Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.
Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.
LPO: Solicitaram-me, do Brasil, que eu a apresentasse em duas palavras. Respondi que você era professora e feminista, entre Foucault e Lacan. Mas depois, lendo sua bibliografia, notei que Lacan não estava tão presente assim em sua obra. Engano meu? Você trata muito mais da morte e do corpo do que de Lacan, e não parece se apoiar no jargão lacaniano. Como você vê tudo isso.
LL: Psicanalista e feminista me convêm muito bem. Meu percurso é o seguinte: comecei minha tese com Fédida, o qual faleceu pouco depois. A tese era sobre o luto e o desaparecimento. Abordei os discursos normativos em torno do luto; também, a questão das normas, das injunções normativas. Ao preparar minha tese de habilitação para orientar pesquisas, com Alain Vanier, busquei analisar os efeitos dos discursos normativos sobre a sexualidade. Evidentemente, encontrei Foucault. Eu procurava renovar a vocação crítica da posição analítica. O que isso quer dizer? De certa forma, Foucault e Lacan sempre desconstruíram as normas de sua época. Em 1973, Lacan declarou à [rádio] France Culture: “Existem normas sociais em razão da ausência de qualquer norma sexual, eis o que diz Freud”. É isso o que me interessa. Nossa prática se baseia na transferência. Trabalhamos no caso a caso, mas inseridos em nossa época. Acredito que o risco para a prática analítica, se não nos interrogarmos sobre tudo isso, é transformar a psicanálise num discurso comum, ordinário; é reproduzir normas. Para mim, hoje, a vocação crítica da psicanálise implica o feminismo – um feminismo que trabalhe a questão da emancipação das mulheres por meio da psicanálise. O que também me interessa é ver como o movimento de liberação vai se aproximar dos direitos lgbtqi+ a partir dos direitos civis. O movimento de liberação das mulheres na França, desde os anos 1960 e 1970, se inspirou na psicanálise. Houve a criação, por Antoinette Fouque, da psicanálise política [psychépo], ou seja, da ideia de dar visibilidade à questão política no interior da psicanálise. Essa questão era então relativa ao corpo e à sexualidade das mulheres. O feminismo francês teve algumas fases. A primeira dizia respeito aos direitos civis, à igualdade cívica. Era preciso que as mulheres pudessem votar. A segunda fase, por sua vez, referia-se à liberdade do corpo, à procriação, ao aborto, com efeitos consideráveis sobre a sexualidade, por assim dizer. Isso me interessou bastante. A noção de liberdade é um pouco estranha para o psicanalista, e no entanto ela se apresenta através da noção de norma sexual. Não sei se estou sendo clara. Frequentei bastante a Escola Lacaniana de Psicanálise, a escola fundada por Jean Allouch, que é meu amigo. Tenho em relação a Lacan uma grande proximidade transferencial. Mas sempre fui um pouco resistente ao “estilo lacaniano”. Você compreende? Como minha transferência se deu com uma analista lacaniana, o estilo lacaniano é um pouco bizarro para mim. Fui formada num divã lacaniano, por assim dizer. Minha transferência me transformou nesse ponto. A transferência transforma.
BS: Tenho a impressão de que, apesar da extensão de seu trabalho e da importância da questão de gênero para você, seu pensamento é construído com referências lacanianas.
LL: Certamente. Eu me apoio muito no texto lacaniano, mas ao mesmo tempo sou muito crítica em relação a ele, assim como em relação a Freud. Meu pensamento é próximo ao de Lacan: o rsi, a estrutura, o mais além do Édipo, os complexos familiares, quando a família aparece como uma construção social. Meu pensamento se baseia na questão do amor em Lacan. Por outro lado, tenho muita dificuldade com tudo o que se apresenta como discurso dogmático, seja nos freudianos, seja nos lacanianos – com tudo o que se opõe à emancipação e impede de agir. O poder de emancipação me permite não ser completamente fagocitada pelo dogmatismo freudiano, kleiniano, lacaniano etc. É complicado não ousar criticar os mestres. Isso, diriam alguns, é a posição histérica das feministas. Entendo essa crítica, mas ela me faz rir. É uma crítica sem exterioridade em relação a certo discurso analítico. É complicado, não?
LPO: Sim, por certo. Você frequentou a Escola Lacaniana de Psicanálise, mas não publicou com eles.
LL: Eu publiquei, na revista deles, L’Unebévue, um artigo sobre Sidonie Csillag, a “jovem homossexual” de Freud. Publiquei também, em Chérir la Diversité Sexuelle, caderno da L’Unebévue, um texto sobre os trabalhos de Gayle Rubin, antropóloga estadunidense da sexualidade. O livro que estou escrevendo trata precisamente da questão da emancipação. Considero que os teóricos queer, gender, fizeram uma leitura muito interessante da psicanálise freudiana e lacaniana. É importante que os psicanalistas se abram aos discursos exteriores. Do contrário, fecham-se em algo endógeno. Freud sempre abriu a psicanálise para o exterior, para a literatura, para Leonardo da Vinci etc. Hoje, constatamos os perigos do enrijecimento e do fechamento em si dos discursos psicanalíticos.
BS: Quando meus alunosleem seu artigo sobre a “psicanálise foucaultiana”, sempre perguntam: “Para que uma psicanálise foucaultiana?”. Respondo que seu trabalho é uma crítica a um discurso psicanalítico fechado, rígido, e que você procura algo ligado à confrontação, ao limite, sobretudo no texto “É possível uma psicanálise foucaultiana?”.
LL: Trata-se de uma questão levantada por Jean Allouch.
LPO: Sim, é Allouch quem traz esta noção: a psicanálise levará em conta a contribuição de Foucault ou cessará de existir, pois não terá nenhuma nova contribuição. Isso interessa porque é uma perspectiva que aparece em diferentes lugares do mundo, sem coordenação institucional. Existe uma convergência que leva a Foucault e a Deleuze.
BS: Para você, Laurie, confrontar os limites da psicanálise com outras teorias, como as relativas ao feminismo e as oriundas de Foucault, é uma maneira de criticar a excessiva normatização da psicanálise, especialmente no que diz respeito ao sexo?
LL: Parti da proposição de Jean Allouch, “Ou a psicanálise será foucaultiana, ou não será mais”, feita em 1998 e retomada em 2015 em nosso colóquio sobre Foucault e a psicanálise. Por que acredito ser importante interessar-se por Foucault? Porque ele foi, a meu ver, um dos primeiros epistemólogos da psicanálise, o primeiro genealogista da psicanálise a provocá-la, a fazê-la avançar. Em História da loucura, Foucault lembra que Freud rompeu com a teoria da degenerescência e transformou a abordagem da loucura, o que Lacan, aliás, retoma. O encontro entre Foucault e Lacan é um pouco estranho. Lacan assistiu a vários seminários de Foucault – por exemplo, à conferência “O que é um autor?”. Quando Foucault afirma que Freud e Marx são os fundadores da discursividade, imediatamente Lacan elabora sua teoria do discurso. Lacan absorvia tudo, o que por si só é genial. Precisaríamos de uma epistemologia lacaniana. Seria de fato interessante localizar todas asreferências a outros autores em Lacan, o qual no entanto não cita, apenas raramente indica suas fontes. Ainda assim, Lacan foi alguém com uma força teórica genial, incrivelmente criativo. Outra coisa importante que Foucault diz acerca da psicanálise relaciona-se à questão da hermenêutica do sentido. Não é apenas Allouch que retoma o termo erotologia. Lacan já o havia feito no seminário sobre a angústia: “Não falo de psicologia, mas de erotologia”.
LPO: Mais precisamente, Lacan se refere a “um discurso desta realidade irreal que merece o nome erotologia” em 1962, quando desenvolve o grafo do desejo. A realidade irreal é um fio condutor que aparece ao longo do percurso dele e que lhe vem de Melanie Klein. É ela quem fala da realidade irreal do fantasma.
LL: A erotologia não é a scientia sexualis, ou seja, não é uma nosografia baseada nas sexualidades. Lacan mostra que as modalidades de transformação do sujeito passam pela questão do amor; ele se refere à invenção freudiana, ao amor de transferência. Lacan dedica um seminário inteiro a essa questão, mas trata disso em vários outros. O livro de Allouch L’amour Lacan é muito interessante. A psicanálise é uma forma de pensar o amor. Não a sexualidade, mas o amor. Não é a mesma coisa. Não? [Risos.] Não sei se respondi à sua questão.
BS: Ao mesmo tempo, nesse texto sobre a psicanálise foucaultiana, você volta à afirmação de Foucault: “Não penso que Lacan fosse revolucionário. Jacques Lacan queria ser psicanalista”. Ser psicanalista é por definição ser revolucionário?
LL: Eu me lembro bem dessa afirmação. Foucault diz: “Não penso que Lacan teria gostado que disséssemos que é um revolucionário. Ele queria apenas ser psicanalista, o que já é muito”. Termina observando que Lacan queria fazer da psicanálise uma teoria do sujeito. Lembro ainda que Foucault comenta: “Sou um experimentador de mim mesmo”. É muito interessante. Lacan foi um experimentador da psicanálise e da teoria analítica, e ele sempre a transformava. Talvez seja um pouco excêntrico dizer isso, mas em todo caso, quando leio Lacan, não o levo sempre a sério. Porque ele mesmo, creio, tinha uma relação bastante irônica com seu próprio saber, um pouco como Sócrates… Às vezes, alguns lacanianos levam a sério demais as palavras de Lacan, como se ele fosse um profeta. Na verdade, acho isso complicado. Jean Allouch, por exemplo, com quem converso frequentemente, tem uma relação com o corpo, a voz e o olhar de Lacan, não só com seus textos. Não é a mesma coisa. Allouch foi analisado por Lacan. Então, quando escreve sobre Lacan, não tem a mesma relação transferencial com os textos de Lacan do que aqueles que o leem sem tê-lo conhecido. Eu abro um livro de Lacan e o leio. É diferente relacionar-se com um texto sem pensar no corpo a corpo com ele, sem poder rir dele. Allouch pode rir.
BS: Mas você acha que rir ajuda a compreender melhor o texto?
LL: Ajuda a compreender de maneira diferente. Em 1936, Lacan enviou seu artigo sobre o estádio do espelho a Freud. O que ele disse a Freud foi: “Eu gostaria de conhecê-lo”. Freud nem sequer respondeu; não aceitou o pedido de Lacan de encontrá-lo. Isso foi mais importante para ele do que se Freud o tivesse recebido. Em consequência, Lacan passou a vida “retornando a Freud”, insistindo nesse encontro que não aconteceu. Ele se autoproclamou herdeiro de Freud. Existem muitos analistas que se autoproclamam herdeiros de Lacan, mas pelo motivo contrário: acreditam tê-lo encontrado porque frequentaram seu divã, porque foram de sua família, porque foram não sei o que mais. Percebe?
BS: Sim. Nessa primeira geração, os analistasiam ao seminário de Lacan, mas não havia textos a ler. Então, escutavam Lacan e liam Freud. A segunda geração, por sua vez, lia Lacan, mas não mais Freud.
LL: Ou os jovens estudantes de hoje, que leem Lacan ou Freud a partir dos teóricos de gênero. É você quem dizia isso, o que acho muito interessante. Por exemplo, em sociologia, aqui na França, ou mesmo em psicologia, os jovens estudantes começam por Problemas de gênero, de Judith Butler. Com base nela, vão ler Lacan ou Freud. Assim, Lacan ou Freud tornam-se capítulos do livro de Butler. Não se pode dizer que isso não tenha sentido. De fato, nossa epistemologia se complexifica.
