALIDADE E ALÉM

 

Existe agora uma grande quantidade de trabalho empírico detalhado, mostrando como formas diferentes de opressão reforçam e sustentam umas às outras. Desde a década de 1970, quando as feministas começaram a investigar o modo como a família mononuclear se uniu à outras instituições, como escolas, fábricas e exércitos na reprodução do patriarcado, a ideia de um modelo interseccional começou a emergir.2 O principal insight por trás dessa palavra-chave é que, se quisermos entender como funciona a opressão das mulheres, não podemos nos limitar a um único fator (seja gênero, raça ou classe), mas precisamos investigar a maneira pela qual uma pluralidade de fatores se cruzam para reforçar e reproduzir a posição inferior das mulheres. Dizendo sem rodeios: a opressão em geral, e a opressão das mulheres em particular, é plural, porque o mundo é plural, então precisamos de programas de pesquisa como o de “interseccionalidade” para capturá-la.

 

Na tentativa de fazer valer tal pluralidade que os títulos das publicações começaram a crescer: migramos de Women, race and class (Davis, 1981) para Identities and inequalities: exploring the intersections of race, class, gender and sexuality (Newman, 2001), que acrescenta à lista de fatores uma distinção ainda comum, mas agora contestada, entre sexo e gênero3. Talvez tenha sido sob o

impulso dos estudos pós-coloniais e queer que a interseccionalidade oresceu e, consequentemente, a literatura correspondente se expandiu nas últimas décadas. Devido à influência das feministas pós-colonialistas, que destacaram que a emancipação das mulheres no Hemisfério Norte pode vir com o custo de uma maior opressão das mulheres do Hemisfério Sul, o feminismo se viu forçado a repensar o quão intrinsecamente brancos são os seus vieses, o que fez do termo imperialismo um adendo inevitável à lista.4 Porém a lista não para por aí, uma vez que outras formas de opressão também mereceram serem trazidas à cena. Por exemplo, Holmes (2010) intitulou seu trabalho Marked bodies: gender, race, class, age, disability, disease. Embora ela tenha esquecido a sexualidade (que é diferente de gênero) e o imperialismo (que é diferente de raça), vale creditar a ela ter trazido à tona outros itens importantes, como idade, de ciência e doença; o que se faz da imagem da velha com seu laptop, na campanha de de ciência mencionada anteriormente, é um bom exemplo de tal interseccionalidade.

 

Apesar do fato de que vários trabalhos empíricos muito importantes foram feitos sob o título de “interseccionalidade”, restam alguns problemas (para além de uma lógica produtivista existente na academia). Primeiro, qualquer lista está aberta à objeção de que esta não pode ser senão incompleta: se é o caso, como penso, que não se pode compreender a opressão das mulheres em nossas sociedades sem olhar para o modo como diferentes fatores se cruzam uns com os outros, por que parar com os itens mencionados antes? Por que não incluir “beleza”, por exemplo? Dificilmente se pode ignorar como as expectativas do capitalismo, classe e raça se fundem com imagens de beleza na transmissão de padrões hegemônicos de feminilidade. Basta medir o espaço dedicado a produtos de beleza para mulheres com aqueles reservados para homens em um supermercado e você terá uma noção espacial dos diferentes graus em que as expectativas de beleza impactam homens e mulheres.5 Mas seria suficiente adicionar mais um item? Haverá um fim para isso? O problema com as listas é, na verdade, duplo: elas são todas necessariamente incompletas, enquanto, ao mesmo tempo, estão necessariamente fechadas.

 

Em segundo lugar: apesar da interseccionalidade ser uma boa ferramenta para orientar a análise empírica, uma vez que impede que qualquer tipo de reducionismo (por exemplo, que classe ou raça sejam o fator que explica tudo), existe o risco de perder-se algo sobre a especificidade da opressão das mulheres. Se todas as formas de opressão se cruzam entre si, faz sentido falar sobre “feminismo”? Se as listas estão sempre se expandindo, o que há de tão específico sobre a condição das mulheres? O que estamos dizendo quando dizemos “mulheres”? Essa palavra não está, por si mesma, sugerindo sub-repticiamente uma distinção heteronormativa de gênero entre mulheres e homens, que pode, em si mesma, ser uma fonte de opressão para aqueles que não se identificam nem como homens nem como mulheres? Podemos falar sobre a condição específica das mulheres e justificar uma posição feminista distinta, sem cair na armadilha da heteronormatividade ou, pior ainda, do essencialismo?

 

Para responder a essa dupla crítica, gostaria de apresentar um apelo a um manifesto anarcofeminista. Fazer isso significa manter juntas as duas afirmações: que há algo específico sobre a opressão das mulheres e que, para combatê-las, você tem de lutar contra todas as outras formas de opressão. Dito de outro modo, isso significa defender uma posição que é, ao mesmo tempo, feminista e anarquista.

 

No que se segue, eu gostaria de tentar defender tal posição tanto no nível metodológico quanto no substantivo (embora, como ficará mais claro adiante, essa seja apenas uma distinção que se mantém na teoria, já que, na prática, os dois níveis convergem). No nível substantivo, defender uma abordagem anarcofeminista significa argumentar que não existe um arcabouço abrangente, isto é, nenhum princípio ou origem única da sujeição das mulheres. O trabalho feito em nome da interseccionalidade mostrou que nem sexo, nem classe ou raça, nem qualquer outro item único que possamos escolher em nossas prateleiras de gênero pode aspirar ser o único fator, a origem decisiva, o arqueológico que explica, o que, portanto, também explica a natureza pluralista da opressão das mulheres.

A teoria queer é particularmente interessante nesse aspecto, pois tem em si uma agenda de pesquisa pluralista que nos permite manter juntos uma variedade de tópicos. Neste trabalho, porém, deixarei de lado a teoria queer, visto que o que mais me preocupa aqui é a posição específica das mulheres. E falando abertamente, embora eu ache que é absolutamente crucial engajar e continuar a trabalhar em estudos queer, afim de apontar as armadilhas na simples identificação binária de gênero, eu também acho que há pessoas que são oprimidas precisamente porque são mulheres. E é principalmente com essa forma de opressão que me preocupo neste trabalho.

 

E aqui passo para o nível metodológico: desenvolver uma posição anarcofeminista implica desenvolver uma posição feminista que não seja simplesmente desconstrutiva ou negativa, mas que seja, ao mesmo tempo, uma forma de feminismo sem ascendência (observe aqui que, em contraste com outras formas de feminismo, como o feminismo marxista ou o feminismo foucaultiano, o próprio termo anarcofeminista se articula na tentativa de se livrar de qualquer ascendência). E os desafios para tal posição estarão, portanto, muito próximos daqueles que as feministas tiveram de enfrentar no passado: como defender a especificidade da feminilidade sem incorrer em qualquer forma de essencialismo? Para antecipar o conteúdo da próxima seção deste artigo, é em uma ontologia da substância única que, sugiro, podemos encontrar os recursos teóricos para pensar sobre uma individualidade (a das mulheres) que, é ao mesmo tempo, aberta, mas também determinada o suficiente para o nosso projeto.

 

2. CORPOS NO PLURAL: DO INDIVIDUAL PARA O TRANSINDIVIDUAL

 

Com a ajuda da visão de Balibar (1997), de que o conceito de individualidade de Spinoza é mais bem entendido como transindividualidade, tentarei mostrar que a ontologia mais monista de todas também pode ser a mais pluralista. Mas antes de fazê-lo, eu preciso mencionar que, ao fazer isso, também estou me inspirando nos Imaginary bodies, de Gatens (1996), pois é nesse trabalho que eu encontrei uma maneira de combinar muitos dos tópicos filosóficos que eu estava seguindo. E embora eu faça isso em uma direção anarcofeminista que talvez não agrade nem a Gatens nem a Balibar, eu ainda sou muito grata a ambos.

 

Apesar do fato de que uma tradição distintamente anarcofeminista começou já no século XIX, esta foi imerecidamente banida do debate público e, em particular, dentro da academia. Isso se deve, em parte, a um rechaço generalizado ao anarquismo, na maioria das vezes injustamente representado como sinônimo de caos e desordem, mas também à dificuldade de distinguir entre anarquismo em geral e anarcofeminismo em particular. Se é verdade que o anarquismo combate todas as formas de opressão, então ele também se opõe à opressão às mulheres. Mas se esse é o caso, por que falar de uma posição especificamente anarcofeminista? Isso criou uma lacuna teórica no campo, que foi preenchida apenas de maneira muito parcial.6 Minha contribuição para esse empreendimento

envolverá apontar para uma ontologia especí ca do corpo, ou do que chamarei de ontologia dos corpos no plural, o que nos permite falar especificamente sobre as mulheres e sobre a pluralidade de sua opressão.

 

Não há nem o espaço nem a necessidade de se envolver aqui no exercício filológico de tentar mostrar por que uma ontologia do transindividual é a melhor maneira de interpretar os textos de Spinoza. De fato, aqueles que querem esse argumento na forma de uma exegese precisa das obras de Spinoza podem ler o ensaio seminal de Balibar (1997) Spinoza: from individuality to transindividuality. Em vez de fazer isso, tentarei resumir seus insights fundamentais e apresentar um esboço dessa ontologia, de uma forma que, esperamos, também seja acessível ao não especialista.

 

Como Spinoza aponta, é evidente, em si mesmo, que o não poder existir é carecer de poder, e o poder existir é ter poder. Assim, se o que necessariamente existe são apenas seres finitos, então os seres finitos são mais poderosos do que um ser absolutamente infinito, o que é um absurdo. Então, ou nada existe ou um ser absolutamente infinito também existe. Mas nós existimos, seja em nós mesmos ou em alguma outra coisa que necessariamente existe. Portanto um ser absolutamente infinito existe necessariamente (EI P11, 2 prova alternativa).7 Essa é, a meu ver, a mais bela lição do spinozismo: se existem 20 pessoas nesta sala, então existirá necessariamente um ser infinito.8

 

Mas dizer isso também implica que existe uma substância, uma substância única infinita que se expressa por meio de uma infinidade de “atributos”, em que o último termo significa o que o intelecto percebe da substância como constituindo sua essência (EI D4). Entre a infinidade de tais atributos, aqueles que são acessíveis a nós (pelo menos em nossa condição humana atual) são pensamento e extensão. Um único pensamento é, portanto, apenas um modo no atributo do pensamento, enquanto um único corpo é um modo no atributo da extensão.

 

Afim de limpar o caminho imediatamente de qualquer possível mal- entendido, isso não significa que o pensamento e a extensão, ideias e coisas, sejam paralelos um ao outro. “A ordem e conexão de ideias é o mesmo (idem) que a ordem e conexão das coisas” (EII P7): pensamento e extensão são os mesmos (idem), não paralelos um ao outro, e muito menos são duas diferentes substâncias. Precisamos sublinhar isso, porque sempre que falamos de mente e corpo, ou ideias e coisas, a estrutura metafísica dualista que herdamos tende a penetrar sub-repticiamente. O primeiro passo para chegar à uma concepção verdadeiramente pluralista do corpo é livrar-se dessa estrutura e, portanto, da ideia de que um corpo é algo diferente, paralelo ou mesmo oposto a uma mente. Corpo e mente são apenas dois modos que expressam dois atributos diferentes de uma substância infinita que se expressa por uma infinidade de atributos.

