A militância é alegre porque a revolução é agora, Verónica Gago entrevista Silvia Federici

Silvia Federici (Parma, Itália, 1942), autora do livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva (Elefante, 2019), aponta os crescentes ataques contra a reprodução da vida, o aumento brutal da exploração e a expropriação da terra, da água e do tempo. Ela fala sobre o fascismo econômico que se esconde no confronto entre blocos políticos e sobre a importância da alegria na luta feminista. A entrevista é de Verónica Gago, publicada originalmente pela revista mexicana Ojalá e reproduzida por Ctxt, 03-04-2023. A tradução é do Cepat.

Para pensadora italiana, mulheres latino-americanas e negras tornaram a força dos vínculos uma estratégia de luta e lograram massificar e radicalizar o movimento. Isso será essencial para combater o capitalismo em fase extremista.

Nos últimos anos assistimos a um período de mobilização, protesto e expansão exponencial dos feminismos. Como podemos ler esse “crescimento político”? É essa a expressão que melhor descreve o que está acontecendo? Em relação a quais eixos e problemas podemos pensar essa efervescência?

Bom, penso que quando falamos de crescimento político não falamos do movimento feminista em geral. Esse crescimento não é algo visível em todos os lugares. O que aconteceu e está acontecendo na América Latina é especialmente importante. Penso que o impacto das políticas do feminismo popular – o que chamamos de feminismo popular – é tão forte que teve impacto também em outros movimentos em outros lugares, como na Europa, por exemplo.

Houve um crescimento de consciência que se reflete nos discursos e estratégias que os movimentos tentam alcançar. São desafios que não podem ser alcançados a menos que vivamos um processo verdadeiramente amplo de mudança social. Um dos primeiros elementos é o anticapitalismo, que esteve em segundo plano durante boa parte da história do movimento feminista. Mas, hoje, o anticapitalismo está cada vez mais em primeiro plano. Muitas das lutas que vimos nos últimos anos foram dirigidas diretamente ao mundo empresarial, particularmente as lutas contra a privatização da terra e contra a expulsão de milhões de pessoas de seus territórios.

A imposição de programas de ajuste estrutural criou austeridade e empobrecimento em massa, bem como devastação ecológica. O movimento feminista assumiu algumas das questões fundamentais que qualquer movimento deve enfrentar para criar outro tipo de sociedade, incluindo o grande problema dos cercamentos capitalistas da vida.

Hoje o feminismo não se limita apenas a mudanças nas condições das mulheres. As feministas têm algo a dizer sobre absolutamente tudo, sobre todos os aspectos da vida. Vimos perspectivas feministas sobre a dívida, sobre a ecologia, sobre o sistema de justiça – o sistema de injustiça – nos Estados Unidos.

Vimos a formação de um movimento feminista abolicionista que lutou contra o encarceramento e pela retirada do financiamento da polícia (defund the police). Além disso, o feminismo dá cada vez mais importância à luta contra a colonialidade, contra o sistema, e ao papel das feministas negras e das feministas anticoloniais.

Tenho pensado na combinação entre massificação e radicalidade como uma característica deste ciclo de feminismo. Como podemos pensar em ciclos e ritmos diferentes, em momentos em que a massividade não é tão forte? Não sei se não deveríamos falar de momentos de retaguarda ativa ou se não deveríamos pensar numa outra geometria de movimentos e forças. Também gosto de pensar nas diferentes formas do massivo que nem sempre são públicas.

Acredito que há pelo menos três tarefas interligadas que um movimento feminista deve enfrentar hoje, e quero falar sobre cada uma delas.

A primeira consiste em estabelecer uma visão de para onde estamos indo, que tipo de sociedade queremos construir. Obviamente, nosso imaginário coletivo ainda é muito limitado por todo o capitalismo que internalizamos e pelo tipo de sociedade em que vivemos. É preciso experimentar.

Em segundo lugar, há a importância de construir estratégias. Uma vez que temos uma ideia, em seguida se coloca a questão da estratégia. Uma estratégia implica entender e construir debates, pesquisas e outras formas de entender para onde o capitalismo está indo. O que o capital está planejamento? Qual é o ponto mais fraco do capitalismo? Qual é o terreno mais crucial para unificar o movimento, onde possamos superar a forma como fomos divididas?