BS: E mais: é diferente ler Lacan no original ou traduzido. Em geral, na tradução, há apenas uma versão disponível de Lacan, enquanto na França existem três ou quatro versões, concorrentes, que podemos comparar. A tradução cria fenômenos de sectarismo, me parece.
*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.
A luta contra a opressão de todas as mulheres é,mais do que nunca, um imperativo necessário e urgente, mas tem que se sustentar em uma libertação das mulheres articulada de tal forma que a emancipação da singularidade não passe a crer mais em hierarquias (do homem em relação à mulher, de todos os seres humanos em relação aos animais, plantas, inclusive da materia inanimada). Essa é a inovadora e articulada proposta da filósofa italiana Chiara Bottici em Anarcafeminismo, uma abordagem especificamente anarcafeminista adaptada aos desafios atuais.
Anarcafeminismo oferece um extenso marco teórico a partir do qual nasce o Manifesto Anarcafeminista.
Anarcafeminismo parte de uma visão utópica de uma sociedade onde as pessoas desejam e lutam pela sua liberdade sem criar ainda mais hierarquias para outras pessoas e para seres vivos não humanos. As utopias são realistas porque nos dizem onde (não) estamos. Uma utopia anarcafeminista nos diz que uma sociedade em que todas e cada uma das mulheres são livres ainda está distante, mas também nos mostra que somos a maioria avançando nessa direção. Algumas falam sobre feminismo interseccional, outras ecofeminismo, outras chamam de movimento queer, ou feminismo sem fronteiras: muda o nome e mudam as prioridades politicas, mas a mensagem fundamental é a mesma – o feminismo não significa a libertação de algumas mulheres privilegiadas: significa a libertação de todas nós.
“O feminismo por si só não é suficiente, porque o que vem se demonstrando é que pode se tornar compatível com estruturas de dominação. Por isso, é imprescindível uma filosofia anarcafeminista.”
Chiara Bottici.
A filosofia anarcafeminista permite combinar duas evidência: que há algo específico na opressão das mulheres e das feministas em geral, e que para enfrentar essas opressões precisamos falar delas em todas as suas formas. Para ela, na primeira parte desse extraordinário livro, Bottici estabelece un dialogo com a literatura feminista negra em relação à interseccionalidade e analisa sua relação com teorias e ideias anarcafeministas: delineia um tipo de anarquismo “mais além do eurocentrismo e do sexismo”. Finalmente situa o anarcafemiqnismo entre o feminismo e a teoria queer e trans.
O Intermezzo In nomine matris abre a segunda parte do livro, em que a procura desenvolver um conceito amplo de feminilidade e assim invocar uma filosofia monista da transindividualidade como a estrutura filosófica mais adequada para fazê-lo. Particularmente interessante é o capitulo em que explora como a perspectiva filosófica resultante das leituras feministas do célebre filosofo marrano do século XVII, Baruch Spinoza, podem visibilizar a natureza transindividual de todos os corpos e da filosofia monista – uma filosofia que não opõe corpos e mentes, reconhecendo a ambos como expressões sob diferentes atributos de uma mesma substância singular e infinita.
Essa perspectiva proporciona por sua vez uma base para sustentar que não se pode separar estritamente o sujeito do objeto de conhecimento, e por isso uma filosofia da transindividualidade é também uma filosofia transindividual, em que o discurso filosófico reivindica sua própria individualidade (o que explica por que Bottici começa a escrever com o pronome “eu” e logo passa para “nós” durante o processo de escrita). Seguindo essa linha, a autora aborda a questão que nos permite falar de uma “mulher” específica fora desse processo transindividual em curso, e com a ajuda de teorias filosóficas e práticas artísticas, responderemos que é através de um processo de contar histórias que conseguiremos.
O Intermezzo Itinerarium inaugura a terceira parte, na qual Bottici aprofunda o processo de ontogênese dos corpos generificados e sexuados considerando os níveis supra, inter e infraindividuais e focando nos interstícios que atualmente temos ao nosso alcance. Se o nível supra-individual leva à exploração da geopolítica global da ontogênese e à reivindicação de uma forma de feminismo “decolonial” e “desimperial”, o exame das interações entre corpos de gênero leva, em última análise, a uma análise do modo capitalista de (re) produção, onde o prefixo “re” entre parênteses pretende indicar que o capitalismo não produz se os trabalhadores não se reproduzem, apesar de precisamente colocar “reprodução” entre parênteses ter sido uma das ferramentas utilizadas para criar corpos com gênero.
Por fim, Bottici concentra-se nas infraações e em como os seres generificados nascem da capacidade (re)produtiva de animais, plantas e até mesmo de matéria inanimada, argumentando que uma ecologia transindividual não pode deixar de questionar a hierarquia do homem (acima de tudo). ) > mulheres ( sobre) > animais (sobre) > plantas (sobre) > matéria inanimada. Em suma, uma ecologia transindividual não pode deixar de ser uma ecologia de emancipação da singularidade.
“Enquanto outras feministas de esquerda cederam à explicação da opressão das mulheres com base num único fator, ou prenderam a libertação das mulheres num quadro estreito de compreensão da “feminilidade”, as anarquistas sempre deixaram muito claro que, para combater o patriarcado temos que combater as múltiplas formas e fatores de opressão – econômicos, culturais, raciais, políticos, sexuais, etc. — que comparecem mantendo-os; poderíamos dizer, àquelas que nos levam a privilegiar certas noções de feminilidade em detrimento de outras.”
Chiara Bottici
Consequentemente, o feminismo não é um movimento preocupado apenas com questões que tangem às mulheres, mas com a forma crítica de manter toda ordem social que, na situação crítica atual, é inseparável do “sistema de gênero moderno/colonial”, que reduz os papéis de gênero a um dimorfismo biológico e patologiza aqueles que se desviam dele. As normas de gênero e as dicotomias binárias de “homens” x “mulheres” são opressivas para qualquer pessoa, não apenas para as pessoas designadas como mulheres à nascença, embora os homens possam de fato beneficiar-se de um sistema de gênero binário onde eles têm muito mais possibilidades do que as mulheres de ocupar posições predominantes.
A Editora Criação Humana publicará, ainda o primeiro semestre de 2024, a tradução do livro “Anarcafeminismo”, da filósofa italiana Chiara Bottici.
A pesquisadora francesa comenta sobre seu trabalho desconstruindo tabus sexuais nas pesquisas que envolvem a psicanálise.
“Liberdade, igualdade, fraternidade!”: A Revolução Francesa é a representação do papel do povo na luta pela democracia. Contudo, durante muito tempo, os direitos universais do homem eram assegurados efetivamente apenas para o homem.
Esta realidade é testemunhada por Laurie Laufer, que se desenvolveu como acadêmica em estudos de gênero, psicanálise e políticas sexuais durante a ascensão do conservadorismo francês na última década.
Laurie Laufer embarcou, em 2017, para a Costa Rica em uma parceria com a Faculdade de Psicologia da França para ministrar um seminário sobre gênero e psicanálise, possibilitando essa entrevista.
Você é autora do livro “Qu’est-ce que le genre?”, onde aborda um conceito básico muito importante nos estudos feministas. Como ele abrange a definição de gênero na sociedade contemporânea?
O livro é uma obra coletiva: integra literatura, cinema, sociologia, história da ciência política, psicanálise, psicologia, psicologia do trabalho, etc. É um livro que tem como perspectiva estudar gênero a partir de diferentes pesquisadores e áreas de pesquisa e como eles utilizam o conceito para desconstruir estereótipos, preconceitos que naturalizam as relações sociais. O livro é uma resposta ao contexto atual francês em torno do conceito de gênero. Os conservadores diziam que todos aqueles que trabalhavam com gênero queriam que as mulheres se transformassem em homens, que todos eram homossexuais, que os filhos adotados por casais homoafetivos iriam enlouquecer… uma radicalização. Uma propaganda muito forte, muito conservadora, dos estudos de gênero. A resposta que proponho é que o gênero é um método para analisar hierarquia, discriminação, práticas discursivas e construções sociais.
Você possui uma ampla pesquisa sobre a psicanálise, como feminista. Que abordagem você dá a este viés da psicologia, considerada ainda muito patriarcal, e como combina com autorxs mais modernxs e feministas como Butler e Foucault?
Quando falamos de reprodução e sexualidade a situação fica bastante complicada. A psicanálise é uma ciência da sexualidade. Na década de 1950, a questão da transexualidade foi introduzida no campo da psicanálise e, a partir daí, iniciou-se o contato com o conceito de gênero. Contudo parou por aí, pois houve um movimento de patologização e medicalização da psicanálise. Durante todo esse tempo, o trabalho das ciências sociais a partir do gênero continuou a se desenvolver e esse distanciamento da psicanálise das questões sobre a sexualidade acabou provocando a rejeição de muitos grupos intelectuais.
Atualmente, em comparação com as ciências sociais, os psicanalistas estão apenas começando a estudar e dar as suas impressões e opiniões nos estudos de gênero. No campo da psicanálise, poucos pesquisadores questionam as práticas discursivas, o surgimento de conceitos e noções como a diferença entre os sexos, por isso me considero uma minoria dentro da academia. Fui a primeira a trabalhar essa relação entre gênero e psicanálise, já fora da universidade há outras pessoas que trabalharam essas questões a partir dos estudos de gênero, mas também são uma minoria do campo da psicanálise. É por isso que esta relação entre gênero e psicanálise permanece tão subversiva.
Você se autodefine como ainda uma minoria acadêmica dentro dos seus campos de estudo. Qual é a reação dos demais pesquisadores quando você expõe o que você vem estudando e propondo?
Na França há uma diferença política em relação aos Estados Unidos, por exemplo. Há uma tradição em relação ao discurso de que o direito do homem é universal, um republicanismo universalista. Em contrapartida, os Estados Unidos reconhece a particularidade das comunidades e por isso encontramos estudos específicos em relação as lésbicas, gays, pessoas com deficiência, negros, entre outros. Cada “comunidade” produz suas pesquisas, seus estudos, projetos, em diferentes campos. Na França não acontece dessa forma. É por isso que no início foi fácil dar lugar a esta posição. Repreenderam-me por ter uma abordagem americana, o que na França é um insulto. Me censuraram por sociologizar a psicanálise – o que é outro insulto -, e me censuraram por ter um discurso militante.
A psicanalista francesa Laurie Laufer é a nova autora da Criação Humana. Laurie é psicanalista, feminista, diretora e professora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7. Em 2024 lançaremos a tradução do livro “Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion”.
Italiana Silvia Federici, de 81 anos, que veio ao Brasil lançar dois livros, é uma das intelectuais feministas de maior projeção em atividade.
PorTalita Duvanel.
No Brasil para lançar dois livros (“Além da pele”, editora Elefante e “Quem deve a quem”, em parceria com editora Elefante e Criação Humana), a italiana Silvia Federici, de 81 anos, uma das intelectuais feministas de maior projeção em atividade, aproveitou para adiantar as comemorações dos 20 anos da primeira edição de “Calibã e a bruxa” (2004). Numa de suas obras mais importantes, ela— que mora nos Estados Unidos desde 1967 e, desde então, batalha para que haja pagamento pelo trabalho não remunerado de mulheres em seu próprio lar — mostra como, na transição do feudalismo para o capitalismo, foi crucial para o sucesso do novo sistema confiar às mulheres o papel único e exclusivo de reprodutoras da força de trabalho. Aquelas que conseguiam controlar a própria natalidade e tinham posições de poder foram tachadas de bruxas e dizimadas. Assim, ela relata, estabeleceram-se as bases da divisão sexual do trabalho — com as mulheres cuidadoras maternais — que permeia o modo de vida predominante nas sociedades ocidentais.