 

Isso também nos leva à compreensão específica da individualidade como transindividualidade, que se pode desenvolver inspirando-se em Spinoza e, em particular, no tipo de compêndio de sua física, que ele apresentou na Parte II da Ética, onde seu materialismo excêntrico emerge plenamente (EII P13-P15). Se pensamento e extensão são apenas dois dos atributos infinitos da substância única, então não podemos falar de uma ontologia simplesmente materialista, sem acrescentar imediatamente que não é a matéria estática, inanimada e bruta que está em jogo aqui. O materialismo de Spinoza é mais parecido com uma forma de materialismo espiritual do que com o que tendemos a associar ao rótulo “materialismo”, precisamente porque a extensão e o pensamento são apenas dois dos atributos infinitos da mesma substância. Dentro de tal ontologia, as coisas individuais (res singulares) existem apenas como uma consequência da existência de outras coisas individuais (EI P28), com as quais elas participam de uma rede infinita de conexões (Balibar, 1997, p. 27). Observe aqui que isso também implica que a causalidade não deve ser entendida no sentido de uma sucessão linear de eventos, mas sim como uma multiplicidade de conexões de elos causais entre indivíduos, que são feitos de indivíduos mais simples e mais complexos, todos relacionados causalmente. Do contrário, todo indivíduo é constantemente composto e decomposto por outros indivíduos com os quais entra em contato por meio de um processo de individuação, que envolve tanto os níveis infraindividual como supraindividual (Balibar, 1997, p. 27). E é para traduzir essa complexidade que, segundo Balibar, a individualidade deve ser entendida como uma transindividualidade.9

 

Indivíduos, portanto, nunca são compreendidos como átomos, eventos, e muito menos sujeitos dados de uma vez por todas. São processos, resultados de movimentos constantes de associação e repulsão que conectam indivíduos simples com outros indivíduos simples, mas também com indivíduos mais complexos, que constantemente fazem e desfazem um corpo. Para obter uma noção grosseira, mas e ciente, do que quero dizer aqui, pense em como nossos corpos são compostos e decompostos pelos líquidos que o atravessam: bebemos, mas transpiramos, urinamos, estamos constantemente processando líquidos, que, por contrapartida, processam nossos corpos. Da mesma forma, somos constantemente compostos pelas moléculas que inspiramos e expiramos de nossos corpos. Observe que, dentro dessa ontologia, o mesmo vale para pensamentos: como indivíduos, somos o resultado de todos os modos no atributo do pensamento que constantemente encontramos, sejam eles o artigo que você está lendo, a conversa telefônica que você teve com seu amigo esta manhã, ou os pensamentos inspirados pela campanha de de ciência mencionada no início deste artigo. Mais ainda: a ordem e a conexão de ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas, porque as ideias não são nada além de afirmações do corpo.

 

Outra maneira de fazer o mesmo ponto é pela teoria do conatus, ou esforço, de Spinoza, isto é, a observação de Spinoza, de que todo ser se esforça para persistir em seu ser (E III, P6). O conatus é esse “esforço” ou “empenho” para persistir em nosso ser que, por vezes, Spinoza também chama potentia ou potencialidade (EIII P7Dem). Embora todo indivíduo, até mesmo uma pedra, seja dotado de conatus, o que é típico dos seres humanos é constituído por uma série mais complexa de movimentos de atração, repulsão e imitação gerados por seus afetos (EIII P14-16; P21-34; EIV P6-P19), em que um afeto indica, ao mesmo tempo, uma afeição do corpo e a ideia desse afeto.

 

Mais uma vez, observe aqui como facilmente se sai da armadilha do dualismo metafísico. Como o corpo e a mente não são nada além de modos dentro de diferentes atributos da substância única, nenhuma separação radical entre um sujeito conhecedor e seu objeto pode subsistir. De fato, a própria noção de um sujeito fechado, de um ego cartesiano, não faz sentido nesta ontologia. Os seres humanos não são nada além de indivíduos complexos resultantes de movimentos de atração e repulsão entre indivíduos mais ou menos complexos.10 Em outras palavras, não são entidades dadas, mas processos, redes de relações afetivas e imaginárias, que nunca são dadas de uma vez por todas. Isto é, a meu ver, o sentido em que a afirmação radical de Spinoza deve ser interpretada: de que o desejo é a essência do homem (Cupiditas est ipsa hominis essentia: EIII, De nição das Emoções, D1). O desejo não é apenas uma característica dos seres humanos. É, muito mais radicalmente, o que os cria, e o faz por meio de um processo de individuação constante que é de natureza transindividual.11

 

Mas isso também significa que, como ressaltou Gatens, no processo de individuação que gera os seres humanos, a dinâmica complexa da identificação imaginária se torna particularmente crucial.12 Constantemente nos encontramos e nos reconhecemos, ou nos reconhecemos erroneamente em certas imagens corporais, que incluem imagens que temos de nossos corpos e de outros corpos,

bem como imagens que os outros têm delas e que se tornam constitutivas de nosso próprio ser. O termo-chave para manter juntos o lado mental e material desse processo é, para Spinoza, “imaginação”. Este último, em sua teoria do conhecimento, denota um conjunto de ideias produzidas com base em afetos corporais presentes ou passados (EII P26D, P 40S2). Afim de evitar mal- entendidos, devemos lembrar que uma ideia não é, para ele, apenas um conteúdo mental. A imaginação tem uma base corporal, porque a mente é apenas o corpo que é sentido e pensado. Além disso, uma ideia é, para Spinoza, “uma concepção da mente” (EII D3).

Seguindo Gatens e Lloyd (1999), talvez possamos resumir melhor a visão da imaginação de Spinoza, dizendo que ela é uma forma de consciência corporal, que signi ca consciência de nosso corpo e de outros corpos com os quais entramos em contato e que, como tal, é sempre, propriamente falando, uma forma de imaginação coletiva (Gatens & Lloyd, 1999, p. 12).

 

Enquanto Spinoza, e Gatens, com base em Spinoza, enfocam o papel que a imaginação desempenha nessas dinâmicas de atração e repulsão que são constitutivas de nosso ser, eu prefiro reconceitualizá-las em termos do que tem sido chamado recentemente de “imaginal” (Fleury, 2006; Bottici, 2014). Apesar do fato de que as feministas desenvolveram o conceito de imaginação de Spinoza muito mais longe do que ele o fez (Gatens & Lloyd, 1999), o conceito de imaginação permanece imbuído nos pressupostos de uma filosofia a problemática do sujeito, da qual eu tenho tentado me distanciar [. . .] Entre os dois extremos de uma filosofia a da imaginação, entendida como uma faculdade que os indivíduos possuem, de um lado, e de uma filosofia do imaginário social, entendida como um contexto social que nos possui, de outro, existe uma terceira perspectiva, a do “imaginal”, que nos permite evitar as armadilhas de ambas as alternativas. Em poucas palavras: “imaginal” é aquilo que é feito por imagens, no sentido mais radical do termo, ou seja, imagens como representações que também são presenças em si mesmas (Bottici, 2014, pp. 54-63). Como tal, a noção de “imaginal” não faz quaisquer pressupostos ontológicos quanto ao estatuto real ou irreal das imagens: enquanto o conceito de imaginário está associado à ideia de irrealidade, como na expressão “isso é puramente imaginário”, o termo “imaginal” não carrega qualquer pressuposição ontológica tão forte. Da mesma forma, enquanto a imaginação tende a ser entendida como uma faculdade individual e o imaginário tende a ser entendido como um contexto social, o “imaginal” pode ser o resultado de ambos e é, portanto, um melhor companheiro teórico para o transindividual do que a imaginação ou o imaginário social: como o transindividual, o conceito do “imaginal” aponta para a necessidade de se livrar da própria alternativa binária social versus individual.

 

É em termos do que Gatens chama de “corpos imaginários”, e que eu gostaria de chamar de “corpos imaginais”, que podemos entender o lado psicológico do processo de individuação descrito acima.13 Sempre que nosso corpo encontra outro corpo, que pode ser um corpo simples, como um copo d’água, ou um mais complexo, como outro ser humano, uma mudança em sua própria constituição ocorrerá. É nesse sentido, e a m de manter juntos o que acontece tanto no nível infraindividual quanto no supraindividual, que a noção de transindividualidade se torna particularmente útil. Em suma, nossos corpos são sempre necessariamente corpos no plural, porque sua individualidade é sempre e inevitavelmente uma forma de transindividualidade. Todos nascemos de outros corpos e, desde nosso nascimento, somos constantemente transformados ao encontrarmos outros corpos, ao mesmo tempo que também os afetamos constantemente. O conceito de transindividualidade serve para sinalizar tal complexidade e nossa natureza processual.

 

O problema, no entanto, inevitavelmente emerge do que pode garantir a continuidade no espaço e no tempo para tais processos em andamento. Mas antes de passarmos a essa questão, deixe-me primeiro explicar o que quero dizer com “corpos no plural” e por que essa compreensão do corpo pode nos levar além de alguns dos impasses que assolaram a loso a feminista nas últimas décadas. Primeiro, por “corpos no plural”, pretendo sublinhar a natureza transindividual dos processos de individuação, isto é, de um processo que une os níveis infraindividual e supraindividual. Em segundo lugar, ao colocar o corpo dentro de uma ontologia da substância única, é possível superar todas as oposições que acompanharam os debates feministas desde o início: a sujeição das mulheres é o resultado de sua biologia (natureza) ou de sua criação (cultura)? Por trás dessa oposição, bem como por trás da oposição entre sexo e gênero, há, de fato, o típico dualismo metafísico ocidental que gira em torno da dicotomia entre corpo e mente (Gatens, 1996). Mas se entendermos corpo e mente simplesmente como modos dentro de diferentes atributos da mesma substância, então nenhuma oposição entre os dois pode se sustentar: e é dentro de tal quadro ontológico que também se torna possível levantar a questão “o que é uma mulher? ‘evitando as falsas alternativas entre’ essencialismo ‘e’ culturalismo”. Uma vez que o corpo não é mais entendido como uma entidade inerte e fixa, não há mais necessidade, mas também não há mais espaço para elevar a carga do essencialismo.

 

3. MULHERES EM PROCESSO, MULHERES COMO PROCESSOS

 

Como mencionei antes, a questão mais saliente que essa ontologia levanta é o que garante a continuidade de uma individualidade no espaço e no tempo. Se a individualidade deve sempre ser entendida em termos de transindividualidade, de um processo constante de individuação, como podemos falar de um único indivíduo em um momento e tempo específicos? É combinando Spinoza, a Psicanálise e a Sociologia que responderei: a narrativa. É realmente por meio de uma história dos encontros do passado e do presente que constituem uma única individualidade que podemos encontrar o o que nos permite falar de um único indivíduo em algum momento no tempo.

 

Tal história não é apenas a história que contamos a nós mesmos, como se fôssemos mônadas isoladas sem janelas e portas. É novamente todo um processo de contar histórias, que também terá de ser o resultado dos encontros entre as histórias que contamos a nós mesmos e as que nos dizem, entre as histórias em que nos reconhecemos e as que não nos reconhecemos.14 E é por uma história

que, nesta seção, eu gostaria de tentar abordar a questão: “o que é uma mulher?”. Primeiro abordarei a questão do que significa compreender a mulher como um processo e, em seguida, passo a ilustrar esse ponto pelo exemplo de um encontro “imaginal”.

A objeção usual levantada contra o feminismo radical, e, em geral, contra todas as formas de feminismo que se apegam à noção de feminilidade, é o risco de cair em uma forma de essencialismo ou, o que é pior, em uma forma de heteronormatividade que congela as potencialidades do gênero no binarismo mulher/homem. Como deveria ser evidente neste ponto, dentro de uma ontologia monista do transindividual, tal objeção não pode ser mantida. O corpo não é uma matéria inerte, ou uma essência, à qual podemos atribuir propriedades xas imutáveis (como certos tipos de genitália ou balanços hormonais). Pelo contrário, o corpo em geral e o corpo das mulheres em particular são processos.15

 

As práticas artísticas desfrutam de uma posição privilegiada nesse sentido. Ao fornecer espaço para desafiar as visões hegemônicas de maneiras que conectam a crítica racional com a ligação emocional, elas são frequentemente um espaço particularmente e ficaz para renegociar nossos seres imaginais. Para colocar nas palavras de Muñoz, pode-se entender essa iluminação como um excedente de afeto e significado; um excedente que é gerado pela iluminação especificamente antecipatória da arte (Muñoz, 2009, p. 3). E se é verdade que ser mulher, em nossas sociedades capitalistas, envolve cada vez mais o “domínio imaginário” (Cornell, 1995) ou mesmo o registro do espetáculo comoditizado (Ehrlich, 2009), então podemos olhar para as práticas artísticas como um possível local para a promulgação de contraespetáculos.16

 

Vamos considerar a série de trabalhos sobre Pastrana, feita e executada pela artista mexicana Laura Anderson Barbata, em Nova Iorque. A figura 2, intitulada Julia e Laura, captura um desses momentos.17 Na foto, você pode ver uma mulher-artista (a tela nas costas) que se projeta como um espelho de outra mulher, ao lado de uma estátua, e usando uma barba preta. As duas mulheres têm vestidos roxos semelhantes, o mesmo tipo de pose, sapatos e penteados semelhantes, mas uma usa óculos e a outra uma barba espessa e comprida. Curiosamente, a artista- mulher sem barba se chama Laura Anderson Barbata, que, em espanhol, como em minha própria língua nativa, é muito próxima de barbuda, que significa literalmente “uma mulher barbada”. Isso sugere que a mulher à esquerda da imagem é a verdade do XX da mulher à direita? A posição da artista na frente da tela é a verdade da mulher barbada à esquerda ou a ruptura no meio da imagem, sugerindo um processo de identificação e desidentificação ao mesmo tempo? Eu diria que é ambos, e precisamente assim, essa imagem funciona como um meio de interrogar e renegociar a feminilidade.