E terceiro: de quais ferramentas precisamos? De projetos de mídia, filmes ou documentários… Como construímos essa rede? Como construímos um terreno comum? Os momentos em que o movimento não está nas ruas ou não enfrenta diretamente o Estado e o capital são momentos de construção. Esta é uma questão estratégica fundamental. A luta não pode ser apenas de oposição; tem que ser propositiva e construtiva. Essa positividade, essa construção, é o campo da experimentação.

Pode falar um pouco mais sobre essa experimentação?

Nossas atividades reprodutivas nos permitem reproduzir a luta naqueles momentos em que não estamos presentes nas ruas de forma massiva. O fazer comum é uma condição para a reprodução de uma luta. Na verdade, é uma forma de medir nosso sucesso, de medir nosso poder feminista. Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução do nosso poder de luta? De certa forma, essa é a medida do quanto estamos conseguindo em nosso crescimento. Penso que, nesses momentos em que não há tanta mobilização nas ruas, há muito trabalho invisível. O trabalho de construir conexões e fortalecer as relações afetivas entre as pessoas.

Como você caracteriza a rejeição ao feminismo neste momento de neoliberalismo extremo? E quais são as diferenças entre hoje e as represálias às lutas feministas dos anos 1970?

Existem diferenças importantes. Evidentemente, há também semelhanças, mas talvez a principal diferença seja que, na década de 1970, tínhamos que lutar não apenas contra a direita, mas também contra a esquerda. Demorou muito até que os homens da esquerda começassem a mostrar um pingo de respeito ou a admitir que poderiam ter algo a aprender com o movimento feminista. Algumas das primeiras respostas [de nossos companheiros de luta] foram escandalosas. Na década de 1960, as mulheres eram passíveis de receberem assobios, e a resposta foi muitas vezes muito hostil. Isso mudou.

Hoje, a resposta da direita é quase mais violenta porque houve um longuíssimo processo da direita neste país, os Estados Unidos. Houve um processo de fascistização muito complicado. Penso que o movimento feminista precisa olhar para esse processo com muito mais cuidado do que temos feito até agora.

Em que sentido você usa fascistização?

Há uma espécie de concepção congelada do que é a direita. Produzimos esquemas tomados do período fascista, do período nazista, etc., onde há uma ala de direita e depois há uma ala de centro. Hoje isso é muito mais complicado e as duas alas estão muito mais entrelaçadas do que pode parecer. Houve uma fascistização da economia. A fascistização é uma estratégia e uma política que dá cada vez mais poder ao capital. Reduz o investimento na reprodução e nos espaços de poder da classe trabalhadora e cria novas divisões e mais profundas entre as pessoas em torno das linhas de classe e raça.

A ideia de dois blocos, o centro (ou esquerda) e a direita, dos democratas e republicanos, por assim dizer, pode ser muito enganosa. Em todos os países está ocorrendo uma fascistização geral e devemos vê-la como algo que é contínua e inseparavelmente produzido pelas políticas econômicas.

Essa ideia de fascistização das economias lança luz sobre as violências cotidianas. Ao mesmo tempo, você fala em militância alegre, mas isso não significa que as condições para se organizar sejam fáceis.

A militância alegre é outra forma de dizer que a revolução é agora. Chega dessa ideia da revolução que acontecerá no futuro, para que um dia os filhos dos meus filhos vivam melhor. Não. A revolução é agora. Nós temos uma vida. Cada dia é precioso. Não podemos pensar na revolução no futuro. Se lutamos é porque a vida que temos é insuportável e dolorosa. A luta não pode aumentar nossa dor. Tem que melhorar a nossa vida.

Temos que descobrir o que significa fazer algo positivo. A primeira coisa que quer dizer é sair do isolamento. Lutar significa conectar-se com outras pessoas, não ter que enfrentar sozinha o sistema, a dor e o sofrimento em sua vida. Significa sentir que você tem alguma proteção. Existe a ideia de gerar uma nova afetividade emocional que vai além da asfixia e da solidão do núcleo familiar. Adquirir novos conhecimentos, adquirir novos amantes, não apenas no sentido sexual, mas em pessoas de quem você gosta e que lhe dão força. Isso se torna um tecido que permite se conectar com outras pessoas. Essa é a revolução, e se você não tem isso, não faz sentido lutar.