Na entrevista a seguir, realizada em Paraty durante sua passagem pela Flipei e antes de embarcar para São Paulo, a autora, que interrompe a conversa para ajudar o marido (ele se movimenta com dificuldade), fala sobre a sobrecarga da economia do cuidado, analisa uma volta da “caça às bruxas” e conta como seria sua redação no Enem 2023 sobre o tema “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher”.
O mundo está melhor ou pior para as mulheres, de uma forma geral, desde que a senhora escreveu “Calibã e a bruxa”?
Estamos vendo a situação piorar. Pessoas estão sendo expulsas de suas terras, há uma deterioração das condições de produção, cortes nos orçamentos, uma crescente militarização da vida. E às mulheres cabe suportar o fardo do trabalho reprodutivo mais e mais com menos recursos. Agora ainda há uma nova caça às bruxas em todo o mundo, especialmente na África, Índia, América Latina e no Brasil. Por exemplo, no dia 18 de setembro, Sebastiana, líder dos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, foi queimada viva (Nhandesy Sebastiana era líder religiosa dos guarani-kaiowá, em Aral Moreira, e teve o corpo carbonizado juntamente com o do marido, Nhanderu Rufino). Ela comandava uma luta contra a expropriação de terras comunais para o cultivo de soja. Esse foi mais um caso de mulher acusada de ser bruxa pelo fundamentalismo cristão. No Sul Global, fica muito claro que as motivações econômica e política e a briga pela terra dão um empurrão contra a luta das mulheres por autonomia.
Como a inteligência artificial e as redes sociais têm transformado a exploração dos corpos e da força de trabalho feminina?
Estão tentando nos convencer de que não precisam mais do trabalho humano com a IA. Isso é uma arapuca. As pessoas trabalham mais do que nunca hoje. Esse é um primeiro aspecto. O segundo é a completa tecnologização da vida. Existe essa ideia de que podemos ter máquinas fazendo trabalhos de cuidado. É o contra-ataque à luta que as mulheres travaram. Esta tem sido a história do capitalismo. Quando os trabalhadores combatem uma forma específica de exploração, o capitalismo se precipita em pensar numa máquina. Há uma explosão de estudos sobre simpáticos robôs que andam, falam e podem cuidar de idosos e crianças. Isso é o contrário do pregamos: precisamos falar sobre formas coletivas de cuidado. Precisamos superar o isolamento em que mulheres foram obrigadas a cuidar da reprodução, dos idosos, das crianças, dos enfermos. Mas eles vão nos dar robôs legais…
Com voz feminina…
E com voz feminina! Precisamos de uma crítica feminista da inteligência artificial. Uma crítica que tenha lados múltiplos, que olhe para a destruição ecológica, para a ilusão de liberdade e em termos de alienação das relações humanas.
No Brasil, temos o Enem, uma prova nacional para alunos do Ensino Médio entrarem na universidade, e todo ano há uma redação, com um tema…
Ah, sim, este ano foi sobre trabalho doméstico! Eu soube. Muito interessante. Fiquei bem feliz.
Se conversasse com estudantes agora, o que diria ser mais importante de estar nesta redação?
Meu argumento principal seria de que, quando olhamos para a organização do trabalho doméstico no capitalismo, temos uma janela para entender a lógica que faz esse sistema prosperar. O trabalho doméstico é considerado uma atividade biológica, mas é fundamental porque produz mão de obra. É o que faz a roda girar. Não produzimos carros ou ferramentas, produzimos seres humanos. O movimento feminista redefiniu (o olhar) para este trabalho. A questão é: por que é tão desvalorizado? Ele é tão importante, tão crucial que, se tivessem que compensar as mulheres, não teriam conseguido acumular a grande riqueza que acumularam. Isso é o início do entendimento de que vivemos numa sociedade baseada na exploração e na desvalorização da nossa vida. E isso devia ter feito parte da redação: tem havido uma revolução do conceito de trabalho doméstico. Mais e mais pessoas têm tido consciência de que não é só limpeza e cozinha. É um trabalho emocional, sexual, intelectual, de conciliação de todas as diferentes necessidades das pessoas: do homem, da crianças, dos outros parentes. São as mulheres que mantêm a comunidade unida.
A senhora falou de terra, Sul Global… Soa como um “neo neocolonialismo”.
Há um movimento progressivo em direção a uma recolonização. Vemos um novo colonialismo muito violento. Alguém escreveu, e penso que muito bem, que a Palestina hoje é o mundo. No sentido de que, numa visão macro, o capitalismo está se expandindo e expulsando as pessoas de suas terras e empurrando-as para campos de refugiados ou para a imigração. Por causa desta tomada de posse de terras — particularmente por empresas extrativistas e pelo agronegócio — e também por uma constante erosão do investimento nas pessoas, são as mulheres que pagam o preço mais elevado. Elas precisam compensar com trabalho e sacrifícios extras pelos recursos que estão diminuindo.
Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), evento de que a senhora veio participar, mesas de sucesso falaram sobre o tema do encarceramento em massa de pessoas negras, principalmente mulheres. Num país como o Brasil, como isso contribui para a manutenção do capitalismo?
Este é um sistema de terror de Estado. E ele é utilizado para que a sociedade mantenha uma força intensiva de exploração, com desigualdade produzindo cada vez mais desigualdade. O capitalismo acumula dinheiro, injustiças e hierarquias. Está muito claro que a escravidão não acabou. Temos novas formatos, que vão desde modelos financeiros e ao encarceramento em massa. Vejo o Brasil como um dos países do mundo com o maior nível de hierarquias racializadas. Então, faz sentido que os negros sejam intimidados, afinal essas hierarquias são fundamentais para a continuação do sistema, dando aos brancos o poder de oprimir os negros, aos homens o poder de oprimir mulheres. Este é realmente o problema de tantos grupos e organizações políticas. Como podemos desfazer isso? Como criamos demandas organizacionais, movimentos e lutas que sejam capazes de subverter essas divisões hierárquicas?
Silvia Federici (Parma, Itália, 1942) encerrou outubro de 2023 com uma conferência on-line na quarta edição da Escola Feminista da Assembleia Moza d’Astúrias, na Espanha. Autora de Calibã e a bruxa, O ponto zero da revolução, Reencantando o mundo e Além da pele, Federici é uma das teóricas mais importantes e reconhecidas do feminismo anticapitalista mundial, com uma longa trajetória de ativismo e reflexão. Viveu o feminismo dos anos 1970 na Itália, as campanhas pelo salário para o trabalho doméstico em Nova York, a luta contra os planos de ajuste estrutural na África, a crítica ao processo de globalização neoliberal e seus efeitos em todo o planeta, o movimento pela recuperação dos bens comuns e, mais recentemente, o ciclo de lutas que se abriu em 2011 e que tem continuado na última onda feminista. Em outras palavras, Federici passou décadas conciliando o ativismo com a reflexão e, assim, tem nos fornecido chaves para pensar e entender nosso presente. Hoje, quando o movimento feminista internacional está passando por intensos debates internos, voltamos a conversar com ela sobre este momento político.
Começamos pelo passado mais recente do movimento feminista, que foi um período massivo e expansivo de protestos, mobilização e reivindicação social. Como você interpreta e como acha que devemos interpretar esse “crescimento político” em um presente menos ativo? E como podemos pensar no movimento feminista de hoje em dia?
Em primeiro lugar, não estou surpresa com o grande crescimento do movimento feminista internacional. Na verdade, teorizo há muito tempo — junto com outras companheiras, como Verónica Gago — que o movimento feminista, em potencial, é o movimento mais importante. E é assim porque luta no território mais importante da transformação social, que é o da reprodução social. O feminismo, desde o início, concentrou-se na análise da reprodução social como o conjunto de atividades fundamentais para a reprodução da vida no sistema capitalista. Nesse contexto, a perpetuação da sociedade capitalista é mais importante do que a procriação, os cuidados, a saúde, a educação e toda a formação cultural. Como Verónica Gago já disse muitas vezes, ao lado das companheiras do movimento Ni Una Menos, a reprodução não é equivalente à produção. Pelo contrário, a reprodução é algo muito mais abrangente: é o conjunto de atividades que constituem a condição de possibilidade da perpetuação do mercado de trabalho. Portanto, a luta não é outra coisa senão o território onde se torna possível unir diferentes movimentos, reunir várias disputas. Esse território é a luta feminista. É exatamente isso que a luta feminista demonstrou a nível internacional: o feminismo, entendido como protesto contra a opressão e discriminação das mulheres, amadureceu muito em suas análises e, na prática, possibilitou o surgimento de muitas mais reivindicações. Nas últimas décadas, entendemos que não é possível mudar a situação das mulheres no mundo sem mudar o próprio mundo. O feminismo atual agora tem essa consciência e sabe que, como mulheres e dissidentes sexuais, não podemos melhorar nossa condição sem mudar o sistema social capitalista, que se baseia em uma lógica de guerra, violência, exploração do trabalho e da natureza. Em última análise, não podemos mudar nossa condição sem lutar contra o sistema capitalista em todas as suas formas.
Como se explica o crescimento político feminista dos últimos anos?
Eu acredito que o crescimento político dos últimos anos se deve, principalmente, às crescentes evidências da crise do sistema capitalista. Poderíamos discutir o porquê dessa crise, mas é evidente que a crise do capitalismo está se aprofundando. Temos um capitalismo cada vez mais violento, que promove a militarização da vida, a intensificação da exploração do trabalho e da natureza, e a desapropriação de terras. Estamos vivendo um presente aterrador no qual milhares de pessoas são forçadas a deixar seus locais ancestrais para que se tornem terras úteis e produtivas para o capital. A resposta a essa guerra e a esse ataque sistemático internacional à vida e à sua reprodução tem vindo das mulheres. São as mulheres que lutam na linha de frente contra a destruição da Amazônia e da África, são as mulheres que lutam contra o desmatamento e contra as empresas de mineração e petrolíferas. Elas percebem que a chegada de uma empresa de mineração significa que há mercúrio na água e que isso significa o fim de sua comunidade. Acredito que, por serem o sujeito principal da reprodução social, as mulheres se envolvem mais na luta contra as políticas que destroem a vida e impedem sua reprodução. Hoje, este é o tema fundamental da política internacional.
Você tem falado há muito tempo sobre os altos custos da reprodução social do sistema capitalista para as mulheres. Como essa imposição nos afetou e nos afeta?