 

Na história de Julia e Laura, que Laura Anderson Barbata tem contado em suas imagens e em suas performances, ficamos sabendo que Julia Pastrana nasceu em 1834, em uma pequena aldeia mexicana no Estado de Sinaloa.18 Muito pouco se sabe sobre o primeiros 20 anos de sua vida, exceto que, em algum momento, ela estava morando na casa do governador de Sinaloa, onde foi treinada como dançarina e meio-soprano, e onde aprendeu francês e inglês. Em 1854, ela foi vendida ao sr. Francisco Sepúlveda, que fez uma parceria com um empresário americano, Theodore Lent, para apresentar Julia Pastrana nos Estados Unidos. Naquele mesmo ano, Theodore Lent se casou com Julia Pastrana em Nova Iorque. A partir de então, seu empresário e seu marido a apresentaram como: “A mulher mais feia do mundo”, “A indescritível”, “O hirsuto”, “A mulher do macaco”, “A fêmea híbrida”, “A mulher-urso”, “Dama Beduína” e a “Mulher- Macaco”, entre outras denominações.

 

Em 1860, Pastrana, que estava grávida do lho de seu marido, viajou para Moscou, onde deu à luz um bebê diagnosticado com a mesma condição que a dela (isto é, coberto de pelos pretos excessivos e uma mandíbula superdesenvolvida). Tanto o bebê quanto a mãe morreram logo após o nascimento. Depois da morte deles, Theodore Lent vendeu seus corpos para o dr. Sokolov, da Universidade de Moscou, que desenvolveu uma técnica especial de embalsamamento e queria usá-los para mais investigações cientí cas. Mas, dois anos depois, Lent voltou a Moscou para recuperá-los e, com o apoio da embaixada dos EUA, conseguiu obter seus corpos. Ele os colocou dentro de uma caixa de vidro e começou a exibi-los por toda a Europa, com grande sucesso comercial.

 

Desde então, os corpos de Julia Pastrana e seu bebê continuaram a ser exibidos, pesquisados, roubados e dani cados. O fascínio que exerciam não se deteve com a morte: pelo contrário, era aumentado por ela, porque sob uma caixa de vidro, eles se tornavam controláveis. Em 1976, ladrões invadiram um armazém em Oslo, onde os corpos eram mantidos e jogaram o corpo do bebê em um campo, onde ele foi comido por roedores. O braço de Julia foi arrancado e encontrado muito depois, já o seu corpo permaneceu desaparecido até 1988, quando emergiu novamente. Em 1994, o corpo estava sob custódia do Departamento de Anatomia Forense de Oslo, para ns de pesquisa. Artigos e publicações descrevendo seu caso apareceram em todo o mundo, mas ela ainda era praticamente desconhecida no México.

 

Em 2003, Laura Andersen Barbata conheceu a história de Julia Pastrana, por uma peça dedicada à sua vida. A partir desse ponto, Barbata se engajou ativamente em uma campanha internacional, tentando recuperar o corpo de Pastrana e devolvê-lo ao México. Após dez anos de lutas, o corpo foi finalmente devolvido a Sinaloa, no México, onde foi enterrado com uma foto de seu filho no peito. Barbata foi muito ativa em garantir que seu túmulo fosse completamente coberto de concreto e fechado em paredes que medem mais de um metro de espessura para garantir que ela nunca mais seja exposta. No entanto, ao mesmo tempo, ela continuou performando essa história e expondo-a através de seu trabalho. Por quê?

Para entender o tipo de operação artística em questão, temos de dar um passo para trás e explorar o tipo de lógica exibicionista que emergiu da história de Julia Pastrana. Considere a figura 3, reproduzindo o anúncio do desempenho de Pastrana (1855) em Worcester, Massachusetts (1855). A captura nos diz imediatamente que temos um “índio Opate”, que se caracteriza por unir duas características (mulher e urso) que são incompatíveis. A imagem exagera tanto a quantidade de cabelo no corpo de Pastrana quanto seus traços masculinos, que contrastam ainda mais com sua feminilidade: é a combinação excêntrica de elementos que a visão hegemônica de feminilidade na época não permitia combinar, isso faz dela “mal-dita”, a criatura que é impossível nomear. Mas isso também explica o fascínio com seu corpo e, portanto, as razões para transformá-la em um espetáculo. A bela voz de um meio-soprano treinado, os panos chiques e a postura composta, invocando valores de adorno e submissão associados à moderna feminilidade ocidental, foi percebido como estando em desacordo com a espessura de sua barba, o excesso de seus cabelos, que, em vez disso, lembram os atributos tradicionais da masculinidade ocidental moderna. Como Preciado (2013, p. 114) observa, o deslocamento de pelos no corpo é um local crucial para a produção de corpos de gênero e raciais na Modernidade. No sistema tecnogênero do século XIX, a exibição de “senhoras barbadas” como monstruosidade andava de mãos dadas com a invenção do hirsutismo como uma condição clínica, tornando as mulheres normais potenciais clientes do sistema médico e cosmético normalizador. Observe aqui como o gênero selado com raça como “hirsutismo” tornou-se uma condição clínica que ajudou a classificar a feminilidade normal e as raças inferiores (Preciado, 2013, pp. 114-15)19. Não por acaso, a propaganda apresenta a estranha combinação feminina de Pastrana e traços masculinos como um índio “Opate”, relegando-o assim a uma raça inferior, e talvez até a uma espécie inferior: a rotulagem “Urso Mulher” não pode senão simbolicamente relegá-la a um espaço liminar entre uma espécie superior (humano) e uma inferior (animal).

 

Não é difícil reconhecer, nesse anúncio, a típica lógica exibicionista do colonialismo.20 O fascínio do índio “Opate” e da “mulher do urso” advém do fetiche colonial que precisa ser exibido no coração dos territórios dos colonizadores, a fim de reforçar as visões hegemônicas da feminilidade em casa, mas também para impedir imagens alternativas de feminilidade. Com relação a essa lógica, o trabalho de Barbata opera um contraespetáculo terapêutico, pelo que chamei, em outro momento, de terapia homeopática: ela toma pequenos pedaços do espetáculo passado para se voltar contra si mesma, usando assim o mal contra o mal, realizando um espetáculo de feminilidade contra a lógica espetacular hereditária da própria feminilidade.21 No entanto, em vez de simplesmente nos convidar a identificar-nos com a história de Pastrana, a justaposição das duas imagens e a ruptura branca no meio nos convida a um constante questionamento das dicotomias estabelecidas que representam: a barbada versus a mulher depilada, a masculina versus a feminina, a metade animal versus a totalmente humana. Assim, ao interrogar a feminilidade espetacularizada no passado, é possível pensar em outras possibilidades futuras.

 

Em suma, a história de Julia Pastrana ilustra poderosamente o fascínio que a pluralidade de seu corpo exercia, mas também quão ambivalentes as respostas a ela podem ser. O problema é que as pessoas geralmente não estão abertas a aceitar tal pluralidade (porque também implica aceitar as ambivalências de alguém) e, portanto, o fascínio volta na forma da monstruosidade, da feiura, da adoração, mas também na violação dos corpos embalsamados. Note-se que o marido, que não só estava interessado em ganhar dinheiro com ela como a engravidou, e, após sua morte, casou-se com outra mulher, Marie Bartel, que sofria de condições semelhantes às de Pastrana. Ele tentou fazer com esta a mesma coisa que fez com sua primeira esposa, mas ficou louco e morreu em um asilo russo. Esse era o seu problema, mas talvez também o nosso problema: a nossa dificuldade em manter uma abertura verdadeiramente pluralista, o que implica também a capacidade de manter unidas as nossas ambivalências. Parafraseando Nietzsche, esta talvez seja a nova fórmula de nossa felicidade: “Um sim, um não, uma linha reta e uma barba” (Nietzsche, 1976, p. 570).

 

4. CONCLUSÕES: EM DIREÇÃO A UM MANIFESTO ANARCOFEMINISTA

 

Concluindo, gostaria de voltar à questão do reducionismo levantada no início e tentar mostrar brevemente por que, para os teóricos feministas críticos, o anarquismo pode ser um melhor interlocutor para abordar a questão da opressão das mulheres do que o marxismo. Alguns argumentaram que é por causa de seu reducionismo econômico que o casamento entre marxismo e feminismo terminou em uma união infeliz: ao reduzir o problema da opressão das mulheres ao único fator de exploração econômica, o marxismo acabou dominando o feminismo exatamente da mesma maneira em que os homens em uma sociedade patriarcal dominam as mulheres (Sargent, 1981). Embora esse reducionismo tenha sido questionado por muitas feministas marxistas,22 permanece, pelo menos em princípio, uma possível tentação reducionista no feminismo marxista que, por outro lado, sempre foi estranha ao anarcofeminismo.

 

Qualquer análise crítica da opressão das mulheres precisa levar em conta uma multiplicidade de fatores, cada um com sua própria autonomia, sem os tentar reduzir a uma fonte ou origem que explique tudo; seja a extração de mais-valia no local de trabalho ou a sombra da não remuneração do trabalho doméstico. Há algo intrinsecamente multifacetado na opressão das mulheres, tanto que não será surpresa agora considerar o fato de que os programas de estudos de gênero e de mulheres são todos, inevitavelmente, interdisciplinares. Note aqui que, em contraste com muitas caricaturas do pensamento anarquista que ainda prevalecem na mídia, o anarquismo denota principalmente um método, um que visa a questionar qualquer arche estabelecido, e não um modelo completo para a sociedade.23

 

Apesar do anarquismo e do marxismo frequentemente estarem no mesmo caminho e até mesmo convergirem nas lutas dos trabalhadores, a maior diferença entre eles é que os pensadores anarquistas têm historicamente trabalhado com uma noção mais variada de opressão que enfatiza a existência de formas de exploração a qual não pode ser reduzida a fatores econômicos (sejam estes políticos, culturais, sexuais, cosméticos, e assim por diante). Daí também seu casamento mais feliz com o feminismo: se a relação entre marxismo e feminismo têm sido historicamente uma ligação perigosa (Arruzza, 2010), que reproduz a mesma lógica de dominação entre os dois sexos, então a relação entre feminismo e anarquismo promete ser um encontro muito mais produtivo. Historicamente, os dois convergiram com tanta frequência que alguns argumentaram que o anarquismo é, por definição, feminismo (Kornegger, 2009). A questão não é simplesmente registrar isso, de Mikhail Bakunin a Emma Goldman, e com a única (possível) exceção de Proudhon, o anarquismo e o feminismo frequentemente convergiam nas mesmas pessoas. Esse fato histórico sinaliza uma afinidade teórica mais profunda. Você pode ser marxista sem ser feminista, mas não pode ser anarquista sem ser feminista ao mesmo tempo. Por que não?