Acredito que podemos dizer que uma das principais questões do movimento é a questão do trabalho, e principalmente do trabalho reprodutivo, que foi possível pela prática coletiva da greve feminista. Você mencionou a recente greve das enfermeiras em Nova York e sua vitória! Um debate também está surgindo em torno da palavra ‘cuidado’. Pode nos explicar um pouco mais o que isso significa? O que pensa sobre a questão do trabalho no movimento feminista?

A luta das enfermeiras tem sido emblemática. É uma luta especialmente importante porque é uma luta que se dá sobre o terreno da reprodução, que tradicionalmente tem sido visto pelo movimento revolucionário como um terreno no qual não é possível construir o poder anticapitalista. Esta luta tem encontrado grandes obstáculos devido à chantagem que se tem feito contra as enfermeiras, que é também a chantagem contra todas as mulheres que trabalham no lar. A chantagem consiste na ideia de que, se você parar de fazer o seu trabalho, vai prejudicar as pessoas mais próximas ou vai prejudicar os seus dependentes. Esta tem sido uma ferramenta muito poderosa para acabar com a luta das mulheres em casa e das enfermeiras nos hospitais.

E as enfermeiras conseguiram romper com isso, recusaram-se a ser chantageadas. Elas pararam de trabalhar e exigiram melhores condições de trabalho. Ao aumentar as horas de trabalho e reduzir a remuneração, os empregadores criaram uma situação em que toda a força de trabalho está esgotada e com maior probabilidade de não poder prestar os serviços necessários. Desmistificar isso faz parte do trabalho que estamos tentando fazer na campanha ‘Salários para o Trabalho Doméstico’. O trabalho que as mulheres fazem beneficia sobretudo os empregadores. Recusar-se a fazer esse trabalho e rejeitar as condições que nos são impostas é uma forma de limitar a reprodução das pessoas como trabalhadores exploráveis.

Quero acrescentar que a luta das enfermeiras não é a única luta. A nível internacional assistimos há anos, especialmente na Espanha, à construção do movimento das trabalhadoras domésticas, das trabalhadoras do lar. É um movimento internacional altamente organizado. Muitas delas são imigrantes e lutam em condições especialmente precárias. Aquelas que vivem com uma família (trabalhando como internas), cuja liberdade é muito limitada, experimentam uma exploração sem fim.

Mesmo assim, seus movimentos estão se expandindo e conseguiram mudanças nas leis internacionais, como a famosa Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, que basicamente diz que as trabalhadoras domésticas têm direito aos mesmos benefícios de qualquer outro trabalhador, como jornada regular de trabalho com direito a aposentadoria, férias e assim por diante. Esta é a mão de obra de mulheres que estão sendo exploradas e que, ao mesmo tempo, conseguiram construir um movimento e transformar sua exploração em poder.

Precisamos ainda de uma melhor análise da genealogia do conceito de trabalho de cuidados. É um conceito que nunca usamos na década de 1970. Muitas organizações de trabalhadoras domésticas o usaram para mostrar que o trabalho que realizam – especialmente com crianças – não é apenas trabalho físico, mas que tem implicações mais amplas. Há um debate aqui.

Uma das contribuições mais importantes nos Estados Unidos é a da feminista negra Premilla Nadasen, que escreveu uma crítica ao conceito de trabalho de cuidados. Ela argumenta que o uso do termo trabalho de cuidados em relação ao trabalho das empregadas domésticas minimiza os direitos trabalhistas das mulheres. Existe uma visão de que deveriam ter direitos e não ser tão exploradas porque fazem um trabalho de cuidados e não porque são trabalhadoras e têm direitos trabalhistas. E isso coloca um novo fardo sobre as mulheres trabalhadoras. Não basta que essas mulheres façam o trabalho, mas também se espera que trabalhem com uma disposição emocional particular.

Nadasen argumenta que esse é um uso indevido do conceito de cuidado e que precisamos ter cuidado ao usar esse termo. Ela fez muitos trabalhos sobre a história das trabalhadoras domésticas nos Estados Unidos, especialmente trabalhadoras domésticas negras. Falar delas como cuidadoras significa que são mulheres que só serão reconhecidas porque estão apegadas emocionalmente às pessoas para quem trabalham.

Penso que no mundo pós-Covid-19, a crise das mulheres que fazem trabalho reprodutivo, tanto doméstico como em instituições – como as enfermeiras que arriscam suas vidas no trabalho –, tornou-se mais visível. Agora, muitas delas entram em greve porque estão indignadas com o que viram e como foram tratadas, e como as pessoas foram tratadas nos hospitais.