Muitas mulheres, desde o início do movimento feminista, denunciaram, de diversas maneiras e com muitas palavras, o significado dessa imposição às mulheres na sociedade capitalista, o que implica cuidar da reprodução da vida. Explicamos que essa imposição gerou um trabalho desvalorizado, não remunerado, sem horário e aposentadoria. No entanto, acredito que também é importante dizer que essa imposição nos deu muito conhecimento: não é por acaso que as mulheres hoje têm maior consciência da fragilidade e do valor da vida, da teia de relações que sustenta a vida e nos permite superar o individualismo. Em resumo, a importância de construir uma comunidade. Para mim, esses são os dois temas centrais do feminismo: a luta contra a devastação capitalista, colonial e racista e a capacidade de pensar em uma alternativa e praticá-la a partir do presente, de nossa vida cotidiana. Pensar nisso, no contexto da perigosa situação política internacional atual, na qual muitas pessoas enfrentam constantemente a morte, me enche de esperança. Nesse contexto, o crescimento do movimento feminista e de sua capacidade organizativa internacional não é algo insignificante. Especialmente nos últimos anos, o movimento feminista tem demonstrado sua grande capacidade de criar alianças para a internacionalização da greve, indo da Argentina à Europa e gritando para o estado: ‘O estuprador é você’. A tecnologia nos ajudou a nos comunicar entre nós, mas essa grande capacidade vem, acredito eu, da consciência de que as mulheres estão enfrentando, de maneiras muito diferentes, os problemas fundamentais da política internacional atual. Nossas vidas dependem de como esses problemas serão resolvidos.
Você fala muito sobre experimentação. O que isso significa? Você acha que nosso presente é ou poderia ser um momento de experimentação?
Meu conceito de experimentação surge da ideia de que não podemos mais pensar na mudança social como uma tarefa do futuro. Estou pensando agora no conceito de “revolução” da esquerda tradicional, que considera a revolução como algo muito distante de nosso presente, algo que nunca chega. Minha ideia de experimentação, que considero muito importante para a prática feminista, diz exatamente o contrário: a revolução é hoje, a mudança acontece hoje. Não podemos continuar lutando contra tudo sem construir algo de forma positiva, não podemos lutar apenas organizando protestos. Dizer “não” é fundamental, sair às ruas e se opor é fundamental, mas não podemos nos limitar a isso. Precisamos começar a construir e fazê-lo em conjunto. Precisamos mudar nossa vida cotidiana experimentando novas formas de criar uma comunidade, que é a própria condição de nossa luta. Quando falamos em construir bens comuns, não o fazemos apenas pensando em um futuro comunitário, mas sim a partir da convicção da necessidade de fazê-lo agora. Precisamos começar a mudar as condições de reprodução da vida. O capitalismo, para se reproduzir, nos dividiu, nos individualizou e nos atomizou. Leopoldina Fortunati explica isso muito bem: o capitalismo nos unia nas fábricas e nos dividia na vida, com base na individualidade. A ideia da casa separada das outras, da família nuclear que cuida dos assuntos sujos em casa, da privacidade que rompe as relações entre vizinhos, tudo isso precisamos quebrar. Nos últimos anos, temos dito alto e claro: vamos derrubar os muros. Para mim, esse foi um dos maiores contributos do feminismo, ou seja, colocar a necessidade de nos unirmos e compartilhar nossos problemas na mesa.
Como podemos colocar em prática esse aprendizado?
Desde o início, o feminismo entendeu que não podemos lutar sem mudar nossa vida cotidiana e sem socializar nosso sofrimento e nossos medos. Os grupos de autoconsciência foram muito importantes. Quando as mulheres começaram a falar e compartilhar seus medos, suas culpas e sua sensação de não valer nada umas às outras, perceberam que todas compartilhavam os mesmos problemas. Perceberam que não eram problemas individuais, mas sim estruturais. Os grupos de autoconsciência nos permitiram entender que o problema não éramos nós, não eram nossos corpos nem nossas mentes, o problema era a sociedade. Portanto, o que precisávamos naquela época e ainda precisamos agora é mudar a sociedade, não nós mesmas. Nós temos uma grande capacidade de socializar e compartilhar nossos problemas, agora precisamos mudar a organização da reprodução cotidiana, criando momentos compartilhados de cuidado, como hortas urbanas.
A organização feminista deve ser também uma organização da mudança na vida cotidiana, que passa pelo que é comum: nos unir significa fortalecer e ganhar confiança, conhecimento e poder para enfrentar o estado que detém mais poder. Enfrentar o estado não significa se fechar em grupos pequenos, pelo contrário: significa se unir para reivindicar a riqueza social que está sendo roubada de nós e deter as decisões destrutivas que estão sendo tomadas. Portanto, experimentar também significa criar formas de luta capazes de recuperar e reivindicar espaços, tempo, riqueza social e recursos que nos foram roubados e continuam sendo roubados. Isso é muito importante, pois não podemos criar um mundo diferente sem antes nos apropriarmos da riqueza social. Eu acredito que esse é o verdadeiro campo de luta. Tenho dito há algum tempo que os comuns, ou seja, a criação em comum, não é apenas o objetivo da luta, mas sim a condição cotidiana da luta e seu poder de desafiar o estado e aqueles que estão sufocando nossa possibilidade de mudança.
Há alguns meses, durante uma entrevista publicada pela Contexto, você desenvolveu uma pergunta-chave para o movimento feminista internacional: “Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução de nosso poder de luta?”. Além disso, você disse que “isso é a medida de nosso crescimento político”. O que isso significa?
É a capacidade de nos unirmos para criar, superando a atomização de nossa vida. Isso é essencial para uma mudança social radical. Somente assim poderemos reduzir o tempo que investimos em realizar trabalhos que nos disciplinam e que geram pessoas mais facilmente exploráveis, e, dessa forma, poderemos nos dedicar a criar as condições necessárias para nos fortalecer e mudar nossa situação, tanto pessoal quanto coletiva. O tempo e os recursos, como mencionei, são fundamentais. Nossa vida está constantemente em contradição, e a reprodução torna isso evidente. A reprodução sustenta nossa vida, a de nossas famílias e comunidades, e, ao mesmo tempo, ocorre em condições que não escolhemos, que nos são impostas e que não são desejáveis. Essas condições são impostas pelo capitalismo, que precisa explorar para se reproduzir. O tema agora, então, é como mudar e como fazer isso: como nos organizamos para obter o poder de não ter que trabalhar dez horas por dia? Como fazemos para que nossas filhas e filhos não reproduzam nossa miséria e possam ter a liberdade de rejeitar a exploração e o despojo? É sobre isso que estou falando com o conceito de “experimentação”.
Qual é o caminho para nos reapropriarmos do nosso tempo e poder, e assim nos organizarmos?
A força que vamos construir é a de recuperar nossa vida e criatividade. Eu acredito que o que fazemos na vida cotidiana tem consequências nas casas, escolas, escritórios e fábricas, e essa é a medida do nosso crescimento político: influenciar as pessoas que atravessam os espaços que mudamos com nossas ações diárias. Neste contexto, os sindicatos deveriam desempenhar um papel ativo. Acredito que chegou a hora de os sindicatos incluírem a questão da reprodução da vida na luta pela melhoria das condições de trabalho da classe trabalhadora. A luta trabalhista deve se expandir e se interessar pelo que está sendo produzido. Não se trata apenas de fazer com que as horas de trabalho sejam respeitadas e de garantir condições de trabalho dignas, mas também de reivindicar o direito de decidir se queremos produzir mercadorias úteis ou materiais tóxicos e armas que acabarão com a humanidade e a natureza. A reprodução não é apenas uma questão doméstica, pelo contrário, é muito ampla e afeta todas as esferas de nossas vidas. Em última análise, trata-se de decidir se queremos produzir morte e miséria ou algo que reproduza nossa criatividade e bem-estar.
Uma das questões que enfrentamos dentro do feminismo é liberar o tempo das mulheres, liberar nosso tempo. Eu acredito que há milhões de mulheres em todo o mundo que estariam dispostas a sair às ruas e se organizar, mas o trabalho de cuidados, que nunca termina, as mantém presas em suas casas. Precisamos pensar no trabalho de cuidados de forma mais ampla do que costumamos fazer. Cuidar não é apenas criar nossos filhos, é cuidar de milhares de coisas que o corpo e a mente precisam. Devemos pensar no cuidado emocional que as pessoas que criamos precisam. Cuidar é o trabalho mais árduo, pois exige todas as nossas energias físicas, mentais e emocionais. É um trabalho desgastante. Portanto, acredito que pensar em formas comunitárias de cuidar é uma tarefa pendente do feminismo. Precisamos de tempo, precisamos liberar o tempo das mulheres que ainda hoje estão aprisionadas em suas casas, equilibrando seu trabalho com o cuidado de idosos, crianças e pessoas com deficiência física. Isso é uma das questões mais urgentes a serem abordadas pelo movimento feminista: se estamos sendo consumidas física e emocionalmente para reproduzir, como poderemos investir nossas energias na luta? A mudança na vida cotidiana, portanto, é fundamental para estarmos na luta. Tenho receio de que o movimento feminista, nesse sentido, não tenha feito o suficiente. Acredito que seja necessário um esforço maior para pensar não apenas em como podemos mudar a forma como as comunidades se relacionam umas com as outras, mas também como planejamos enfrentar o estado. Não podemos esquecer que, quando pedimos serviços sociais ao estado, precisamos ser capazes de controlar que tipo de serviços nos são fornecidos. Acredito que qualquer mulher que tenha lidado com o sistema de saúde sabe muito bem que vivemos em um estado de crise contínua e permanente. O estado pode fornecer serviços, mas, às vezes, a forma como o faz está tão equivocada que a situação acaba piorando. Lamento estar falando tanto sobre esse assunto, mas, por estar vivendo isso em primeira mão, assim como muitas companheiras, sinto que é um assunto que deve ser abordado. Recentemente, percebi que, a partir de certa idade, a questão dos cuidados se torna mais complexa, e hoje não temos uma alternativa ao trabalho realizado pelas mulheres em casa. Acho isso terrível e deve ser um tema central para o movimento feminista atual.
Falando sobre sua trajetória, você viveu em primeira pessoa as lutas dos anos 70 e a última onda feminista da qual falamos no início. O momento atual é marcado por uma forte rejeição ao feminismo e um questionamento dos avanços que alcançamos. Você acha que há alguma conexão entre a rejeição ao feminismo que ocorreu nos anos 70 e a atual?
Sim, claro que há. É uma pergunta complicada porque há muitos fatores em jogo. Em primeiro lugar, não é por acaso que a partir dos anos 70 as Nações Unidas começaram a intervir na política feminista. As Nações Unidas, ou seja, o capital internacional, perceberam muito antes que a esquerda tradicional o quão perigoso o feminismo poderia ser para a sua perpetuação. A partir de 1975, houve inúmeras conferências e intervenções das Nações Unidas (Cidade do México, Copenhague, Nairobi, Pequim, etc.) que tinham como objetivo apropriação do movimento feminista e o uso de parte de nossa ideologia contra nós, usando nosso pensamento para nos controlar e integrar as mulheres no processo de globalização como mão de obra barata. Até hoje, as mulheres realizam dois trabalhos. Portanto, o capital queria apropriar-se do movimento feminista por meio da ideologia da emancipação por meio do trabalho. Ninguém se emancipa através do trabalho em uma sociedade capitalista, isso é uma mentira. Eu acredito que essa cooptação do capital nos causou muito dano. Essa massificação do feminismo nos prejudicou. Muitas pessoas, principalmente muitas mulheres jovens da nova geração, acreditam que uma mulher feminista é aquela que luta pela igualdade entre homens e mulheres e que deseja ocupar um cargo de poder em seu trabalho. Em resumo, uma mulher feminista se torna uma mulher capturada pela instituição. Em parte isso é verdade: muitas feministas estão presas nas instituições porque muitos governos, embora nem todos, perceberam que a emancipação das mulheres poderia ser usada de forma instrumental para seu próprio benefício. As mulheres, então, podem ser exploradas não apenas em casa, mas também nas instituições com salários miseráveis e em outros trabalhos que não geram autonomia alguma. Tudo isso aumenta a miséria das mulheres, não as liberta, e mesmo assim, há quem continue dizendo que esse é o caminho. Bem, tenho minhas dúvidas e acredito que, devido a isso, muitas jovens começaram a falar de pós-feminismo. Estou pensando em um cântico que é muito ouvido por aqui, que diz: “vamos ser pós-feministas em uma sociedade pós-patriarcal”. Isso é mentira: a sociedade atual ainda é muito patriarcal, e vemos isso todos os dias.