 

Se o anarquismo é uma filosofia que se opõe a todas as formas de dominação, incluindo aquelas que não podem ser reduzidas à exploração econômica, ele tem de opor-se à sujeição das mulheres também, caso contrário é incoerente com seus próprios princípios. A maioria dos pensadores anarquistas trabalha com uma concepção de liberdade que é mais bem caracterizada como uma “liberdade de iguais” (Bottici, 2014, p. 178), em que a última expressão significa que eu não posso ser livre, a menos que todos os outros sejam igualmente livres, porque mesmo se eu for o mestre, a relação de dominação da qual participo vai me escravizar tanto quanto a própria escrava. Mas se eu não posso ser livre, a menos que eu viva cercado por pessoas que são igualmente livres, isto é, a menos que eu viva em uma sociedade livre, então a sujeição das mulheres não pode ser reduzida a algo que diz respeito apenas a uma parte da sociedade: uma sociedade patriarcal será fundamentalmente opressiva para todos os sexos, precisamente porque não posso ser livre por conta própria. E isso é algo que tendemos a esquecer: o patriarcado é opressivo para todos, não apenas para as mulheres.

 

Então, se é verdade que o anarquismo tem de ser por definição feminismo, o oposto é válido? Pode haver feministas que não são anarquistas? Claramente, historicamente falando, muitos movimentos feministas não eram anarquistas. No entanto, algumas feministas afirmaram que o feminismo, em particular o feminismo da segunda onda da década de 1970, era anarquista em sua estrutura e aspirações profundas. Segundo Kornegger (2009), por exemplo, as feministas radicais desse período eram anarquistas inconscientes, tanto em suas teorias quanto em suas práticas. A estrutura dos movimentos de mulheres (por exemplo, grupos de conscientização), com ênfase em pequenos grupos como unidade organizacional básica, no nível pessoal e político, e na ação direta espontânea, assemelhava-se muito às formas tipicamente anarquistas de organização (Kornegger, 2009, p. 494).

 

Mas ainda mais impressionante é a convergência conceitual com a concepção de liberdade que descrevi acima. Por exemplo, Kornegger (2009, p. 496) afirma que “a libertação não é uma experiência insular”, porque pode ocorrer apenas em conjunto com todos os outros seres humanos, o que, mais uma vez, significa que a liberdade não pode ser uma liberdade de iguais. No entanto, isso também implica que não se pode lutar contra o patriarcado sem lutar contra todas as outras formas de hierarquia, sejam econômicas ou políticas. Como Kornegger (2009, p. 493) novamente colocou, “feminismo não significa poder corporativo feminino ou uma mulher presidente: isso significa nenhum poder corporativo e nenhum presidente”.

 

Caso contrário, o feminismo não significa simplesmente que as mulheres devem ocupar o lugar ocupado pelos homens (o que seria uma forma bastante fálica do feminismo); em vez disso, as mulheres devem lutar para subverter radicalmente a lógica da opressão patriarcal, na qual o sexismo, o racismo, a exploração econômica, a opressão política, e assim por diante, reforçam-se reciprocamente, embora com formas e modalidades diferentes em diferentes contextos. Isso se mantém ainda mais hoje, em um mundo globalizado, onde diversas formas de opressão e exploração, baseadas em gênero, sexo, raça ou classe, cruzam-se. Talvez a maior contribuição do feminismo interseccional tenha sido mostrar que, se pelo feminismo, entendemos simplesmente a luta pela igualdade formal entre homens e mulheres, corremos o risco de criar novas formas de opressão. Corremos o risco de que a igualdade entre homens e mulheres signifique apenas que as mulheres devem assumir posições antes reservadas aos homens burgueses brancos, reforçando, assim, mais os mecanismos de opressão do que os subvertendo. Por exemplo, se considerarmos que a emancipação das mulheres significa simplesmente entrar na esfera pública em pé de igualdade com os homens, isso, por sua vez, pode implicar que outra pessoa deva substituir essas mulheres em suas casas. Mas, para a mulher imigrante que substitui a dona de casa branca na prestação de cuidados domésticos, isso não é liberdade: ela simplesmente sai de casa para entrar em outra, como trabalhadora assalariada.24 Na situação atual, se o feminismo não pretende dissolver todas as formas de hierarquia, a emancipação de algumas mulheres (brancas) pode acarretar na opressão de outras mulheres (imigrantes, negras ou do Sul).

 

Para concluir, talvez o feminismo não tenha sido historicamente sempre anarquista, mas deve-se tornar agora, porque deve ter como objetivo subverter todas as formas de dominação. O feminismo, hoje mais do que no passado, não pode significar a presença de mulheres governantes soberanas ou de mulheres capitalistas de sucesso: não significa nem soberania, nem capitalismo. E espero que seja com essas palavras que um novo programa de pesquisa anarcafeminista seja iniciado.

 

Chiara Bottici é Professora associada de Filosofia na The New School for Social Research, Nova Iorque, Estados Unidos. E-mail: [email protected]. Site: https://www.newschool.edu/nssr/faculty/chiara-bottici/

 

Publicação original: Bottici, C. (2017). Bodies in plural: towards an anarchafeminist manifesto. M. M. Moreira & C. Ratton
(Trads.). Thesis Eleven, 142, 99-111. Tradução inédita para o português realizada com a autorização da autora.

 

*Artigo publicado em: Corpos no plural: rumo a um manifesto anarcofeminista. Psicol. rev. (Belo Horizonte) [online]. 2020, vol.26, n.1, pp. 299-324. ISSN 1677-1168.  http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p290-316.

 

  1. As estatísticas nos mostram que homens brancos são, de longe, os destinatários mais comuns dos benefícios por incapacidade da Previdência Social. Embora o governo pareça ter deixado de tabular dados demográficos raciais em 2010 (mesmo um relatório interno datado de 2014 é baseado em dados desatualizados), o relatório de 2009 nos indica que, de 7.788.013 destinatários daquele ano, 5.658.054 (73%) eram brancos, e 3.005.142 eram homens brancos (o que equivale a 39% – uma pluralidade – da população total, e uma maioria de 73% dos destinatários homens, que totalizaram 4.100.400). Além disso, dentro dos destinatários brancos, 53% eram homens. Resultados similares foram obtidos nos anos anteriores (Sunderman, 2015). ↩︎
  2. O termo “interseccionalidade” foi usado em 1989 pela socióloga K. W. Crenshaw (1989), mas suas origens intelectuais datam de muito tempo atrás, como tentaremos argumentar durante este trabalho. Desde as primeiras observações de Bakunim sobre como o patriarcado se cruzava com o autoritarismo (Bakunin, 2005) até os escritos anarcofeministas de Emma Goldman, vemos uma ênfase constante em como as diferentes formas de opressão se cruzam umas com as outras (Goldman, 1969). ↩︎
  3. Mais recentemente, ver Collins e Andersen (2012) e Ferguson (2013). Para um resumo mais sucinto da crítica recente acerca das distinções entre sexo e gênero, ver Chanter (2006, pp. 1-7). ↩︎
  4. Ver, por exemplo, Donaldson (1992) ↩︎
  5. Um exemplo de análise empírica da discriminação nos é fornecida por Castillo, Petrie e Torero (2012), enquanto Oksala (2011) faz uma observação semelhante em nível losó co, analisando como as técnicas de beleza contribuíram para criar um sujeito especificamente neoliberal do feminismo. ↩︎
  6. Em minha visão, Ehrlich (2009) e Kornegger (2001) apontaram para a direção certa algum tempo atrás. Mais recentemente, ver Shannon (2009) e Ehrlich (2013). Muitos escritos anarcofeministas tendem a assumir a forma de panfletos militantes, às vezes, deixando de fornecer a estrutura filosófica necessária para seu próprio empreendimento. Este artigo dedica-se justamente a preencher essa lacuna. ↩︎
  7. Seguindo a prática comum nos estudos de Spinoza, usarei como ponto de referência a edição crítica padrão das obras latinas de Spinoza: Spinoza, B. (1925). Opera, editado por Carl Gabhardt, Heidelberg, Winter, 4 vols. Para citar o texto, utilizo as seguintes abreviações: E = Ética, seguida da indicação da parte em algarismos romanos (I, II, III, IV, V), e seguida do número da Proposição (P 1, 2, 3, etc.). ↩︎
  8. O argumento das 20 pessoas é usado no escólio 2 da Preposição 7 EI, no qual Spinoza começa a adicionar alguns elementos a posteriori para a prova a priori da existência de uma substância in nita desenvolvida em EI P1-P7. ↩︎
  9. Para aqueles que apreciam o ato de traçar as origens da ontologia transindividual, Balibar inspira-se na Individuação psíquica e coletiva, de Simondon (2007). ↩︎
  10. Como observa Hippler (2011), o indivíduo não é, portanto, a primeira questão política dada, mas é concebido como um processo que é coextensivo com a própria política. É a terceira parte da Ética (Spinoza, 1994) que enfatiza os mecanismos afetivos de associação e transferência (EIII P14-16), além da mimese e imitação (EIII P21-34) que formam indivíduos. ↩︎
  11. Nota-se que o desejo é, para Spinoza (1994), claramente diferenciado da vontade, porque a vontade é o nome que damos aos esforços do homem para se preservar quando, por um processo fictício, pensamos na alma como isolada do corpo, enquanto o desejo é o mesmo esforço quando se relaciona inseparavelmente da mente e do corpo (EIII P9, escólio). Sobre a relação entre os dois, ver Balilar (1998, p. 105). ↩︎
  12. Um dos primeiros comentaristas a apontar para o papel construtivo da imaginação em Spinoza foi Negri (ver particularmente Negri, 1991, pp. 86-97). De acordo com Williams, o que há de novo em Negri (1991), Balibar (1997, 1998) e Gatens e Lloyd (1999) é que todos chamam a atenção para o romance de Spinoza, a renderização materialista da imaginação, sem simplesmente descartá-la como uma fonte de erros (Williams, 2006, p. 350). ↩︎
  13. Percebe-se as semelhanças entre este processo e o processo descrito por Cornell (1995) em O domínio do imaginário. Embora Cornell expresse sua teoria em termos lacanianos, penso que as ideias fundamentais de que o “imaginal” é um campo de batalha crucial onde corpos sexuados negociam em seus próprios termos se mantém a mesma. ↩︎
  14. Sobre como combinar a teoria de reconhecimento com a teoria transindividual, ver o volume editado Strategie della relazione (Marcucci & Pinzolo, 2010) e, em particular, o ensaio de Vittorio Mor no (2010) nele presente. Ao extrair ideias do trabalho do sociólogo Alessandro Pizzorno, elaborei ainda mais a relação entre identidade e narrativa, insistindo na natureza plural de tal processo, em Bottici (2007, pp. 227-245). ↩︎
  15. Isso é levemente diferente da observação de Gatens, de que o corpo é um produto histórico (Gatens, 1996), mas a essência permanece a mesma. Entre aqueles que enfatizaram esse ponto mais recentemente, ver Preciado (2013), particularmente as páginas 99 a 130. ↩︎
  16. Desenvolvi a noção de contraespetáculos em Bottici (2014, pp. 106-124). Embora tenha desenvolvido dentro da estrutura de
    uma teoria do “imaginal”, sou amplamente grata ao trabalho seminal de Lara (1998), que mostrou como as narrativas feministas
    podem exercer seu impacto crítico na esfera pública, desse modo, descobrindo-nos maneiras alternativas de ser mulher.
    ↩︎
  17. Ver o website de Laura Anderson Barbata (2013) para uma descrição de toda a série de trabalhos sobre Pastrana, que incluem arte visual e performances. Recuperado a partir de http://www.lauraandersonbarbata.com/work/mx-lab/julia-pastrana/ ↩︎
  18. Teço tais considerações a partir da cronologia de Barbata (2013). Recuperado a partir de http://www.lauraandersonbarbata.com/work/mx-lab/julia-pastrana/3.php ↩︎
  19. Por exemplo, desde 1961, o hirsutismo começou a ser medido de acordo com a escala de Ferrimann-Gallway, segundo a qual uma pontuação de oito na mulher caucasiana é indicativa de excesso de androgênio, enquanto, nas mulheres do leste asiático, uma pontuação muito mais baixa revela o hirsutismo (Preciado, 2013, p. 115). ↩︎
  20. Sou grata pelos trabalhos e filmes de Wayne Wapeemukwa (em específico, Balmoral Hotel, produzido em 2015), por iluminarem ideias acerca da conexão entre colonialismo e exibicionismo. ↩︎
  21. Desenvolvi este conceito de uma “estratégia homeopática”, de maneira mais extensa, em Bottici (2014, pp. 106-124). Cornell (1995, pp. 95-167) propõe uma estratégia semelhante em seu trabalho sobre pornografia, enquanto Muñoz (1999) o teorizou como “desidentificação” ou “futurismo queer“, em seu trabalho sobre o poder esclarecedor antecipatório das performances artísticas (Muñoz, 2009). ↩︎
  22. Exemplos notáveis incluem a aproximação bidimensional de gênero de Fraser (2013, pp. 158-186), a combinação de marxismo e teoria queer de Arruzza (2010), as reconsiderações mais recentes de Federici (2012) acerca de reprodução e a abordagem interseccional coletada na antologia recente Marxismo e feminismo (Mojab, 2015, pp. 287-305). ↩︎
  23. Esse pensamento acerca da natureza do anarquismo combina autores distintos como Malatesta (2001), Schürmann (1986) e, mais recentemente, Newmann (2016). O último, tecendo considerações a partir de Schürmann e Foucault, diz do pósanarquismo como uma prática ético-política que “começa” com o anarquismo ao invés de tê-lo como projeto “final” (ver, em particular, Newmann, 2016, pp. 9-13). ↩︎
  24. Acerca da problemática levantada pelo assim chamado “atendimento em cadeia global” e a forma com que este reestrutura a economia global, ver Yeates (2009), enquanto na forma com que desafia as considerações marxistas tradicionais, ver Federici (2012, pp. 115-125). ↩︎

Apresentação de Laurie Laufer: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismo – 3ª parte

Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.

Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.

BS: Gostaria de falar agora sobre a escrita de casos clínicos. Você fez um seminário sobre isso, e lembro que você chamou Guy Le Gaufey, um analista que questiona o uso de vinhetas clínicas e para quem “a maior parte das vinhetas clínicas, em seu valor ilustrativo, longe de serem pragmáticas e ingênuas, por se apresentarem em língua natural, revelam-se mais frequentemente como hinos, saudações, reverências a professores, autores, autoridades quaisquer. São muitas vezes a expressão de transferências maciças e significativamente pouco questionadas”. Você está de acordo?

LL: Sobre a escrita de casos clínicos, publiquei na revista Psychologie Clinique. Na verdade, evoluí bastante a esse respeito. No meu livro O enigma do luto, eu me refiro a casos clínicos. Hoje, não o faço mais, porque percebi que era sempre insatisfatório. É difícil escrever acerca dos efeitos da transferência. Pode-se dizer que é uma ficção. Freud, inclusive, sempre disse, ao evocar seus casos, que eram como romances. Talvez esteja enganada, mas acredito que pensar na psicanálise de forma epistemológica tenha um alcance clínico muito maior do que contar o que se passa numa cura. Não tenho talento para isso. É bastante difícil fazê-lo. Lacan expõe um caso clínico, um único caso clínico, o de Marguerite. Na verdade, não o faço porque não consigo fazê-lo e porque, quando o faço, não me transmite nada, não sou criativa. Quando escrevo, tento pensar nos textos de Foucault, Butler, Lacan etc. Eu me transformo mais quando quebro a cabeça com os textos deles, tentando verificá-los na minha clínica, do que quando escrevo um texto pretendendo descrever minha clínica, o que me transforma menos, me faz avançar menos, por assim dizer. A exceção é quando trabalho com um romance, uma narrativa, uma ficção, a autoficção de Jane Sautière, por exemplo. O livro Nullipare é uma ficção. Eu me sinto mais à vontade para trabalhar a partir de um romance.

Creio ainda que a escrita de vinhetas clínicas possa ter o efeito de certa violência. Por exemplo, Catherine Millot, que é alguém de quem gosto. A meu ver, ela foi tomada pelo jargão lacaniano de sua época quando lançou um ensaio sobre a transexualidade intitulado Horsexe. Eram os anos entre 1975 e 1985. Para as pessoas de que trata, a leitura desse livro é extremamente agressiva. Lembro-me de um colóquio coorganizado pela Escola Lacaniana e por uma associação de transgêneros que hoje não existe mais, Caritig, creio. Nunca vi um colóquio tão violento. Catherine Millot estava lá, e também Marie-Hélène Bourcier (na época) e Tom Reucher, um psicoterapeuta transgênero. Catherine Millot foi fuzilada, foi insultada a ponto de ter que deixar o anfiteatro. E por quê? Porque seu livro era uma aplicação dogmática da língua lacaniana à transexualidade.

BS: Sim, com certeza. Mas penso que, entre o que fez Catherine Millot e o que pode fazer alguém como Ken Corbett, que é um analista gay, ou Tim Dean, que não é psicanalista, mas escreve sobre e a partir da psicanálise…

LL: O grupo de trabalho que juntas vamos iniciar, com você, Amy Ayouch e outros, terá por objeto o que é o saber localizado para um psicanalista. O que isso quer dizer? Não é simplesmente explicitar de onde falamos. É mais complexo. O que nos faz hoje propor essa questão? De fato, é muito complicado. Atualmente, nos Estados Unidos, vemos um momento um pouco difícil, em que tudo pode ser vivido como uma cultural appropriation, como uma apropriação cultural. Por exemplo, Kathryn Bigelow, que fez Detroit. Não sei se vocês viram esse filme sobre a violência perpetrada contra os negros nos anos 1960, nos Estados Unidos. Ela foi interpelada: como uma mulher branca, burguesa, de classe média alta etc. podia fazer um filme sobre negros pobres, violentados, descendentes de pessoas escravizadas? Nas palavras de Jean Allouch: “Agora, calma! Isso quer dizer o quê? Isso quer dizer que só as tartarugas podem falar das tartarugas?”. É complicado, muito complicado. Um pouco ridículo, caricatural. Parece afirmar que nós essencializamos as posições. Entretanto, isso também põe em cena a questão da legitimidade do discurso. Que discurso é legítimo para dizer algo pelo outro, do outro ou no lugar do outro? Houve um verdadeiro confisco da palavra das ditas minorias. Agora há uma reapropriação da palavra pelas pessoas envolvidas. Evidentemente, poderiam me replicar que um psicanalista não fala no lugar do paciente, a menos que escreva algo fazendo-o falar. Então, é complexa essa questão da escrita de caso. É complexa. Não é simplesmente uma pequena transcrição clínica… É uma edição, você escolhe momentos… Estou falando demais… [Risos.]

LPO: Não, não. Eu diria que você é uma das raras psicanalistas a dizer coisas complexas sem enquadrá-las nos discursos tradicionais, segundo Freud ou segundo Lacan. Penso ser Winnicott quem diz que a psicanálise deve apresentar paradoxos cujo destino deve permanecer insolúvel. É bem oriental…

LL: Isso é um elogio, eu vou tomar como um elogio.

LPO: Sim, exatamente. Isso abre as portas ao invés de fechá-las.

LL: A emancipação para mim é isso; ela é válida tanto no que diz respeito à clínica quanto no que diz respeito à teoria. Tudo o que teoricamente abre as portas me parece importante, na verdade. Tenho uma experiência bastante singular no exercício da psicanálise. Não é simplesmente fazer uma psicanálise, mas exercer a psicanálise. Apesar de tudo, é um ofício divertido. É preciso levá-lo à sério, mas não muito. Ou levar a sério esse ofício, mas sem se levar a sério. Não é uma tarefa fácil.

LPO: Você abre portas. Fiz uma pesquisa sobre os assuntos que você abordou e me deparei com este site: lavieenqueer.wordpress.com. É um blog muito interessante, aprendi um monte de coisas. Existe um debate a respeito de como se dirigir a alguém segundo seu gênero. Aprendi a palavra mégenrer, por exemplo. Há um link para um dicionário de gênero… Como você vê o ensino da psicanálise na França hoje?

LL: É uma questão que ultrapassa a própria disciplina universitária. Hoje é uma questão política. Aliás, o ensino da psicanálise sempre foi uma questão, desde Freud. Como ensinar psicanálise? Como transmiti-la sem ser tomado pelos discursos universitários, dogmáticos, de escola, sem estar em uma mitologia do caso etc.? Apesar da impossibilidade de seu ensino, creio ser importante a psicanálise estar presente na universidade. É uma questão de estratégia, ou de tática, diante das ditas ciências cognitivas, do ensino de terapia cognitivo-comportamental (tcc) etc. Há na França uma verdadeira aversão à psicanálise na universidade. É um bom sinal e é por isso que é preciso ampliar sua presença. Existem ainda verdadeiras questões epistemológicas quanto à afiliação do “campo disciplinar”. Nos Estados Unidos, a psicanálise não é ensinada dentro da psicologia. E na França? Deve-se ensiná-la com as ciências da vida? Como ciência humana? Em suma, Freud e Lacan acertaram: ela é intransmissível e indeterminável [inassignable]. Então, continuemos a ensiná-la.

LPO: Era uma posição geral de Freud: a psicanálise é impossível, mas continua-se a ensiná-la; é impossível, mas continua-se a praticá-la; os charutos seriam o melhor remédio para o tumor na boca… Você acha que propõe novos paradigmas?

LL: Não tenho a pretensão de dizer que proponho. O que tento é pensar a extensão, a miscigenação, o hibridismo (peço emprestado esse termo a meu amigo Amy Ayouch), o apatridismo da psicanálise. Como exercer a psicanálise num mundo globalizado? O que me interessa é o diálogo com Foucault, Deleuze, Laclau, os pensadores da teoria queer e dos estudos de gênero, que impulsionam o questionamento da psicanálise nos pontos que me atraem a atenção. Freud inventou as ferramentas para ultrapassar a psicanálise. É possível uma psicanálise para além do Édipo, como quis Deleuze? Para além da diferença sexual? Pode a psicanálise sobreviver fora do dispositivo discursivo da sexualidade, aquele mesmo que a viu nascer? Essa foi uma tentativa de Lacan, que queria, segundo dizia, “renovar o domínio de Eros”. Há muito ainda para pensar.

A ferramenta do gênero favorece a atualização do saber como um campo que constitui uma verdade partilhada, com normas, usos, lugares-comuns, notadamente sobre a diferença sexual. Quer isso se dê pela noção de indecidibilidade de Derrida, de problema de Butler, de análise discursiva dos dispositivos disciplinares de Foucault, de dilema insolúvel de Joan Scott, de práxis do irrepresentável de Françoise Collin, como repensar todas essas questões? Freud dizia que a psicanálise deveria ser open to revision. Então, como evitar uma psicanálise “fechada”?

LPO: Você poderia nos falar um pouco da articulação entre as questões ligadas à ética e as questões relativas às mulheres, para além de qualquer moralismo? Creio que se tenha confundido muito ética e moralismo em psicanálise. Houve aqui uma lacanagem de posições contrárias aos homossexuais – por exemplo, ao casamento deles.

LL: Sempre pensei que a psicanálise teve uma história paralela à dos movimentos feministas, inclusive com alguns cruzamentos; que a psicanálise foi um método de emancipação. Não sei como articular ética e feminismo. Houve, sim, essa confusão da qual você fala. Prefiro às vezes, no lugar do termo ética, o termo técnica. Talvez a liberação da palavra das mulheres tenha trazido algo à técnica analítica, mas é bastante curioso dizer isso, porque essencializa essa palavra. É algo que lida mais com a questão dos subalternos (tratada por Gayatri Spivak). Houve um confisco da palavra das mulheres e do uso de seu corpo. O que se passa hoje diante desta ou daquela forma de emancipação de tal palavra e de tal uso do corpo? Quais efeitos isso produz nos desejos, na vida em coletividade, na sexualidade, nas políticas de emancipação? É isso o que me interessa hoje na articulação entre psicanálise e emancipação.

LPO: Obrigado, Laurie. Espero que tenhamos a oportunidade de retomar nossa conversa a respeito desse assunto com os leitores brasileiros.