Outro tema central é a questão da justiça e da justiça reprodutiva. É importante abordar a questão da reação negativa ao feminismo e como se relaciona com a ideia do punitivismo. Como as reivindicações do movimento feminista por justiça podem evitar contribuir para a disseminação de “soluções” baseadas na punição?

A questão da justiça reprodutiva é muito, muito importante. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte derrubou o precedente legal Roe v. Wade, mas este é o último ato de um processo muito longo que tem muitos elementos, muitos episódios e muitas etapas: o assassinato de médicos que fazem abortos, a introdução de Estado após Estado de leis que restringem o direito ao aborto… Mesmo antes da intervenção da Suprema Corte, em muitos lugares o aborto já era inexistente. Foi criado um movimento que tem perseguido as mulheres que buscam abortar, com pessoas que vão às portas das clínicas gritando: “assassinato! assassinato! assassinato!”.

A questão do aborto na história do capitalismo está ligada à questão da reprodução da força de trabalho. O Estado atribui a si o direito de controlar o processo de procriação, a fim de obrigar as mulheres a se reproduzirem e garantirem um número adequado de trabalhadores. Nos últimos anos, também vimos outro aspecto disso. Hoje temos uma classe capitalista internacional que tem à sua disposição muito mais trabalhadores do que, por exemplo, no século XVI, porque muitíssimos foram expulsos de suas terras, desencadeando movimentos migratórios em massa.

Hoje há uma força de trabalho muito maior. E assim vemos também outra função do aborto e do controle estatal da procriação dos corpos das mulheres, do comportamento das mulheres, que tem a ver com a questão da dissidência sexual. Negar o aborto implica disciplinar os corpos e a sexualidade das mulheres. É um poder que é dado aos homens. Os homens se tornam policiais dos corpos das mulheres.

Por outro lado, não podemos lutar efetivamente pelo aborto se não lutarmos também pelo direito das mulheres de ter filhos. Nos Estados Unidos, vimos que a negação da maternidade tem sido tão poderosa quanto a negação do aborto, especialmente para as mulheres negras, a quem, desde a escravidão até hoje, se negou a maternidade. Hoje, para uma mulher negra, principalmente uma mulher negra pobre, engravidar é um risco. Ela corre o risco de ser presa, encarcerada e perseguida. Criou-se um sistema de vigilância que liga hospitais, médicos e enfermeiras à polícia, de modo que se algo parecer fora do normal durante o procedimento médico a que uma mulher grávida passa, ela corre o risco de ser criminalizada.

Muitos Estados legislaram algo conhecido como leis de proteção fetal. Alguns chegaram ao extremo de dizer que a partir do momento em que você está grávida, pode deduzir a gravidez de seus impostos. É muito importante evitar cair na posição de algumas mulheres na década de 1970, quando as feministas declararam precipitadamente que o direito ao aborto era fundamental para o direito de decidir. Precisamos decidir no âmbito da reprodução. Decidir significa poder ter filhos e poder não tê-los. O verdadeiro controle de nossos corpos é a possibilidade de fazer as duas coisas.

Sobre a questão do punitivismo, penso que este é outro problema fundamental do movimento das mulheres. Durante a primeira fase do feminismo nos Estados Unidos, a resposta à violência contra as mulheres foi exigir penas mais severas [para os agressores]. Está ficando cada vez mais claro que penalidades severas sempre são aplicadas contra pessoas que já são vulneráveis: negros, imigrantes e pessoas já superexpostas ao encarceramento e à brutalidade policial.

Afastar-se do punitivismo é um grande avanço impulsionado pelas mulheres negras, que vivenciaram em primeira mão o efeito das políticas punitivas em suas comunidades. As mulheres negras sempre entenderam o que a polícia faz e o que faz o suposto sistema de justiça. Agora essa consciência está se expandindo, graças a esse trabalho das feministas negras. Agora temos um movimento feminista abolicionista, que luta para abolir cadeias e prisões e acabar com a polícia. Parece-me que a próxima tarefa é construir alternativas, construir formas de justiça baseadas na comunidade.

‘Ni una menos’: Como o 3 de junho se tornou o dia de protesto contra o feminicídio

A Pública conversou com a ativista argentina Lucía Cavallero sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina, por Mariama. Correia.

No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.

Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.

A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.

A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?

O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015. 

A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.

No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?

Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.

Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?

Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas. 

O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.

E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?

As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.

E de gênero também?

Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.

Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil? 

Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil. 

Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.

Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.  

Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?

O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil. 

Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política. 

Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.

Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?

Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.

Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.

Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.

 

Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas. 

Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015? 

Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.

As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.

No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero. 

Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.

Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.

Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?

A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.

Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?

Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.

Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça. 

Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.

Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?

O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região. 

Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.

Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui

Despertar feminista: sobre sonhos e política

Na cidade de Porto Alegre (RS), em 08 de março de 2023 (8M), o dia das mulheres foi marcado por manifestações políticas com ações de visibilidade, resistência, luta contra a violência de gênero e pelos direitos dos corpos femininos. Nessa ocasião, como parte de uma pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) – Eixo 3, foram recolhidos sonhos de mulheres. Entre recortes de sonhos noturnos, muitas delas narraram fragmentos de sonhos diurnos, já outras disseram que não têm tempo para sonhar – questão que, à nossa escuta, é de importante relevância. Afinal, quais futuros são possíveis sem o ensejo de sonhos no presente?

Desde a publicação, em 1900, de A Interpretação dos Sonhos (obra fundadora da psicanálise), Freud sustentou que os sonhos se apresentam fundamentalmente a partir de imagens e que são a realização disfarçada de um desejo reprimido. Ao longo do tempo, esse debate sobre os sonhos e sua relação com a vida psíquica foi tomando novas proporções e, através de um conjunto de pesquisas universitárias sobre os sonhos na atualidade, por volta de 2019 se começou a pensá-los articulando inconsciente, cultura e os acontecimentos do mundo social que trazem a marca da história e de ações políticas.

Resulta dessa produção acadêmica o conceito de oniropolítica, termo que orienta a proposta de pensar a função coletiva do sonho a partir dos restos diurnos que neles se manifestam para interrogar as formas políticas e sociais contemporâneas, bem como para resgatar a dimensão do sujeito e do desejo na vida em vigília.

Dentre os trabalhos já publicados sobre o tema, há o livro “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia”, organizado por Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski, publicado em 2021 pela editora Autêntica. Estas são pesquisas que não se servem apenas da psicanálise e por isso contam com outros campos do conhecimento, como, por exemplo, a teoria de Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão que também se interessou pelo tema do sonho e pela sua dimensão de análise social. 

Nessa perspectiva, o que nos parece mais relevante é a problematização acerca do que os sonhos podem dizer sobre a vida diurna e de como eles podem nos inspirar com saídas inventivas para os impasses de nossa época a partir das demandas que durante o sonho se apresentam. Ou seja, podem os sonhos ser uma tentativa de resposta subjetiva também às questões que vivemos em vigília?

Nas manifestações sociopolíticas do 8M, entre as narrativas oníricas relatadas pelas mulheres, elegemos o relato de uma sonhadora que trouxe fragmentos de vários sonhos: (1.º) “Estava em um aniversário e minha avó, já morta, estava dando conselhos”; (2.º) “Estou fugindo de um perseguidor que é sempre um homem ou policial. O sonho é recorrente e eu consigo fugir porque sou ninja”; (3.º) “Sonho bastante com casas”; e (4.º) “Estou ‘trepando’, seja com homem ou mulher. Devo ter esses sonhos porque faz tempo que não transo”.

Se pensarmos esses fragmentos de sonhos como um saber não consciente sobre os fenômenos sociais de uma época e se considerarmos que eles têm a estrutura de um despertar, tal como propõe Walter Benjamin, como podemos aproximar o tema dos sonhos e o feminismo para então pensar uma perspectiva feminista para a oniropolítica? Os fragmentos dos sonhos de mulheres engajadas em movimentos sociais e políticos nos permitem criar uma outra gramática sobre o lugar dos corpos femininos no laço social contemporâneo? 

Jacques Lacan, psicanalista expoente da obra freudiana, formalizou uma teoria na qual evidenciou que o laço social, ou seja, aquilo que produz enlace entre os sujeitos, é designado como discurso. Nesse sentido, os discursos são aparelhos de linguagem que organizam modos de relacionamento interpessoal – operação que estabelece, por exemplo, lugares de fala, visibilidade, poder e hierarquização, tal como podemos observar no discurso patriarcal ou no discurso colonizador. Em vista disso, se entendermos o feminismo como a invenção política de uma contraexperiência ao discurso dominante ou, ainda, a invenção de outra modalidade de laço social possível por meio da desmontagem da engrenagem patriarcal, como propõe a filósofa feminista Márcia Tiburi, não poderiam os sonhos sinalizar os elementos que desalinham tal engrenagem?