Nos últimos anos, vimos o crescimento e disseminação de muitos partidos de extrema direita em todo o mundo, totalmente contrários aos avanços feministas. Como essa onda reacionária global nos afeta? Em seus últimos livros, você fala sobre seu conceito de “fascistização” da sociedade. Você pode explicar?
Além de tudo o que mencionei, hoje em dia, estamos enfrentando o fascismo em seu estado mais puro. Um fascismo que parece ter perdido qualquer tipo de vergonha. Por um lado, temos Giorgia Meloni na Itália, que é grotesca. Ela, uma mulher, líder de um partido chamado Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), nunca pensou em mudar o nome de sua organização política para que ela fosse incluída. Por outro lado, temos o Sr. Trump e a bem-sucedida luta do Partido Republicano para acabar com o direito ao aborto. Nesse contexto atual, muito complexo, precisamos ser sábias e analisar cuidadosamente, porque há um perigo real em nosso presente. Identificamos como fascismo o de Trump e o de Meloni, que é um fascismo muito óbvio, tão óbvio que é grotesco. No entanto, há outro fascismo mais sutil que permeia a política e a economia atuais. Em nosso presente, em sociedades que se autodenominam democráticas, estamos testemunhando uma “fascistização” da sociedade e da política econômica. Nos Estados Unidos, onde moro, tudo isso é muito evidente. As políticas que destruíram o bem-estar social americano foram implementadas por governos como o de Clinton, que foi capaz de alterar as leis de combate ao terrorismo, de administração de prisões e de militarização de toda a fronteira com o México. O governo Biden, que parece estar aberto ao feminismo e às pessoas trans, na verdade não está fazendo nada concreto. No entanto, envia milhões de dólares em todo o mundo para apoiar guerras imperialistas. Estamos testemunhando uma política imperialista brutal por parte do Partido Democrata nos Estados Unidos. O que está acontecendo na África e na Ucrânia é evidente: a guerra continua porque os Estados Unidos querem que continue e estão se preparando para uma guerra contra a Rússia e a China. Nos últimos dias, o governo Biden aprovou um orçamento militar de um trilhão de dólares. Em resumo, em 2023, o governo atual investirá um trilhão de dólares em guerra. Pense em quantas coisas poderiam ser feitas com um trilhão de dólares, quanto apoio à reprodução social poderia ser fornecido com todo esse dinheiro. A partir do que é investido na militarização da sociedade, cortes contínuos são feitos na já escassa saúde pública. No início deste ano, foram retirados os benefícios de saúde pública de mais de um milhão de pessoas e foi negado todo tipo de apoio aos estudantes universitários, que continuarão endividados pelo resto de suas vidas por terem buscado educação. Estudar nos Estados Unidos é caro e, diante dessa situação esmagadora, decide-se investir um trilhão de dólares em morte e guerra. Essa deve ser uma questão importante para o movimento feminista. Estamos em um momento muito perigoso, preparando-se para guerras internacionais, e o capitalismo se alimenta das guerras e se reproduz com elas. A guerra sempre foi um momento de mudança social profunda, pois serve para transformar a economia e as relações de poder em nível local e internacional. Além disso, a guerra serve para destruir os movimentos sociais. Neste momento de profunda crise do capitalismo internacional, estão sendo criadas as condições para a guerra, dia após dia. Portanto, a luta contra a guerra deve ser incluída na agenda feminista em todos os níveis. Foi uma grande derrota para o feminismo a inclusão de mulheres nas forças armadas no final dos anos 70 e início dos anos 80. Houve pessoas que lutaram pela entrada das mulheres nos exércitos nacionais, enquanto eu me oponho a essa barbaridade há décadas. Igualdade, nesse caso, não significa que homens e mulheres sejam iguais; igualdade significa que ninguém mais deve morrer em uma guerra. Precisamos deter a militarização da vida cotidiana e, para isso, precisamos de um feminismo que lute contra a guerra. Essa deve ser uma questão central para o movimento feminista internacional: lutar contra a guerra, contra a militarização da vida cotidiana, contra o investimento em armas e militares e contra o controle social nas cidades e bairros.
Você descreveu um presente muito complicado através do seu quadro de fascistização, que permite resolver muitos nós da análise social, econômica e política do momento atual. Qual é o papel das mulheres nesse processo de fascistização? E o que o movimento feminista pode fazer para enfrentar essa onda fascista? Em seus escritos mais recentes, você fala sobre a militância alegre e gozosa. Recuperar a alegria é a chave para facilitar a organização?
Ah, eu gosto desse tópico. Estou profundamente convencida de que, a nível internacional, está ocorrendo um grande processo de conscientização. A grande maioria de homens e mulheres, jovens e velhos, sabe que a sociedade capitalista é uma sociedade que produz morte e escassez em nome do progresso. A maioria da sociedade sabe que o progresso capitalista é uma mentira. Portanto, o desafio do feminismo atual é organizar essa maioria social com novas formas de luta comunitária. O propósito é, como mencionamos antes, liberar nosso tempo para criar uma mobilização forte, contundente e verdadeiramente transformadora. Para que isso aconteça, precisamos ter tempo livre. No entanto, há outro tópico igualmente importante a abordar: nossa forma de organização. Eu acredito que, por muito tempo, a forma de organização política foi muito masculina. Sendo um setor muito masculinizado, desenvolveu-se uma ideia do que é a política e como se faz política de forma muito regimentada. Eu acredito que as feministas, por outro lado, entenderam que ao se organizar para lutar, é preciso pensar em atividades que não sejam mais um trabalho. Devemos pensar em formas de organização e luta que não sejam mais um trabalho, que não nos causem mais sofrimento e que não pareçam mais uma carga em nossas vidas. Devemos nos esforçar para criar formas de organização, luta e mobilização que nos nutram, nos fortaleçam emocionalmente e sejam prazerosas e alegres. No entanto, a condição para que isso aconteça é conscientizar-se da importância das relações que criamos entre nós no processo de luta e mobilização. Devemos prestar atenção às relações que criamos e criar redes afetivas que nos façam desejar ir a uma reunião ou encontro porque nossas amigas, as mulheres que amamos, estarão lá. A organização também deve incluir momentos de felicidade: cantar, dançar e fazer atividades alegres juntas. Muitas mulheres já estão colocando tudo isso em prática. Um exemplo fantástico é Rafaela Pimentel de Território Doméstico (que participou da III edição da Escola Feminista de Ama Asturies). Precisamos integrar essa afetividade em nossa luta, especialmente quando temos companheiras que deixaram seus países e vivem longe de suas comunidades. A militância alegre consiste em criar novas famílias no sentido mais positivo da palavra. Eu sempre digo: se o trabalho de mobilização se tornar uma carga adicional, algo está errado. Nesta condição de tristeza e sofrimento adicionado às nossas vidas, é normal que as pessoas prefiram ir assistir ao futebol ou ao cinema. Precisamos criar uma militância alegre capaz de nos reproduzir, não apenas aos outros. Precisamos também reproduzir a luta, o que significa nos reproduzir em um aumento de alegria. Isso é solidariedade. A solidariedade não é apenas teoria, é algo que nos mobiliza, que move nossos corpos.
Para encerrar, quais são as tarefas pendentes do feminismo contemporâneo? Você falou sobre a importância de incluir na agenda feminista o trabalho reprodutivo e a reprodução da vida, a luta contra a guerra e a militarização da sociedade. Você acha que há algum novo campo de reflexão que não estamos conseguindo ver, justamente porque, como você nos ensina, o capitalismo limita nossa capacidade de imaginar?
Acredito que o que o movimento feminista está fazendo atualmente demonstra a amplitude do feminismo: o corpo, a sexualidade, a saúde, a educação e a produção do conhecimento são apenas alguns dos temas que o movimento feminista abordou ao longo das últimas décadas. Também não podemos esquecer da incrível luta pela recuperação da Memória Histórica realizada pelas companheiras na América Latina. Elas nos ensinam a importância de recuperar o senso de comunidade e a solidariedade com aqueles que lutaram antes de nós, não apenas para entender as lutas do passado, mas também para mantê-las presentes em nosso cotidiano. Compreender as lutas do passado e conhecer o rosto das companheiras e companheiros que perderam a vida lutando nos fortalece. Em última análise, entender que nossa luta faz parte de algo muito maior e que vai além de nossa vida individual nos dá coragem, sabedoria e solidariedade.
Além disso, a luta feminista envolve a luta pelos recursos e contra a devastação da natureza em sua totalidade: a terra, a água, os mares, os animais e as árvores. Também é a luta contra a dívida, que é muito forte na Argentina, como Verónica Gago menciona com frequência (ela participou da II edição da Escola Feminista de Ama Asturies). A dívida foi criada pelo capital e é outra forma de aprisionar as mulheres em suas casas. As mulheres são as mais endividadas: temos dívidas para comer, para nos curar e para estudar. Hoje em dia, as pessoas não se endividam para comprar coisas supérfluas, muito pelo contrário: hoje nos endividamos para comer, pagar as contas de luz e consultar um médico, porque os salários estão cada vez mais miseráveis. Portanto, a capacidade do movimento feminista de criar redes internacionais, que vão da América à Europa, passando pela África e Ásia, contra a dívida pessoal e nacional, é de extrema importância. Organizar-se internacionalmente contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional é fundamental, porque onde quer que sejam impostos planos de austeridade, as pessoas não terão escolha senão se endividar para sobreviver.
Em resumo, o movimento feminista tem se mostrado capaz de incluir em sua análise muitos temas, como mencionei antes. Agora precisamos nos concentrar em criar novas formas coletivas de organizar os cuidados, a educação e a produção de conhecimento sem passar pelo mercado. É necessário libertar a reprodução social do mercado, livrá-la da lógica do lucro, recuperá-la e focá-la em nosso bem-estar. Este é o objetivo do feminismo e já estamos a caminho de alcançá-lo. Um caminho que deve ser internacionalista, com passos para fortalecer as redes de mulheres já existentes e criar outras capazes de conectar as mulheres indígenas com as camponesas e com aquelas que lutam contra a repressão sexual. Em resumo, temos que conectar todas as nossas lutas. O feminismo é um território de análise e ação imenso, e eu acredito que ainda estamos entendendo que esta é nossa força. Estamos criando um território comum que serve como ponto de encontro para todas as lutas sociais. Esta é nossa força e, ao mesmo tempo, o presente e o futuro do movimento feminista.
Diante da convocação a refletir sobre o que seria uma clínica da multidão de minorias, parece-me inevitável começar interrogando os termos que compõem tal convocação, pois só entendendo um pouco mais a necessidade da referência à multidão e às minorias, veremos com clareza alguns dos desafios colocados atualmente à nossa clínica. de modo que possamos não apenas interrogar as formas e sentidos das nossas práticas, mas, sobretudo, imaginar outras modalidades possíveis para a escuta das experiências subjetivas contemporâneas em sua singularidade.