*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.

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Apresentação de Laurie Laufer: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismo – 2ª parte

Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.

Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.

LPO: Você começa com o luto, Laurie. Pode nos falar mais sobre isso? O que isso trouxe a seu pensamento sobre Freud e Lacan? Porque para nós trata-se de fazer o luto. Quando lemos os livros de Judith Butler, há um luto de Freud, há um luto de Lacan ou, ao menos, de certo Freud, de certo Lacan. E, ainda, Lacan é ambíguo. Afinal, ele faz o luto de Freud ou não? Mas partamos de seu trabalho sobre o luto.

LL: Então, meu trabalho sobre o luto está agora muito distante… Fui obrigada a fazer o luto. Entre as determinações necessárias e os encontros contingentes, não sabemos bem como as coisas se passam. Em dado momento da minha vida, precisei trabalhar essa questão, porque descobri coisas na minha análise, e depois por viver pessoalmente certas coisas. Ao terminar a graduação em psicologia, quis estudar isso, sobretudo a questão do desaparecimento na melancolia. Era isso o que me interessava, foi por isso que busquei naquele momento Pierre Fédida, que escrevera muito sobre a ausência. Em seguida, estudei “Luto e melancolia”. Li também o livro Erótica do luto: no tempo da morte seca, de Allouch. Tudo isso começou a se misturar. Fiz então uma tese sobre esse tema, intitulada Psicopatologia do desaparecimento. Minha forma de trabalhar o assunto estava mais ligada ao desaparecimento dos corpos, em especial nas guerras, e ao luto vinculado a um desaparecimento, a uma morte traumática, acidental, da noite para o dia, algo de invasor. Abordei a questão do fantasma, da fantasia… Se bem me lembro, eu me inscrevi no doutorado em 2000. Fédida me havia dito: “Trabalhe com Didi-Huberman”, autor de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby

Warburg. Fédida tinha umas fulgurâncias. Ele me disse que era esse o meu tema de doutorado. Eu não percebia de forma alguma que trabalhava sobre isso, e então Fédida… Você conheceu Fédida?

Aí encontrei Didi-Huberman, Warburg etc. Fédida morreu dois anos depois, no meio da minha tese sobre o desaparecimento e o luto. O que me interessava muito era a questão da melancolia, essa suspensão temporal, esse momento em que a morte não existe mais, basicamente. Algo bastante paradoxal. Foi isso o que me interessou. Depois, em minha tese, eu me aproximei bastante do pensamento de uma filósofa da imagem, Marie-José Mondzain, que se tornou uma amiga. Quando terminei o livro sobre o enigma do luto, pedi a Marie-José Mondzain que o prefaciasse, e ela muito amavelmente aceitou. Convidei-a porque tinha me orientado, naquele momento do meu trabalho, por uma de suas frases, que, se bem me lembro, dizia: “É apenas pela visão que o irrepresentável pode ser simbolizado”. Essa frase um pouco enigmática me fez trabalhar, e eu me disse: “Essa frase é RSI”, ou seja, o irrepresentável da morte, que mostra algo de inominável, de impossível, que mostra o real. É a visão que vai mostrar o imaginário, é a simbolização que vai mostrar algo da ordem… Passei então a trabalhar com Freud, levando em consideração o conflito, a ambivalência, a morte etc., mas também com o que se amarra e se desamarra. Comecei a tricotar com meus próprios fios, de fato, o pensamento lacaniano, o pensamento freudiano. Como eu estava na questão da melancolia, obviamente encontrei também tudo o que aparece da crueldade do supereu… Não sei se respondi, mas…

LPO: Sim, sim. Mas e o enigma do luto, o enigma para você?

LL: É uma expressão freudiana: o enigma do luto. Freud diz que nunca faremos luto algum. Quando morre sua filha Sophie, diz que jamais substituiremos alguém. Esse é o enigma. A dor do luto permanece um enigma. E é Freud quem o diz. Então, se é Freud, ele tem razão. [Risos.] Mas o enigma… é a pura perda. É isso. A perda seca, na expressão de Allouch. E depois o que se passa? A partir das minhas interrogações, comecei a ler o que diz Judith Butler sobre a melancolia do gênero. Evidentemente, isso me interessa. Penso que ela aborda o assunto de forma muito inteligente; discorre sobre a melancolia em relação ao gênero, à heterossexualidade, à homossexualidade, aos objetos. Trabalhei com essas questões.

BS: É interessante pensar que, para Butler, os textos fundadores de Freud são “Luto e melancolia” e O eu e o isso. A obra Problemas de gênero começa por essas duas leituras psicanalíticas. Segundo Butler, o luto é uma certeza e a melancolia uma questão. Diz ela que Freud distingue o luto, reação a uma perda inevitável, da melancolia, quando o sujeito não sabe o que perdeu. Para Butler, não se trata de um luto do gênero, mas de uma melancolia do gênero. De acordo com ela, não sabemos nada, não sabemos como vamos continuar, não sabemos o que vamos fazer. Uma explicação tal qual Butler propõe, ou seja, pensar o “tornar-se” homem ou mulher através de alguma coisa que perdemos e que não poderemos ter, é isso o que interessa a você? Ou isso lhe parece excêntrico, como a vários psicanalistas que consideram que Butler não compreendeu a psicanálise nessa questão?

LL: Veja, quando leio lacanianos afirmando que Butler não compreendeu Lacan, tenho vontade de acrescentar: Butler não compreendeu o Lacan de vocês; compreendeu outro Lacan. Ela inverte uma proposição: é o tabu da homossexualidade que lhe interessa em primeiro lugar, não o do incesto.

BS: Exatamente. Estou de acordo. O que me interessa é que ela diz que o tabu da homossexualidade antecede o tabu do incesto. É curiosa essa construção teórica da interdição de amar alguém do mesmo sexo para a imagem edipiana advir.

LL: Sim, isso significa que a história do tabu do incesto é a questão da construção da família, a qual seria posterior à questão das “identidades sexuais”; significa que o incesto é um dispositivo familiar – logo, é uma construção que vem depois.

BS: Mas me parece que, se acompanhamos seu trabalho, não é necessário chamar isso de melancolia do gênero para compreender o que ela fala. Para você, a construção do gênero é melancólica?

LL: Creio que não. O que é melancólico é a emancipação, acompanhada pela satisfação. Colocamos a psicanálise excessivamente ao lado do trágico. Há pouco, não lembro onde, li esta frase de Lacan: “O sexual ressalta o cômico”.

LPO: Sim, Lacan diz isso. Talvez não o sexual, mas o falo. O pênis é o falo triste, algo assim. No seminário sobre o RSI, Lacan diz: “O falo é outra coisa, é um cômico como todos os cômicos, é um cômico triste. Quando vocês leem Lisístrata, vocês podem pegá-lo pelos dois lados. Rir ou achar amargo. Deve-se dizer também que o falo é o que dá corpo ao imaginário”. É a lição de 11 de março de 1975.

LL: Mas ele o diz várias vezes e de maneiras diferentes. Diz que é preciso abandonar o trágico, uma espécie de herança, digamos, romântica da sexualidade, da psique, do desejo, da falta etc., como se fosse necessária uma autopunição melancólica com relação a isso, algo bastante curioso. Por isso, Lacan é muito mais libertador. Penso que ele sublinha muito mais o cômico, contrariando a imagem que usualmente se tem dele, fixada na questão do desejo – na verdade, um tipo de pregação em torno dos dramas da castração, da falta. A clínica é muito mais inventiva que isso. Por exemplo, estou ministrando um curso sobre identidade social e identificação psíquica. Falamos muito da questão da identidade de gênero, da identidade sexual, da sigla LGBTT. Fiquei sabendo que existem na França 70 possibilidades de identidade de gênero. Pedro Ambra defendeu uma tese, orientada por mim e por Nelson da Silva Júnior, em que comenta coisas bastante interessantes a respeito desse assunto, uma tese muito criativa. Digo aos estudantes: “Escutem, eu aprendo com vocês. É preciso que vocês me ajudem para que eu aprenda”. LGB, na verdade lésbica, gay e bissexual, corresponde às práticas sexuais de fato, à orientação sexual. Todo o resto, nas siglas, é a questão da identidade de gênero: trans, queer, questioning, assexual, poliamor, kink etc.

BS: E tudo isso se mistura, você tem razão. É possível ser lésbica e trans…

LL: Um estudante me enviou um e-mail dizendo: “A senhora nos falou da sigla LGBTQQ. Existe outra, ainda mais longa, que faz referência a outros gêneros: “LGBTQQIP2SAA”. Ela reúne lésbica, gay, bissexual, transgênero, queer, questioning, intersexual, pansexual, dois-espíritos, assexual e aliados. Outro estudante hoje me escreveu: “Não podemos esquecer poliamor e kink”.

BS: Kink é o oposto de vanilla, ou seja, o oposto de práticas sexuais menos perigosas, menos “apimentadas”, mais tradicionais. Mas o que define o que é tradicional é outra questão…

LPO: Kink quer dizer simplesmente sexo um pouco sujo, escatológico, talvez um pouco violento, bizarro.

LL: É muito interessante.

BS: É interessante também na sua incoerência.

LL: Certamente. Acho engraçado, cômico. E então ouço lacanianos falando coisas terríveis sobre isso. Dizem: “É a captação imaginária… É a onipotência, blá-blá-blá… É preciso parar… É preciso limitar… Estão dessimbolizando… E a lei… E patati, patatá, e não sei o que mais”. É um jargão. Acho que Lacan não o teria aceitado. Talvez esteja enganada, mas ouso pensar que Lacan teria visto o lado cômico disso tudo.

LPO: Você escreveu sobre a pornografia, sobre o humor e sobre a prostituição. Quais relações você vê entre pornografia e humor?

LL: Fui a um maravilhoso museu em Genebra, a Fundação Bodmer, onde havia manuscritos de Sade (Os 120 dias de Sodoma), manuscritos antigos e também uma pequena carta de Freud. Foi lá que me dei conta de que os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e O chiste e sua relação com o inconsciente foram escritos ao mesmo tempo, em 1905. Acredito que isso seja importante de um ponto de vista epistemológico. Quanto à pornografia, escrevi o prefácio para um livro de Eric Bidaud sobre pornografia e psicanálise. A respeito da prostituição, eu a abordei num artigo para uma exposição no Museu d’Orsay há dois anos. Alguns fenômenos, como a prostituição e a pornografia, são debatidos de maneira muito dura, violenta, no âmbito do feminismo. Creio ser muito difícil pensá-los. Assim, um pouco de humor… Rir sempre ajuda. O humor é como o amor. O que me interessa no humor é a possibilidade de deslocar o sujeito. Eu utilizo o humor na minha clínica, interpretações que podem parecer divertidas. Evidentemente, isso não é calculado. Com uma gargalhada no momento certo, o que é trágico pode, sem dúvida, se deslocar. Penso que Lacan foi uma pessoa engraçada. E Freud também. Seria preciso retomar as questões relativas ao humor e ao riso do ponto de vista da psicanálise. Porque Freud escreveu dois textos ao mesmo tempo. Então, ele tricotou um com o outro.

*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.

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Apresentação de Laurie Laufer: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismo – 1ª parte

Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.

Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.

LPO: Solicitaram-me, do Brasil, que eu a apresentasse em duas palavras. Respondi que você era professora e feminista, entre Foucault e Lacan. Mas depois, lendo sua bibliografia, notei que Lacan não estava tão presente assim em sua obra. Engano meu? Você trata muito mais da morte e do corpo do que de Lacan, e não parece se apoiar no jargão lacaniano. Como você vê tudo isso.