Acerca do relato da sonhadora no 8M e, seguindo a metodologia benjaminiana na qual o sentido do sonho é forjado a partir da construção de uma constelação que aproxima fragmentos oníricos, podemos pensar que, no relato da sonhadora, iluminam-se os seguintes pontos: (1.º) a transmissão geracional de um saber compartilhado entre mulheres; (2.º) o sentimento de insegurança em relação ao corpo masculino ou àquele que representa a instância de lei ou coerção – a mulher ninja que não se deixa capturar; (3.º) a presença do âmbito doméstico como território majoritariamente feminino, historicamente esvaziado de sentido político; e (4.º) a relação sexual para além da heteronormatividade. Não são essas as questões que borbulham no discurso social de nossa época? Não são questões produtoras dos afetos mais ambivalentes na sociedade atual? Afetos que invocam tanto fenômenos totalitários e estruturas de violência quanto convocam a necessidade de novas formas de saber-fazer política, isto é, de fazer valer a alteridade a fim de ser possível a vida com o outro-diferente. 

Neste breve texto que apresentamos aos leitores, buscamos articular a possibilidade de uma política que não apenas aponte para o que não podemos aceitar, mas que possa também nos inspirar com novos caminhos e alternativas. Partindo da psicanálise e da filosofia, optamos por pensar uma oniropolítica feminista, na medida em que ela, ao articular a dimensão do sujeito, do desejo e da política, abre espaço para pensarmos (e, quem sabe, construirmos) outro mundo possível, onde as marcas do patriarcado, do colonialismo e do autoritarismo possam ser transformadas em outras possibilidades de partilha do campo político, mais emancipatórias, de modo que não retornem constantemente na forma de violência.

Cláudia Maria Perrone é professora doutora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS. Coordenadora do NUPPEC/Eixo 3: Psicanálise, Educação, Intervenções Sociopolíticas e Teoria Crítica.
Juliana Martins Costa Rancich é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3.
Flávia Tridapalli Buechler é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3.
Eduardo Bayon Britz tem bacharelado em Ciências Sociais, é psicólogo e mestrando do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisador do NUPPEC/Eixo 3.
Gabriela Gomes da Silva é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC – Eixo 3. 

*O texto foi originalmente publicado no Jornal da Universidade – UFRGS e republicado no Blog da Criação Humana.

As 4 lições de Psicanálise, por Christian Dunker

O professor Christian Dunker foi convidado pelo Instituto Norberto Bobbio para contar 4 lições de psicanálise. A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.

As “Cinco Lições de Psicanálise” constituem um texto com uma reunião de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 -1939) em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts. Nessa conferência, Freud busca apresentar, para um grupo não especializado, os principais conceitos da teoria que desenvolveu neste período. Inspirada por essa ideia, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou no dia 9 de janeiro de 2023, com o Prof. Christian Dunker (USP)  sobre suas próprias lições de psicanálise.

Lição número 1

O texto ” Cinco Lições de Psicanálise” foi a porta de entrada pela qual eu comecei a ler psicanálise. Inclusive, muita gente que estuda esse assunto começou por esse trabalho muito popular. É interessante como ele possui vários ingredientes que falam sobre uma psicanálise para o nosso tempo, à altura da nossa subjetividade. Isso é importante porque há formas de psicanálise anacrônicas, que operam sobre parâmetros definidos no século XIX ou que confirmam preconceitos e moralidades já obsoletas. Mas vamos lembrar que essa conferência aconteceu nos Estados Unidos, então para que Freud pudesse contar suas lições ele saiu de seu lugar natural, a cidade de Vienna. 

Isso é significativo porque, no fundo, Freud precisou falar com o outro em uma língua que não dominava. De fato, ele se sentia meio estranho quando chegou no porto de Boston e se deparou com uma banda tocando para receber o “grande pensador autríaco”. Reza a lenda que ele comentou com Carl Jung e com Sándor Ferenczi: “os americanos estão pensando que vamos salvar o mundo, mas estão enganados. Estamos aqui para trazer algo que vai desmontar e tornar a coisa mais crítica, mais conflitiva”. 