Para o termo multidão, recorrerei aqui brevemente Paul B. Preciado, em um texto relativamente conhecido, Multidões queer (Preciado, 2011). O que temos ali é a afirmação do potencial transgressivo de uma anormalidade múltipla que se recusa ao enquadramento, seja normativo ou mesmo identitário. Afirmar a multidão em sua diversidade implica afirmar um comum possível, ao mesmo tempo em que se recusa tanto a unificação referida à adequação a uma norma ou ideal quanto a distribuição em territórios identitários, definidos por uma essência qualquer atribuída aos que os habitam, ainda que seja esta puramente estratégica, e regulados por fronteiras tanto físicas quanto simbólicas ou mesmo puramente imaginárias.
Quanto ao segundo significante, creio haver pelo menos duas maneiras de dar sentido ao que nos referimos como minorias: em primeiro lugar, minorias numéricas, as quais carecem, em função disso, de representação na esfera pública, regulada na maioria das vezes por regras de proporcionalidade; em segundo lugar, grupos e indivíduos menorizados, ou seja, cuja falta de representação política deriva não de um déficit numérico, mas de um déficit de reconhecimento social. É sobretudo neste segundo sentido que a dita questão das minorias aparece como elemento central da política contemporânea, tal como propõe Axel Honneth (2009) em sua descrição de uma luta por reconhecimento, no centro da qual, destaca-se mais uma vez a questão das identidades, que aparecem como elemento fundamental do cálculo político contemporâneo, muitas vezes colocando em segundo plano a questão da injustiça econômica e aquilo que Nancy Fraser (2006) nomeia luta por redistribuição.
Com isso, chegamos finalmente ao primeiro termo da sentença que delimita o problema e o sentido deste ensaio, pois será preciso refletir, ainda que brevemente, sobre o que entendemos por clínica. Com o sintagma multidão de minorias, colocamos em questão, de forma condensada, uma série de problemas políticos que marcam nossa atualidade, com ampla ressonância sobre os processos de subjetivação e modalidades de laço social, mas situamos, ao mesmo tempo, em nosso horizonte ético-político, uma série de valores, ideais e mesmo posicionamentos estratégicos que podem, ou, mesmo, deveriam orientar a nossa prática clínica. Falta agora demarcar os sentidos possíveis para tal clínica e é nesta direção que nos encaminhamos a partir daqui.
Como ponto de partida, acredito ser necessário ressaltar que com os dois termos iniciais – multidão e minorias – procuramos nos referir não apenas a conjuntos difusos e mal definidos de existências, mas, talvez de maneira mais específica, a grupos e indivíduos postos em uma posição subalterna, sendo, assim, silenciados. Desse modo, a primeira questão que, para mim, se coloca quando pensamos em uma clínica da multidão de minorias é muito simplesmente como escutar aqueles que não podem falar (Spivak, 2018).
Afinal, não é função própria do trabalho analítico fazer falar o que não pode ser dito? Fazer falar aquele que, não podendo verbalizar seu desejo, acaba por enunciá-lo por meio de sintomas e outras formações do inconsciente, produzidas na tensão entre o desejo que se quer em movimento e o recalque que barra as representações que lhe possibilitariam mover-se?
As condições de tal “fazer falar”, aparecem, ao menos para Freud, sempre articuladas à colocação em jogo daquilo que definiu como regra fundamental da análise – a associação livre do paciente – e sua contrapartida, por parte do analista: a atenção flutuante (Freud, 2010/1912). De modo que a postura do analista será fundamental para que a associação do paciente e o drible da censura efetivamente ocorram, abrindo espaço para a irrupção do inconsciente e para a manifestação dessa tensão entre desejo e recalque que marca o conflito psíquico.
Tal postura, nós a procuramos entender como a criação necessária de condições de escuta e assim será sempre a partir do estabelecimento dessas condições que aquele e aquilo que são silenciados, poderão dizer e ser dito. Fechando este pequeno círculo inicial, proponho, então, que o estabelecimento de uma clínica da multidão de minorias se faz a partir da criação das condições de escuta daqueles que, postos em posição subalterna, tem sido, historicamente, silenciados.
Procuraremos encaminhar tal formulação, obviamente de maneira preliminar e respeitando os limites deste ensaio, delineando um campo de problemas e inquietações – teóricas, clínicas e políticas – que nos permita vislumbrar os alcances do que seria uma clínica das multidões de minorias e suas condições de possibilidade, mas também os limites dos modos atualmente correntes, ou hegemônicos, de fazer psicanálise. Farei isso por meio da referência a um grupo social marcado pelos dois sentidos que atribuímos inicialmente ao significante minoria: pessoas que vivem dissidências em relação à norma binária de gênero, experiências transidentitárias e que, já há algum tempo, vêm chamando a nossa atenção para os efeitos políticos de práticas e teorias referidas à psicanálise e interrogando, a partir daí, as condições da nossa escuta e os limites das nossas interpretações e elaborações teóricas.
As dissidências de gênero e a psicanálise
O encontro, ou confronto, com as dissidências de gênero – e com os movimentos políticos, sociais e teóricos que as acompanham, marcam hoje não apenas a reflexão clínico-teórica no campo psicanalítico, tanto no cenário francês, quanto anglo-saxão e latino-americano, mas a própria presença dos psicanalistas na cena pública em diferentes partes do globo, inclusive no Brasil.
Os debates em andamento, para além de muitas acusações mútuas, toca em pontos importantes que dizem respeito a uma série de temas que se revelam centrais a qualquer debate sobre a atualidade da psicanálise e sua potência para lidar com os processos contemporâneos de subjetivação e com as formas de sofrimento daí resultantes.
De modo que mesmo um rápido e brevíssimo inventário desses temas nos levaria a encarar questões bastante complexas e, hoje, decisivas, como: o vínculo da psicanálise com os dispositivos médico e jurídico de normalização dos corpos; o estatuto da teoria psicanalítica entre a consideração da experiência singular da clínica e o caráter pretensamente universal – ou, ao menos, generalizante – de suas formulações teóricas; o papel da diferença sexual nos processos de estruturação subjetiva e na sustentação da ordem simbólica que regula o laço social e sua limitação ou não a um modelo estritamente binário que, eventualmente, se desdobraria necessariamente em uma divisão e distribuição de gêneros e papeis sociais; o caráter normativo ou não da teoria e da clínica psicanalítica, em função, especialmente, de suas formulações em torno do Complexo de Édipo; a função e o estatuto da classificação psicodiagnóstica na clínica psicanalítica e nossa relação atual com categorias que foram, em sua maioria, herdadas da medicina do século dezenove; o lugar ocupado pelas questões identitárias no discurso – e demandas – de nossas e nossos pacientes; a posição social concreta dos psicanalistas em nossa sociedade, posição muitas vezes de poder, e nossa inserção em um prática fundamentalmente neoliberal, que dá muitas vezes testemunho de nossa sujeição ao racismo e machismo estruturais e estruturantes do nosso funcionamento social, em particular num Brasil tão fortemente marcado pela herança escravista e pela desigualdade, marginalização, ou simples banimento social, de tantas pessoas.
Dentre todos estes desafios clínicos e teóricos, considerando os limites deste ensaio, procurarei desenvolver minimamente a questão referente ao lugar e estatuto da classificação psicodiagnóstica, apontando, a partir daí, caminhos e desdobramentos possíveis para nossa interrogação inicial sobre as condições necessárias a uma escuta que permita com que as multidões e as minorias falem. É também em torno da psicopatologia e da discussão etiológica na clínica psicanalítica e sua relação com os objetivos do tratamento que nos aproximaremos da reflexão sobre o alcance e limites do que podemos descrever como uma antropogênese de matriz psicanalítica, ou seja, a demarcação das fronteiras do humano e sua vinculação a modos particulares de estruturação psíquica.
Sobre essa base, procurarei seduzi-los com a ideia de que uma clínica da multidão das minorias será aquela pensada, não como espaço de enfrentamento de uma disfunção dos processos de desenvolvimento psíquico ou de correção dos rumos e circunstâncias pelas quais nos tornamos humanos, mas como campo de experimentação ética onde novas formas de existência, singulares e contingentes, sejam produzidas e/ou legitimadas.
Para tanto, retomarei rapidamente alguns aspectos históricos da recepção das experiências dissidentes em relação à norma que regula as identidades de gênero2. História que, de alguma forma, nos dá pistas importantes de como se deu o gradativo silenciamento dessas experiências e de como refletir sobre as condições – ou, inversamente, os impedimentos – para que possamos escutar as pessoas que as vivem, e, portanto, do que será preciso fazer para que possamos escutá-las e, ao fazê-lo, nos interrogar sobre os objetivos da clínica, seus modos de operação e sua eventual possibilidade de fazer surgir a potência subjetiva e política das multidões e das minorias.
Em relação a este percurso histórico, um deslocamento fundamental quanto ao que podemos entender como dissidência de gênero se dá entre meados do século XX e a atual terceira década do século XXI. No primeiro polo dessa transição teríamos experiências estreitamente associadas à ideia de mudança de sexo e articuladas ao desenvolvimento gradativo das técnicas cirúrgicas que permitiriam a redefinição dos genitais e a construção médica de uma suposta identidade entre o sentimento de pertencer a um determinado gênero e a configuração anatômica dos órgãos sexuais. Experiências agrupadas na categoria de transexualidade e das quais o tipo-ideal é representado pela figura do dito transexual verdadeiro, descrito por Robert Stoller (1982), ainda na década de 1960, o qual, não podemos ignorar, será a matriz clínica de referência para grande parte do pensamento psicanalítico em torno da dita questão transexual. Renato Mezan (1988) propõe um modelo de história da psicanálise no qual as suas diferentes elaborações teóricas e práticas clínicas seriam derivadas – seguindo a mesma lógica da sobredeterminação presente no trabalho dos sonhos na qual múltiplas causas se articulam de concomitante – de três fontes: a matriz clínica, o ambiente cultural e uma leitura particular da obra freudiana. A noção de matriz clínica, se refere não apenas a uma suposta semiologia ou quadro sintomático, mas, sobretudo, ao discurso dos pacientes, suas queixas demandas e os conflitos que serão postos em jogo na situação transferencial que caracteriza o trabalho analítico.
No polo contemporâneo, o que temos, com a multiplicação das possibilidades de transgressão das normas que regulam da anatomia aos papéis sociais distribuídos entre as figuras do homem e da mulher, representada sobretudo pela multiplicação de expressões identitárias que não se reconhecem nem no campo do feminino nem do masculino, é a recusa da própria divisão binária dos gêneros e de sua necessária ancoragem em dois sexos, materializados pela oposição anatômica dos genitais: presente em não-bináries, pans, travestis, dentre outras nomeações que compõem hoje a sigla LGBTTQIAP+, sempre em expansão.
Tal recusa traz ainda consigo a implosão da própria ideia de conformidade sexual, aquela que seria eventualmente realizada pela cirurgia de transgenitalização e certamente vai muito além do imaginário social construído em torno da ideia de mudança de sexo, pois já não se trata, ao menos majoritariamente, de mudar de sexo, mas de habitar entre os sexos ou fora deles.