LL: Psicanalista e feminista me convêm muito bem. Meu percurso é o seguinte: comecei minha tese com Fédida, o qual faleceu pouco depois. A tese era sobre o luto e o desaparecimento. Abordei os discursos normativos em torno do luto; também, a questão das normas, das injunções normativas. Ao preparar minha tese de habilitação para orientar pesquisas, com Alain Vanier, busquei analisar os efeitos dos discursos normativos sobre a sexualidade. Evidentemente, encontrei Foucault. Eu procurava renovar a vocação crítica
da posição analítica. O que isso quer dizer? De certa forma, Foucault e Lacan sempre desconstruíram as normas de sua época. Em 1973, Lacan declarou à [rádio] France Culture: “Existem normas sociais em razão da ausência de qualquer norma sexual, eis o que diz Freud”. É isso o que me interessa. Nossa prática se baseia na transferência. Trabalhamos no caso a caso, mas inseridos em nossa época. Acredito que o risco para a prática analítica, se não nos interrogarmos sobre tudo isso, é transformar a psicanálise num discurso comum, ordinário; é reproduzir normas. Para mim, hoje, a vocação crítica da psicanálise implica o feminismo – um feminismo que trabalhe a questão da emancipação das mulheres por meio da psicanálise. O que também me interessa é ver como o movimento de liberação vai se aproximar dos direitos lgbtqi+ a partir dos direitos civis. O movimento de liberação das mulheres na França, desde os anos 1960 e 1970, se inspirou na psicanálise. Houve a criação, por Antoinette Fouque, da psicanálise política [psychépo], ou seja, da ideia de dar visibilidade à questão política no interior da psicanálise. Essa questão era então relativa ao corpo e à sexualidade das mulheres. O feminismo francês teve algumas fases. A primeira dizia respeito aos direitos civis, à igualdade cívica. Era preciso que as mulheres pudessem votar. A segunda fase, por sua vez, referia-se à liberdade do corpo, à procriação, ao aborto, com efeitos consideráveis sobre a sexualidade, por assim dizer. Isso me interessou bastante. A noção de liberdade é um pouco estranha para o psicanalista, e no entanto ela se apresenta através da noção de norma sexual. Não sei se estou sendo clara. Frequentei bastante a Escola Lacaniana de Psicanálise, a escola fundada por Jean Allouch, que é meu amigo. Tenho em relação a Lacan uma grande proximidade transferencial. Mas sempre fui um pouco resistente ao “estilo lacaniano”. Você compreende? Como minha transferência se deu com uma analista lacaniana, o estilo lacaniano é um pouco bizarro para mim. Fui formada num divã lacaniano, por assim dizer. Minha transferência me transformou nesse ponto. A transferência transforma.

BS: Tenho a impressão de que, apesar da extensão de seu trabalho e da importância da questão de gênero para você, seu pensamento é construído com referências lacanianas.

LL: Certamente. Eu me apoio muito no texto lacaniano, mas ao mesmo tempo sou muito crítica em relação a ele, assim como em relação a Freud. Meu pensamento é próximo ao de Lacan: o rsi, a estrutura, o mais além do Édipo, os complexos familiares, quando a família aparece como uma construção social. Meu pensamento se baseia na questão do amor em Lacan. Por outro lado, tenho muita dificuldade com tudo o que se apresenta como discurso dogmático, seja nos freudianos, seja nos lacanianos – com tudo o que se opõe à emancipação e impede de agir. O poder de emancipação me permite não ser completamente fagocitada pelo dogmatismo freudiano, kleiniano, lacaniano etc. É complicado não ousar criticar os mestres. Isso, diriam alguns, é a posição histérica das feministas. Entendo essa crítica, mas ela me faz rir. É uma crítica sem exterioridade em relação a certo discurso analítico. É complicado, não?

LPO: Sim, por certo. Você frequentou a Escola Lacaniana de Psicanálise, mas não publicou com eles.

LL: Eu publiquei, na revista deles, L’Unebévue, um artigo sobre Sidonie Csillag, a “jovem homossexual” de Freud. Publiquei também, em Chérir la Diversité Sexuelle, caderno da L’Unebévue, um texto sobre os trabalhos de Gayle Rubin, antropóloga estadunidense da sexualidade. O livro que estou escrevendo trata precisamente da questão da emancipação. Considero que os teóricos queer, gender, fizeram uma leitura muito interessante da psicanálise freudiana e lacaniana. É importante que os psicanalistas se abram aos discursos exteriores. Do contrário, fecham-se em algo endógeno. Freud sempre abriu a psicanálise para o exterior, para a literatura, para Leonardo da Vinci etc. Hoje, constatamos os perigos do enrijecimento e do fechamento em si dos discursos psicanalíticos.

BS: Quando meus alunosleem seu artigo sobre a “psicanálise foucaultiana”, sempre perguntam: “Para que uma psicanálise foucaultiana?”. Respondo que seu trabalho é uma crítica a um discurso psicanalítico fechado, rígido, e que você procura algo ligado à confrontação, ao limite, sobretudo no texto “É possível uma psicanálise foucaultiana?”.

LL: Trata-se de uma questão levantada por Jean Allouch.

LPO: Sim, é Allouch quem traz esta noção: a psicanálise levará em conta a contribuição de Foucault ou cessará de existir, pois não terá nenhuma nova contribuição. Isso interessa porque é uma perspectiva que aparece em diferentes lugares do mundo, sem coordenação institucional. Existe uma convergência que leva a Foucault e a Deleuze.

BS: Para você, Laurie, confrontar os limites da psicanálise com outras teorias, como as relativas ao feminismo e as oriundas de Foucault, é uma maneira de criticar a excessiva normatização da psicanálise, especialmente no que diz respeito ao sexo?

LL: Parti da proposição de Jean Allouch, “Ou a psicanálise será foucaultiana, ou não será mais”, feita em 1998 e retomada em 2015 em nosso colóquio sobre Foucault e a psicanálise. Por que acredito ser importante interessar-se por Foucault? Porque ele foi, a meu ver, um dos primeiros epistemólogos da psicanálise, o primeiro genealogista da psicanálise a provocá-la, a fazê-la avançar. Em História da loucura, Foucault lembra que Freud rompeu com a teoria da degenerescência e transformou a abordagem da loucura, o que Lacan, aliás, retoma. O encontro entre Foucault e Lacan é um pouco estranho. Lacan assistiu a vários seminários de Foucault – por exemplo, à conferência “O que é um autor?”. Quando Foucault afirma que Freud e Marx são os fundadores da discursividade, imediatamente Lacan elabora sua teoria do discurso. Lacan absorvia tudo, o que por si só é genial. Precisaríamos de uma epistemologia lacaniana. Seria de fato interessante localizar todas asreferências a outros autores em Lacan, o qual no entanto não cita, apenas raramente indica suas fontes. Ainda assim, Lacan foi alguém com uma força teórica genial, incrivelmente criativo. Outra coisa importante que Foucault diz acerca da psicanálise relaciona-se à questão da hermenêutica do sentido. Não é apenas Allouch que retoma o termo erotologia. Lacan já o havia feito no seminário sobre a angústia: “Não falo de psicologia, mas de erotologia”.

LPO: Mais precisamente, Lacan se refere a “um discurso desta realidade irreal que merece o nome erotologia” em 1962, quando desenvolve o grafo do desejo. A realidade irreal é um fio condutor que aparece ao longo do percurso dele e que lhe vem de Melanie Klein. É ela quem fala da realidade irreal do fantasma.

LL: A erotologia não é a scientia sexualis, ou seja, não é uma nosografia baseada nas sexualidades. Lacan mostra que as modalidades de transformação do sujeito passam pela questão do amor; ele se refere à invenção freudiana, ao amor de transferência. Lacan dedica um seminário inteiro a essa questão, mas trata disso em vários outros. O livro de Allouch L’amour Lacan é muito interessante. A psicanálise é uma forma de pensar o amor. Não a sexualidade, mas o amor. Não é a mesma coisa. Não? [Risos.] Não sei se respondi à sua questão.

BS: Ao mesmo tempo, nesse texto sobre a psicanálise foucaultiana, você volta à afirmação de Foucault: “Não penso que Lacan fosse revolucionário. Jacques Lacan queria ser psicanalista”. Ser psicanalista é por definição ser revolucionário?

LL: Eu me lembro bem dessa afirmação. Foucault diz: “Não penso que Lacan teria gostado que disséssemos que é um revolucionário. Ele queria apenas ser psicanalista, o que já é muito”. Termina observando que Lacan queria fazer da psicanálise uma teoria do sujeito. Lembro ainda que Foucault comenta: “Sou um experimentador de mim mesmo”. É muito interessante. Lacan foi um experimentador da psicanálise e da teoria analítica, e ele sempre a transformava. Talvez seja um pouco excêntrico dizer isso, mas em todo caso, quando leio Lacan, não o levo sempre a sério. Porque ele mesmo, creio, tinha uma relação bastante irônica com seu próprio saber, um pouco como Sócrates… Às vezes, alguns lacanianos levam a sério demais as palavras de Lacan, como se ele fosse um profeta. Na verdade, acho isso complicado. Jean Allouch, por exemplo, com quem converso frequentemente, tem uma relação com o corpo, a voz e o olhar de Lacan, não só com seus textos. Não é a mesma coisa. Allouch foi analisado por Lacan. Então, quando escreve sobre Lacan, não tem a mesma relação transferencial com os textos de Lacan do que aqueles que o leem sem tê-lo conhecido. Eu abro um livro de Lacan e o leio. É diferente relacionar-se com um texto sem pensar no corpo a corpo com ele, sem poder rir dele. Allouch pode rir.

BS: Mas você acha que rir ajuda a compreender melhor o texto?

LL: Ajuda a compreender de maneira diferente. Em 1936, Lacan enviou seu artigo sobre o estádio do espelho a Freud. O que ele disse a Freud foi: “Eu gostaria de conhecê-lo”. Freud nem sequer respondeu; não aceitou o pedido de Lacan de encontrá-lo. Isso foi mais importante para ele do que se Freud o tivesse recebido. Em consequência, Lacan passou a vida “retornando a Freud”, insistindo nesse encontro que não aconteceu. Ele se autoproclamou herdeiro de Freud. Existem muitos analistas que se autoproclamam herdeiros de Lacan, mas pelo motivo contrário: acreditam tê-lo encontrado porque frequentaram seu divã, porque foram de sua família, porque foram não sei o que mais. Percebe?

BS: Sim. Nessa primeira geração, os analistasiam ao seminário de Lacan, mas não havia textos a ler. Então, escutavam Lacan e liam Freud. A segunda geração, por sua vez, lia Lacan, mas não mais Freud.

LL: Ou os jovens estudantes de hoje, que leem Lacan ou Freud a partir dos teóricos de gênero. É você quem dizia isso, o que acho muito interessante. Por exemplo, em sociologia, aqui na França, ou mesmo em psicologia, os jovens estudantes começam por Problemas de gênero, de Judith Butler. Com base nela, vão ler Lacan ou Freud. Assim, Lacan ou Freud tornam-se capítulos do livro de Butler. Não se pode dizer que isso não tenha sentido. De fato, nossa epistemologia se complexifica.

BS: E mais: é diferente ler Lacan no original ou traduzido. Em geral, na tradução, há apenas uma versão disponível de Lacan, enquanto na França existem três ou quatro versões, concorrentes, que podemos comparar. A tradução cria fenômenos de sectarismo, me parece.

*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.


Anarcafeminismo: Chiara Bottici contra a dominação

A luta contra a opressão de todas as mulheres é,mais do que nunca, um imperativo necessário e urgente, mas tem que se sustentar em uma libertação das mulheres articulada de tal forma que a emancipação da singularidade não passe a crer mais em hierarquias (do homem em relação à mulher, de todos os seres humanos em relação aos animais, plantas, inclusive da materia inanimada). Essa é a inovadora e articulada proposta da filósofa italiana Chiara Bottici em Anarcafeminismo, uma abordagem especificamente anarcafeminista adaptada aos desafios atuais.

Anarcafeminismo oferece um extenso marco teórico  a partir do qual nasce o Manifesto Anarcafeminista.

Anarcafeminismo parte de uma visão utópica de uma sociedade onde as pessoas desejam e lutam pela sua liberdade sem criar ainda mais hierarquias para outras pessoas e para seres vivos não humanos. As utopias são realistas porque nos dizem onde (não) estamos. Uma utopia anarcafeminista nos diz que uma sociedade em que todas e cada uma das mulheres são livres ainda está distante, mas também nos mostra que somos a maioria avançando nessa direção. Algumas falam sobre feminismo interseccional, outras ecofeminismo, outras chamam de movimento queer, ou feminismo sem fronteiras: muda o nome e mudam as prioridades politicas, mas a mensagem fundamental é a mesma – o feminismo não significa a libertação de algumas mulheres privilegiadas: significa a libertação de todas nós.