A minha primeira lição está relacionada com esse contexto. Para estudar psicanálise temos que gostar do estrangeiro, do outro e da sua língua. Ou melhor, é preciso falar a língua do outro, ser capaz de simpatizar com  formas de vida diversas e sair de si mesmo. Aquele que acha que vai aumentar o tamanho do seu eu se restringindo a si está agindo errado. Na verdade, essa pessoa vai criar uma espécie de regime. A psicanálise vai te convidar ao encontro com seus outros.

Lição número 2

A segunda lição demonstra a importância da psicanálise no mundo em que vivemos pois, no fundo, ela é uma experiência metódica, controlada, abrigada, protegida de crise auto induzida. Você pode até pensar que está tão bem, mas o processo psicanalítico vai colocar em cheque os seus amores, seus ídolos, suas identificações, suas fantasias e tudo o que você acha a seu respeito. E se tudo der certo, no que você vai se transformar? Em um viajante que não precisa mais de malas e  sacolas, pois não precisa levar consigo tudo para se garantir e se defender do outro na viagem da vida. É importante reduzir essa bagagem, esse conjunto de coisas que a gente carrega nas costas e que cansam a gente: as decepções, frustrações e  expectativas. Entender que essas coisas fazem parte é o que você vai ganhar entrando em crise. 

Mas, de brinde, vem outra facilidade, que é diminuir o custo subjetivo para viver. Assim, podemos nos perguntar: quanto o outro sofre para fazer aquilo que faz tecnicamente tão bem quanto você? Quando o outro se relaciona com algo com uma espécie de andamento opressivo, quando ele se joga em uma situação se demitindo do seu próprio desejo? Tudo isso implica em um custo subjetivo mais alto do que precisaria. E o custo subjetivo já é alto por excelência porque a vida não é exatamente um passeio de flores. Para aquele que é mais neurótico, viver equivale a uma viagem cheia de malas, como se abelhas picassem o tempo inteiro sua cabeça, dizendo: “você é inadequado, você não fez o que deveria, você não está a altura de si mesmo, etc.”. 

Portanto, nessas condições, para continuar caminhando o custo é muito alto. Para ir em frente, o custo subjetivo das suas escolhas, dos seus fracassos e dos seus desencontros é muito alto. A psicanálise, ao criar uma crise controlada, ensina que a gente pode viver em crise; tanta segurança já não é mais necessária. Em geral, todos nós temos nossos temores, que nos chantageiam mais do que é preciso. Costumamos dizer que o neurótico é um pouco covarde, não covarde no sentido heróico, mas consigo próprio porque a vida implica tomadas de decisões que muitas vezes são incertas mesmo. 

Lição número 3

Nas conferências de Freud, em que leciona suas Lições, em um dado momento ele utiliza uma boa metáfora. Ele está em um auditório cheio de gente falando, quando aparece alguém que começa a bater na porta querendo entrar. Essa pessoa começa a fazer perguntas e interromper a todo instante o orador, tornando-se desagradável. O que você faz? Você expulsa ele, põe ele para fora, e lá ele atrapalha ainda mais. São os sintomas. O palestrante é o Eu, os outros são o auditório e esse alienígena representa nossos desejos, aquilo que a gente nega em nós mesmos. 

Nessa metáfora, Freud diz que o neurótico adora um condomínio, ou seja, os lugares onde só tem gente igual a ele. Mas talvez seja melhor admitir esse estrangeiro dentro, talvez seja melhor baixar o muro e abrir as portas porque a conferência pode ser muito mais interessante com a presença do outro. Pelo menos, essa é uma opção melhor do que ficar brigando com aquilo que quer entrar. 

 Ou seja, não expulse pela janela da frente aquilo que vai entrar pela janela de trás. Não ache que a vida é um método pelo qual você vai encontrar ordem. Não é só obedecer para resolver tudo. A psicanálise vai se opor a essa vida feita de espelhos, que sugere que  todo mundo é como você.

 

Lição número 4

Quando chegou nos Estados Unidos, Freud precisou falar a língua do outro. Isso é interessante porque ele tem uma mente muito empática, capaz de utilizar a linguagem para se comunicar. No mundo de hoje a gente desaprendeu a escutar, a escutar aquele que está batendo na nossa porta querendo entrar. Mais ainda, desaprendemos a escutar nós mesmos. 