Esse deslocamento e o surgimento de novas matrizes clínicas, novas queixas e demandas, geralmente estruturadas em torno da questão do reconhecimento subjetivo e social não parecem ter sido acompanhados ou sequer percebidos pela grande maioria dos psicanalistas, de modo que a referência maior às suas interpretações das dissidências de gênero continuam referidas ao quadro clínico descrito por Stoller (1982) e explorado por Lacan em associação com a psicose e o mecanismo da foraclusão (Guerovici, 2019). Assim, as explicações psicanalíticas do que hoje recebe, na classificação internacional de doenças da OMS, o nome de incongruência de gênero, não apenas guardaram para si a categoria de transexual, de origem médico-psiquiátrica, mas privilegiaram a associação entre transexualidade e psicose.
Como resume Simone Perelson:
“No contexto da psicanálise lacaniana, o transexualismo é majoritariamente considerado uma psicose. Como sabemos, Lacan, ao comentar o caso Schreber (1958), sustenta que seu delírio de se transformar em mulher seria decorrente da foraclusão do Nome-do- Pai. Schreber, desprovido do significante fálico se vê impossibilitado de se situar na partilha dos sexos como um homem ou uma mulher e, identificando-se imaginariamente ao falo da mãe, é conduzido pelo que Lacan definirá posteriormente (1972) como o empuxo à Mulher, o qual se define justamente em oposição à identificação a uma mulher: trata- se aqui do delírio de se tornar A Mulher, a mulher enquanto essência do feminino, a mulher enquanto totalidade, enfim a Mulher que, sustenta Lacan, não existe. (Perelson, 2011, p. 12).“
As tentativas de enquadramento das experiências transidentitárias não se resumiram, no entanto, à referência à psicose – ou, em sua vizinhança, ao narcisismo e estados limites, como propõe Collete-Chiland (2005). Face ao fato inegável da multiplicação de pessoas que se declaram trans e da impossibilidade de situá-las todas no registro da foraclusão do nome- do-pai, outras hipóteses foram levantadas.
Assim, ao lado da referência à psicose surge com frequência a categoria de perversão, a qual não é sem interesse para este debate, em função da maneira como coloca em primeiro plano a questão moral e, mais do que isso, nos remete ao tema delicado da própria definição do humano e de suas fronteiras. Nesse sentido, Henry Frignet (2002) propôs a distinção entre os transexuais, de estrutura psicótica, e transsexualistas, que dariam testemunho de certo funcionamento social perverso, marcado pela recusa à castração e por uma aspiração onipotente ao impossível.
Mais recentemente, e com interesse especial para nós, porque vinculadas a autores brasileiros, temos duas tentativas diagnósticas
relativas, especificamente, aos homens trans, de um lado, e às mulheres trans, de outro. No primeiro caso, se trataria simplesmente de casos clássicos de histeria, de caráter, aliás, epidêmico, como se passou nos séculos XVIII e XIX (Jorge & Travassos, 2017). No segundo caso, a etiologia da transexualidade se vincularia, em muitos indivíduos, a uma recusa inconsciente da própria homossexualidade e à afirmação reativa da norma heterossexual a partir da transformação anatômica que restabeleceria a heterossexualidade, modificando os genitais (Jorge & Travassos, 2018).
Tais hipóteses diagnósticas, aplicadas àqueles que vivem uma dissidência em relação à norma binária de gênero, aparecem ainda em associação com um diagnóstico aplicado à própria cultura e às modalidades contemporâneas de laço social. As/os trans e não-bináries, seriam assim adeptos de modalidades de gozo tributárias de uma crise de legitimidade, consequência do declínio da função paterna, estando submetidos ao discurso do capitalista e sendo marcados por um individualismo próprio ao mundo neoliberal (Lebrun, 2021; 2008).
Um dado importante é que a referência à psicose e à perversão apontam para a aproximação entre a multiplicação de experiências trans e certa perturbação da ordem simbólica, regulada pela metáfora paterna e pela diferença dos sexos, o que faz destas invariantes antropológicas, que poderíamos associar a uma espécie de antropogêse, do modo de constituição do próprio humano, no que teria de específico, diferenciando-o do animal e indicando as base necessárias da vida em sociedade, e que seria descrita em relação direta com certa passagem adequada pelo Complexo de Édipo, fazendo deste um elemento – universal – decisivo não apenas para os processos de constituição subjetiva, mas para própria produção e demarcação do que seria o propriamente humano. Por isso, muitas vezes a resposta psicanalítica às experiências e discursos dissidentes virá na forma de admoestação contra os riscos postos à ordem simbólica, a genealogia, a diferença de gerações, ao próprio pacto civilizatório que regula a vida em sociedade e, por fim, à própria humanidade (Cunha, 2016, 2011; Lippi & Maniglier, 2021)
Em relação a essa demarcação das fronteiras da humanidade, a qual acaba evidenciando laços entre o modo como a psicanálise procurou dar conta das transgressões da norma binária de gênero e a leitura hegemônica do perverso como alguém que perverte a própria ideia de humano, a problemática é de certo modo levantada por Patricia Porchat (2014) em seu mapeamento do diálogo entre Judith Butler e a psicanálise: “Para incluir os gêneros não-inteligíveis, e entre eles os/as transexuais, na categoria de ‘humanos’, Butler acredita ser necessário questionar o conceito de simbólico de Lacan.” (Porchat, 2014, p. 136)
O interessante aqui é perceber como essa espécie de ameaça à humanidade, que a “epidemia” e a “propaganda” trans representariam, pode ser descrita, sobretudo em certos teóricos que transitam em torno de um campo definido como aquele das utopias queer, a exemplo de Paul B. Preciado (2018, 2015), Jack Halberstan (2020) e Lee Edelman, como estratégia ético-política de interrogação dos limites atualmente estabelecidos para o humano e para nossos modos de individuação e de estabelecimento de laços afetivos e sociais. Não por acaso, o manifesto de Preciado dirigido a nós, psicanalistas, se intitula: eu sou um monstro que vos fala (Preciado, 2020).
Impasses do modelo diagnóstico-etiológico
Retomando, então, a questão psicodiagnóstica, gostaria, a seguir, de apresentar alguns impactos da adoção de uma nosografia herdada da psiquiatria do século XIX como grade de inteligibilidade que pretende dar conta de fenômenos bastante recentes e talvez ainda em gestação e em relação às quais a suposição de uma disfunção ou mesmo de um sofrimento que lhes seria intrínseco talvez não seja nada mais que um perigoso efeito contratransferencial, ou, menos que isso, puro e simples preconceito. Pois, além de questões teóricas, epistemológicas ou mesmo ético-políticas, outra ordem de problemas surge em nosso horizonte quando refletimos sobre os impasses produzidos no encontro entra a psicanálise e as transidentidades que são, na verdade, de uma banalidade chocante. Refiro-me, por exemplo, ao fato de que muitos das/dos psicanalistas que hoje discutem questões de gênero parecem aprisionados não apenas em uma bolha de moralidade pequeno burguesa, mas em um território socioeconômico inacessível a travestis, homens e mulheres trans ou não-bináries.
Destacarei três desses efeitos, considerando, evidentemente, a necessária articulação entre eles: em primeiro lugar a vinculação da psicanálise ao dispositivo médico terapêutico e sua associação a uma apropriação das experiências transidentitárias fundada na pretensão de corrigir uma suposta disfunção e na sustentação de uma conformidade qualquer. Ainda que, enquanto a medicina pareça procurar corrigir o corpo para sustentar a autopercepção subjetiva, a psicanálise, em sentido contrário, recuse a modificação corporal para insistir em um trabalho psíquico que possa transformar a verdade que o sujeito enuncia sobre si mesmo e sobre sua experiência corporal.
Nesse sentido, a inscrição no dispositivo médico-terapêutico se articula à ocupação de um lugar de poder, muito claramente representada pela figura do especialista, capaz de decifrar a experiência vivida pelo sujeito, materializada em seu corpo ou seu discurso, e enunciar, a partir daí uma verdade, diante da qual ao sujeito não cabe outra coisa senão a aceitação ou sujeição. Neste contexto, fica difícil diferenciar o psicanalista do psiquiatra, pois ambos se apresentariam como mestres da verdade, capazes não apenas de estabelecer o que de fato pertence à realidade – e o que, por outro lado, deve ser inscrito no registro do erro e da ilusão – o que, no caso do médico, se faz de modo radical, pois este afirma-se capaz de produzir uma nova realidade, modificando o corpo para adequá-lo à lógica binária da conformidade entre identidade de gênero e genital.
Quanto aos sentidos e objetivos da escuta das pessoas trans, estes ficam ainda submetidos ao modelo diagnóstico/tratamento/prognóstico, inscrevendo, portanto, uma certa expectativa em relação ao trabalho clínico, bem como indicando como horizonte o restabelecimento de um destino esperado para o sujeito e suas escolhas. Difícil imaginar tal horizonte, sem referência a uma suposta norma, ainda que esta não seja explicitada.
[…] Ainda que o digam diferentemente, ligam essas posições com a neurose, que, em termos psicanalíticos, é quase o mesmo que falar em grau de saúde mental, ou, senão, entrar no campo da psicopatologia, no qual incluem, a priori, as existências trans e travestis. Então como se alcançam ou não as masculinidades e as feminilidades como ‘devem ser’, é um dos indicadores de psicopatologia ainda hoje. Ninguém o diria explicitamente, mas as coisas são assim. Há um a priori de psicopatologização fenomenológica em relação à diversidade sexual e à diversidade de identidade que não se traduz em correlato metapsicológico. Fica-se mais próximo da psiquiatria que da psicanálise. Outros núcleos duros da psicanálise, e que ainda que não se o diga explicitamente, consideram a heterossexualidade como a sexualidade ‘maior’ e desejável. Fala-se numa psicossexualidade mais ampla, mas, na realidade, é heteronormativa. (Tajer, 2018, p. 184).
Com isso, nos aproximamos de um segundo efeito da insistência no privilégio dado à classificação diagnóstica e, sobretudo, sua instalação como condição prévia à escuta e à compreensão das vivências trans. Refiro-me, sobretudo, à desqualificação produzida pela associação entre essas vivências e os domínios da patologia, do erro, disfunção e desrazão. Esta é particularmente visível como consequência da assimilação entre as pessoas trans e a psicose ou a perversão, duas categorias difíceis de serem descoladas de uma dimensão moral e dos seus respectivos sentidos ordinários, de loucura e maldade. O diagnóstico pode converter-se rapidamente em uma forma de injúria (Ayouch, 2015) de modo que, ao mesmo tempo em que se instala na posição de mestre, único capaz de perceber o que há de verdade naquilo que escuta, ou vê, o analista silencia o sujeito que se apresenta diante dele, situando-o no registro do erro e tomando-o como incapaz, não apenas de enunciar a verdade sobre si mesmo, mas de reconhecer a verdadeira realidade que se apresenta à sua volta ou em seu próprio corpo.
Assim, como aponta Butler (2009), o diagnóstico que permite ao sujeito ser acolhido na rede pública de saúde, ter acesso a direitos ou mesmo ser percebido como cidadão, funciona simultaneamente como estigma e o coloca numa posição de precariedade, retirando-lhe sua autonomia, que é transferida para o especialista que dele se ocupa.
O impacto mais nocivo, no entanto, da classificação diagnóstica, é o seu desdobramento em uma etiologia: a busca de uma falha, impossibilidade ou perturbação do processo de desenvolvimento psíquico – ou de constituição subjetiva. Tal busca não apenas ratifica uma perspectiva desenvolvimentista ou normativa do desenvolvimento subjetivo, na medida em que aponta para um ideal que supostamente deveria ter sido alcançado ou para um modelo a ser seguido, mas opera uma uniformização de experiências múltiplas e diversas, ao referi-las todas a uma causa ou estrutura comum, apagando assim suas, quase infinitas, diferenças.