“O feminismo por si só não é suficiente, porque o que vem se demonstrando é que pode se tornar compatível com estruturas de dominação. Por isso, é imprescindível uma filosofia anarcafeminista.”

Chiara Bottici.

A filosofia anarcafeminista permite combinar duas evidência: que há algo específico na opressão das mulheres e das feministas em geral, e que para enfrentar essas opressões precisamos falar delas em todas as suas formas. Para ela, na primeira parte desse extraordinário livro, Bottici estabelece un dialogo com a literatura feminista negra em relação à interseccionalidade e analisa sua relação com teorias e ideias anarcafeministas: delineia um tipo de anarquismo “mais além do eurocentrismo e do sexismo”. Finalmente situa o anarcafemiqnismo entre o feminismo e a teoria queer e trans. 

O Intermezzo In nomine matris abre a segunda parte do livro, em que a procura desenvolver um conceito amplo de feminilidade e assim invocar uma filosofia monista da transindividualidade como a estrutura filosófica mais adequada para fazê-lo. Particularmente interessante é o capitulo em que explora como a perspectiva filosófica resultante das leituras feministas do célebre filosofo marrano do século XVII, Baruch Spinoza, podem visibilizar a natureza transindividual de todos os corpos e da filosofia monista – uma filosofia que não opõe corpos e mentes, reconhecendo a ambos como expressões sob diferentes atributos de uma mesma substância singular e infinita.

Essa perspectiva proporciona por sua vez uma base para sustentar que não se pode separar estritamente o sujeito do objeto de conhecimento, e por isso uma filosofia da transindividualidade é também uma filosofia transindividual, em que o discurso filosófico reivindica sua própria individualidade (o que explica por que Bottici começa a escrever com o pronome “eu” e logo passa para “nós” durante o processo de escrita). Seguindo essa linha, a autora aborda a questão que nos permite falar de uma “mulher” específica fora desse processo transindividual em curso, e com a ajuda de teorias filosóficas e práticas artísticas, responderemos que é através de um processo de contar histórias que conseguiremos.

O Intermezzo Itinerarium inaugura a terceira parte, na qual Bottici aprofunda o processo de ontogênese dos corpos generificados e sexuados considerando os níveis supra, inter e infraindividuais e focando nos interstícios que atualmente temos ao nosso alcance. Se o nível supra-individual leva à exploração da geopolítica global da ontogênese e à reivindicação de uma forma de feminismo “decolonial” e “desimperial”, o exame das interações entre corpos de gênero leva, em última análise, a uma análise do modo capitalista de (re) produção, onde o prefixo “re” entre parênteses pretende indicar que o capitalismo não produz se os trabalhadores não se reproduzem, apesar de precisamente colocar “reprodução” entre parênteses ter sido uma das ferramentas utilizadas para criar corpos com gênero.

Por fim, Bottici concentra-se nas infraações e em como os seres generificados nascem da capacidade (re)produtiva de animais, plantas e até mesmo de matéria inanimada, argumentando que uma ecologia transindividual não pode deixar de questionar a hierarquia do homem (acima de tudo). ) > mulheres ( sobre) > animais (sobre) > plantas (sobre) > matéria inanimada. Em suma, uma ecologia transindividual não pode deixar de ser uma ecologia de emancipação da singularidade.

“Enquanto outras feministas de esquerda cederam à explicação da opressão das mulheres com base num único fator, ou prenderam a libertação das mulheres num quadro estreito de compreensão da “feminilidade”, as anarquistas sempre deixaram muito claro que, para combater o patriarcado temos que combater as múltiplas formas e fatores de opressão – econômicos, culturais, raciais, políticos, sexuais, etc. — que comparecem mantendo-os; poderíamos dizer, àquelas que nos levam a privilegiar certas noções de feminilidade em detrimento de outras.”

Chiara Bottici

Consequentemente, o feminismo não é um movimento preocupado apenas com questões que tangem às mulheres, mas com a forma crítica de manter toda ordem social que, na situação crítica atual, é inseparável do “sistema de gênero moderno/colonial”, que reduz os papéis de gênero a um dimorfismo biológico e patologiza aqueles que se desviam dele. As normas de gênero e as dicotomias binárias de “homens” x “mulheres” são opressivas para qualquer pessoa, não apenas para as pessoas designadas como mulheres à nascença, embora os homens possam de fato beneficiar-se de um sistema de gênero binário onde eles têm muito mais possibilidades do que as mulheres de ocupar posições predominantes.

A Editora Criação Humana publicará, ainda o primeiro semestre de 2024, a tradução do livro “Anarcafeminismo”, da filósofa italiana Chiara Bottici.

‘Estão tentando nos convencer de que não precisam mais do trabalho humano. É uma arapuca’, diz escritora italiana crítica da IA

Italiana Silvia Federici, de 81 anos, que veio ao Brasil lançar dois livros, é uma das intelectuais feministas de maior projeção em atividade.

Por Talita Duvanel.

No Brasil para lançar dois livros (“Além da pele”, editora Elefante e “Quem deve a quem”, em parceria com editora Elefante e Criação Humana), a italiana Silvia Federici, de 81 anos, uma das intelectuais feministas de maior projeção em atividade, aproveitou para adiantar as comemorações dos 20 anos da primeira edição de “Calibã e a bruxa” (2004). Numa de suas obras mais importantes, ela— que mora nos Estados Unidos desde 1967 e, desde então, batalha para que haja pagamento pelo trabalho não remunerado de mulheres em seu próprio lar — mostra como, na transição do feudalismo para o capitalismo, foi crucial para o sucesso do novo sistema confiar às mulheres o papel único e exclusivo de reprodutoras da força de trabalho. Aquelas que conseguiam controlar a própria natalidade e tinham posições de poder foram tachadas de bruxas e dizimadas. Assim, ela relata, estabeleceram-se as bases da divisão sexual do trabalho — com as mulheres cuidadoras maternais — que permeia o modo de vida predominante nas sociedades ocidentais.

Na entrevista a seguir, realizada em Paraty durante sua passagem pela Flipei e antes de embarcar para São Paulo, a autora, que interrompe a conversa para ajudar o marido (ele se movimenta com dificuldade), fala sobre a sobrecarga da economia do cuidado, analisa uma volta da “caça às bruxas” e conta como seria sua redação no Enem 2023 sobre o tema “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher”.

O mundo está melhor ou pior para as mulheres, de uma forma geral, desde que a senhora escreveu “Calibã e a bruxa”?

Estamos vendo a situação piorar. Pessoas estão sendo expulsas de suas terras, há uma deterioração das condições de produção, cortes nos orçamentos, uma crescente militarização da vida. E às mulheres cabe suportar o fardo do trabalho reprodutivo mais e mais com menos recursos. Agora ainda há uma nova caça às bruxas em todo o mundo, especialmente na África, Índia, América Latina e no Brasil. Por exemplo, no dia 18 de setembro, Sebastiana, líder dos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, foi queimada viva (Nhandesy Sebastiana era líder religiosa dos guarani-kaiowá, em Aral Moreira, e teve o corpo carbonizado juntamente com o do marido, Nhanderu Rufino). Ela comandava uma luta contra a expropriação de terras comunais para o cultivo de soja. Esse foi mais um caso de mulher acusada de ser bruxa pelo fundamentalismo cristão. No Sul Global, fica muito claro que as motivações econômica e política e a briga pela terra dão um empurrão contra a luta das mulheres por autonomia.

Como a inteligência artificial e as redes sociais têm transformado a exploração dos corpos e da força de trabalho feminina?

Estão tentando nos convencer de que não precisam mais do trabalho humano com a IA. Isso é uma arapuca. As pessoas trabalham mais do que nunca hoje. Esse é um primeiro aspecto. O segundo é a completa tecnologização da vida. Existe essa ideia de que podemos ter máquinas fazendo trabalhos de cuidado. É o contra-ataque à luta que as mulheres travaram. Esta tem sido a história do capitalismo. Quando os trabalhadores combatem uma forma específica de exploração, o capitalismo se precipita em pensar numa máquina. Há uma explosão de estudos sobre simpáticos robôs que andam, falam e podem cuidar de idosos e crianças. Isso é o contrário do pregamos: precisamos falar sobre formas coletivas de cuidado. Precisamos superar o isolamento em que mulheres foram obrigadas a cuidar da reprodução, dos idosos, das crianças, dos enfermos. Mas eles vão nos dar robôs legais…

Com voz feminina…

E com voz feminina! Precisamos de uma crítica feminista da inteligência artificial. Uma crítica que tenha lados múltiplos, que olhe para a destruição ecológica, para a ilusão de liberdade e em termos de alienação das relações humanas.

No Brasil, temos o Enem, uma prova nacional para alunos do Ensino Médio entrarem na universidade, e todo ano há uma redação, com um tema…

Ah, sim, este ano foi sobre trabalho doméstico! Eu soube. Muito interessante. Fiquei bem feliz.

Se conversasse com estudantes agora, o que diria ser mais importante de estar nesta redação?

Meu argumento principal seria de que, quando olhamos para a organização do trabalho doméstico no capitalismo, temos uma janela para entender a lógica que faz esse sistema prosperar. O trabalho doméstico é considerado uma atividade biológica, mas é fundamental porque produz mão de obra. É o que faz a roda girar. Não produzimos carros ou ferramentas, produzimos seres humanos. O movimento feminista redefiniu (o olhar) para este trabalho. A questão é: por que é tão desvalorizado? Ele é tão importante, tão crucial que, se tivessem que compensar as mulheres, não teriam conseguido acumular a grande riqueza que acumularam. Isso é o início do entendimento de que vivemos numa sociedade baseada na exploração e na desvalorização da nossa vida. E isso devia ter feito parte da redação: tem havido uma revolução do conceito de trabalho doméstico. Mais e mais pessoas têm tido consciência de que não é só limpeza e cozinha. É um trabalho emocional, sexual, intelectual, de conciliação de todas as diferentes necessidades das pessoas: do homem, da crianças, dos outros parentes. São as mulheres que mantêm a comunidade unida.

A senhora falou de terra, Sul Global… Soa como um “neo neocolonialismo”.

Há um movimento progressivo em direção a uma recolonização. Vemos um novo colonialismo muito violento. Alguém escreveu, e penso que muito bem, que a Palestina hoje é o mundo. No sentido de que, numa visão macro, o capitalismo está se expandindo e expulsando as pessoas de suas terras e empurrando-as para campos de refugiados ou para a imigração. Por causa desta tomada de posse de terras — particularmente por empresas extrativistas e pelo agronegócio — e também por uma constante erosão do investimento nas pessoas, são as mulheres que pagam o preço mais elevado. Elas precisam compensar com trabalho e sacrifícios extras pelos recursos que estão diminuindo.

Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), evento de que a senhora veio participar, mesas de sucesso falaram sobre o tema do encarceramento em massa de pessoas negras, principalmente mulheres. Num país como o Brasil, como isso contribui para a manutenção do capitalismo?

Este é um sistema de terror de Estado. E ele é utilizado para que a sociedade mantenha uma força intensiva de exploração, com desigualdade produzindo cada vez mais desigualdade. O capitalismo acumula dinheiro, injustiças e hierarquias. Está muito claro que a escravidão não acabou. Temos novas formatos, que vão desde modelos financeiros e ao encarceramento em massa. Vejo o Brasil como um dos países do mundo com o maior nível de hierarquias racializadas. Então, faz sentido que os negros sejam intimidados, afinal essas hierarquias são fundamentais para a continuação do sistema, dando aos brancos o poder de oprimir os negros, aos homens o poder de oprimir mulheres. Este é realmente o problema de tantos grupos e organizações políticas. Como podemos desfazer isso? Como criamos demandas organizacionais, movimentos e lutas que sejam capazes de subverter essas divisões hierárquicas?