Nessa direção, o efeito mais delicado diz respeito precisamente ao objeto específico da nossa discussão: o estabelecimento de condições de escuta que façam com o que trabalho clínico dê espaço à produção de experiências singulares em toda a sua potência.
Refiro-me aqui a dois elementos – e mutuamente implicados – do trabalho propriamente psicanalítico, centrais à elaboração teórica de Freud ao longo de toda a sua obra, e que de alguma forma, ainda que enunciados de maneiras distintas, estão mais ou menos presentes em qualquer descrição dos objetivos de uma análise, independente da perspectiva teórica: a recuperação e ressignificação da história vivida e a realização de um trabalho de memória, entre rememoração e esquecimento, que permita uma nova gestão da economia pulsional e a abertura de novas possibilidades existenciais.
Na escuta de dissidentes de gênero, tal trabalho de memória ocupa lugar central e todo futuro só se faz possível a partir de um trabalho de memória e de reconstrução da história de vida passada. Uma história muitas vezes marcada pela recusa do outro em testemunhar um posicionamento frente ao gênero que, vital para o sujeito, não encontra lugar em seu ambiente nem é reconhecido pelo meio social (Cunha, 2021a). Para pessoas, por exemplo, que viveram grande parte da sua vida alocadas em um gênero determinado, e referidas a papéis sociais específicos – nos quais, aliás, não se reconheciam – e que agora habitam outros territórios existenciais, é fundamental a possibilidade de reinvenção deste passado e a sua construção, por meio de esquecimentos e rememorações muitas vezes estratégias, de modo que o presente ganhe sentido e um futuro seja possível.
Todo esse trabalho de reinvenção subjetiva é inevitavelmente obstacularizado por uma escuta que guarda consigo a suposição prévia de uma etiologia, que necessariamente precisa tomar a forma de histórias individuais semelhantes, e faz supor ou valorizar determinados acontecimentos e experiências que não necessariamente terão o mesmo valor, função, ou mesmo existência, em todos os casos. Ou seja, no lugar da necessária construção de uma história singular, oferecemos aos sujeitos uma memória genérica referida a um acidente, trauma, disfunção ou particularidade potencialmente patogênica.
Mais uma vez, temos o silenciamento de experiências singulares por meio da uniformização e apagamento das diferenças, pois aqui a generalização que, por meio do diagnóstico, supões caracteres estruturais ou constitutivos comuns a experiências diversas, se desdobra na suposição de uma história também comum; enquanto o que testemunhamos ao escutar pessoas trans, é, ao contrário a busca por uma história singular e, mais do que isso, em contínua reconstrução, pois se materializa em uma identidade instável e em um corpo que não faz uma transição, mas que existe em trânsito. Como afirma uma pessoa trans: “eu não estou em transição, eu sou em transição.”
Da psicopatologia à política: A clínica como campo de experimentação ética
A saída para este impasse, acredito, está no abandono estratégico e urgente da matriz diagnóstico-etiológica e penso que a melhor alternativa disponível seria a adoção de uma perspectiva ético-política das experiências transidentitárias, o que não implica necessariamente o abandono de uma visada clínica.
Como procurei demonstrar em outro lugar (Cunha, 2021a), encontramos um modo possível de operar tal deslocamento na retomada da noção de patoanálise, proposta originalmente por Leopold Szondi e recentemente revisitada por Phillpe Van Haute e Thomas Geyskens (2016), em uma discussão sobre o estatuto contemporâneo das formulações em torno do Complexo de Édipo e de sua centralidade nos processos de estruturação subjetiva. Tal noção procura descrever uma perspectiva de entendimento do sofrimento psíquico não como disfunção em relação a um processo de desenvolvimento psíquico passível de ser associado a uma norma ou ideal, mas como exacerbação de elementos psíquicos articulados a pontos críticos dos processos de constituição comuns a todos nós.
Em termos muito breves, Van Haute e Geyskens (2016) partem da metáfora do cristal partido, trazida por Freud, e, considerando as
diversas leituras da neurose, sobretudo da histeria, em Freud e Lacan, nos propõem tomar as formas de sofrimento psíquico não como perturbações do desenvolvimento, o que faria sopor uma norma ou meta a ser alcançada, mas sim como exacerbações de conflitos próprios a processos de estruturação subjetiva comuns e que de alguma forma estariam presentes em cada indivíduo como predisposições, tal como suposto por Freud com a hipótese de uma bissexualidade constitutiva.
Se pensarmos, seguindo essa trilha, que tantos os processos de estruturação subjetiva – diretamente associados a processos de socialização, como nos mostra a própria hipótese do Complexo de Édipo – quanto os conflitos que os marcam, são social e historicamente situados, vinculando-se, portanto, ao ambiente cultural habitado pelo sujeito, podemos considerar que o há de singular nas experiências transidentitárias contemporâneas, fazendo-as ocupar lugar destaque não apenas nos debates psicanalíticos, mas na cena política global e nos mais diversos âmbitos da sociedade e da cultura, é que elas tornam visíveis e audíveis, em seus corpos e discursos, elementos decisivos dos processos contemporâneos de subjetivação, tais como nossa inscrição no registro da biopolítica, a submissão à racionalidade identitária e a subversão dos limites entre o público e o privado, hoje marcada pela sobreposição da esfera da vida íntima e pela sua promoção a elemento central da cena cultural e do debate político (Cunha, 2021a; 2021b).
Uma leitura clínico-política das transidentidades implicaria, então, tomar o espaço analítico não como oportunidade para correção de eventuais acidentes no percurso individual de desenvolvimento psíquico – ou estruturação subjetiva –, mas sim como espaço de enfrentamento desses aspectos centrais dos processos de subjetivação próprios a nosso tempo e lugar.
Por outro lado, ao tomarmos em consideração as formulações de autores do pensamento queer, como Paul B. Preciado, quando afirma estar em jogo, com o abandono da epistemologia da diferença sexual, a abertura para a produção de novas formas de ser e para a transformação dos modos como entendemos e definimos o que constitui o humano, podemos pensar então nesta clínica fundada em uma leitura patoanalítica como campo de experimentação ética para a produção e legitimação de novos modos de existência, os quais dariam ainda lugar a novas maneiras de vivermos juntos, ou seja, novas modalidades de laço social, referidas talvez à potência da multidão e das minorias.
Para concluir, gostaria de apresentar-lhes algumas ferramentas extremamente úteis ao desenvolvimento desta tarefa, as quais podem ser encontradas no pensamento de Michel Foucault, a partir mesmo da crítica à psicanálise desenvolvida pelo filósofo francês a partir dos anos 1970 (Foucault, 2015a) e também em suas reflexões sobre as relações entre poder, governo, ética e subjetivação que marcaram as suas pesquisas sobre, de um lado, o poder pastoral e sua deriva neoliberal e, do outro, os exercícios ascéticos que marcaram na antiguidade o cuidado de si e constituíram práticas importantes de autoformação e autogoverno (Cunha, 2022).
Pois quando propomos, portanto, a utilização da patoanálise como ferramenta teórica para compreender a posição singular que as experiências transidentitárias ocupam não apenas em nossa clínica, mas na sociedade contemporânea, penso que acabamos recorrendo implicitamente à estratégia metodológica sustentada por Foucault, segundo a qual não devemos tomar em consideração um sujeito universal, a-histórico ou de tons transcendentais (Foucault, 2015b), mas interrogar subjetividades historicamente situadas e investigar os modos pelas quais tais subjetividades se constituem entre dispositivos de sujeição e práticas de liberdade.
Da mesma forma, ao considerar a clínica psicanalítica como campo de experimentação ética, imaginamos que valeria à pena nos aproximarmos da noção foucaultiana de atitude crítica e de uma ontologia do presente, retiradas de sua leitura do famoso texto de Kant sobre o iluminismo (Foucault, 1994a; 1994b). Tal atitude crítica, segundo Foucault, se centraria numa interrogação sobre “quem somos hoje” e ganharia sentido como resistência a tecnologias de governo e estratégias de dominação, estruturando-se em torno da pergunta: como não ser governado ou não ser tão governado ou não ser governado desta ou daquela forma (Foucault, 2015b).
É tal atitude crítica que permitirá, acredito, fazer valer a potência da multidão que, ao mesmo tempo que resiste à uniformização e à segregação promovida pela distribuição em territórios de pertencimento identitário, cria as condições para que algo da ordem do comum se engendre a partir do encontro de existências minoritárias e menorizadas. Tal potência surgirá efetivamente à medida em que possamos criar espaços abertos para a experimentação ética de novas formas de existências, espaços nos quais o subalterno possa, enfim, falar e nós possamos, afinal, escutá-los, mesmo que para isso seja preciso reconhecer que, em muitos momentos, não somos capazes de saber do que falam. Só isso poderá fazer com que a psicanálise se afaste dos dispositivos de poder e sujeição e se afirme como prática de liberdade e como força política de transformação, não apenas de existências individuais, mas, também e sobretudo, dos próprios modos de vivermos juntos.
Concluímos esperando, com este percurso, ter indicado alguns dos desafios teóricos, éticos e políticos postos hoje à psicanálise, a partir da proposta fundamentalmente política de inscrição dos termos multidão e minorias no horizonte ético da psicanálise e da consideração das condições de escuta das transformações subjetivas nos campos do gênero e da sexualidade que têm nos desafiado já há algumas décadas – conte- se, por exemplo, a publicação, ainda na década de 1980, de Gender in trouble, obra fundamental de Judith Butler (2003).
Tais desafios tocam em muitos aspectos, dentre os quais pontos sensíveis como o lugar social do analista e as múltiplas dimensões políticas da psicanálise, suas práticas e posicionamentos na sociedade, daquelas que dizem respeito ao lugar da politica em nossa própria prática clínica aos posicionamentos que assumimos na sociedade e no debate público.
Aqui, privilegiamos a consideração do lugar e estatuto no pensamento e na prática psicanalíticas daquilo que denominamos matriz diagnóstico- etiológica. Procuramos mostrar, ainda que brevemente, como a referência prioritária à classificação psicopatológica e à busca etiológica, limitou a nossa compreensão das experiências de dissidência em relação à norma binária de gênero, nos fazendo supor uma uniformidade em experiências que, além de novas, são múltiplas, diversas e singulares, e acabando por produzir o silenciamento das pessoas que vivem tais experiências e as afastando da psicanálise.
Evidentemente o quadro descrito não é exaustivo, nem pretendemos em nenhum momento esgotar a discussão relativa aos temas levantados. Esperamos, contudo, ter podido enumerar questões teóricas e desafios clínicos importantes, bem como indicar o horizonte ético-político na direção do qual, acredito, devemos nos mover.
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Notas
1. Este artigo retoma os argumentos apresentados no I Congresso Internacional de Transversalidades entre Filosofia, Psicanálise, Clínicas e Práticas Sociais, em articulação com os resultados do projeto de pesquisa O dispositivo psicanalítico e a escuta das transidentidades e com as reflexões produzidas pelo trabalho conduzido na ação de extensão Roda de escuta LGBTQIAP+, ambos desenvolvidos na Universidade Federal de Sergipe.
2. Para uma consideração mais cuidadosa das formulações psicanalíticas a propósito das transidentidades, ver: Cunha, E. L. (2021a). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, disponível aqui no nosso site.