Então a psicanálise ensina a capacidade de escutar, o que costuma ser um grande negócio para advogados. Todos os advogados precisam escutar seus clientes antes e durante sua estadia na justiça reparatória, na medição ou na arbitragem. É notável como o direito se aproxima de uma prática de escuta de conflito. E se você acha que será possível ter acesso aos conflitos do outro sem jamais interferir nos seus, é melhor que o advogado troque de profissão. Portanto, o trabalho de formação para a escuta é algo que está presente em Freud e, na minha opinião, é  absolutamente faltante e desejável na nossa situação contemporânea.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade, O palhaço e o Psicanalista e Psicanálise e Saúde Mental, disponível aqui.

Não pensem que é preciso ser triste para ser um militante: cartas para uma vida não fascista

foto do livro Modulações militantes por uma vida não fascista no Rio de Janeiro.

Em 1977, Michel Foucault escreveu o prefácio para a edição estadunidense de O Anti-Édipo – livro de Gilles Deleuze e Felix Guattari cuja primeira publicação se deu em 1972 na França. Neste texto, Foucault indica que a obra que prefaciava realizara algo muito importante: a montagem de uma nova maneira de pensar e de viver contrária a todas as formas de fascismo. Não é por outro motivo que o título que dá a seu pequeno texto – em uma estranha homenagem a São Francisco de Sales e sua Introdução à vida devota – é justamente Introdução à vida não fascista.

Ao longo de quatro páginas, acompanhamos a genealogia de um duplo movimento de demarcação de uma certa ética sob a qual se poderia enunciar a verdade sobre si mesmo e sua época. Demarcação de algumas balizas políticas e intelectuais que, na Europa do período entre os anos de 1945 e 1965, pregavam que era preciso ser unha e carne com Karl Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Sigmund Freud e assujeitar a linguagem aos sistemas de signos e significantes; dilatação de um campo experiencial onde já não se podia vislumbrar uma separação entre desejo, subjetividade e política: movimentos que, a partir de 1965, liberaram as lutas políticas do modelo prescrito pela tradição marxista e as tecnologias do desejo das interpretações freudianas. O combate se deslocara e ganhara novas zonas: outras questões, outras políticas, outras modulações militantes.

E é justamente no front desterritorializado desse inédito combate – dessas outras modulações militantes – que o livro de Deleuze e Guattari se viu belamente convocado a existir. Em uma espécie de continuação literária, filosófica e analítica de Maio de 68, O Anti-Édipo enfrentou adversários simultaneamente tão distintos e tão semelhantes entre si, e localizados tão longe e tão perto do ponto de emergência das questões evocadas: os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, os burocratas da revolução, os funcionários da verdade e os lastimáveis técnicos do desejo. Enfrentava, portanto, uma trama menor alastrada pelo campo social em suas mais diversas instâncias.

Mas Foucault não se furta, nessa miscelânea de pequenos adversários, a encontrar o inimigo maior – ou o adversário estratégico – do livro escrito por Deleuze e Guattari: o fascismo. E é preciso dizer – é preciso dizer? – que não se tratava somente do fascismo enorme e localizável como aquele conduzido por Benito Mussolini e Adolf Hitler na Itália e na Alemanha dos anos 1920 e 1930, mas do fascismo molecular: o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora. E é também preciso dizer
– é preciso dizer! – que, se assim é, tal enfrentamento não se dirige tão somente à dita direita, mas também – e talvez especialmente
– aos companheiros e camaradas localizados à esquerda do espectro político. E se desejo, subjetividade e política encontram-se em tensa trama, é no tecido da própria vida que o combate se faz.

Questões muito singulares e cortantes dirigidas mais à esquerda do que à direita aparecem no prefácio escrito por Michel Foucault: “como fazer para não se tornar fascista mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?” É, pois, a partir desta série inusitada e estranha de interrogações – interrogações nada óbvias, interrogações nada
triviais – levantadas à esquerda que algumas insinuações – insinuações nada óbvias, insinuações nada triviais – se montam. E é assim que diz Foucault – ainda e sempre à esquerda: “não imagine que seja preciso ser triste para ser um militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável”.

Maio de 68, França, O Anti-Édipo, 1972, Gilles Deleuze, Felix Guattari, “Introdução à vida não fascista”, Michel Foucault, Estados Unidos da América, 1977: são essas as marcas das passagens das obras mencionadas acima. São marcas que necessariamente impelem à questão da localização política do tempo e do espaço, de uma Europa e dos Estados Unidos de aproximadamente cinquenta anos atrás. E se podemos entender – ou, no mínimo, supor – por que e para quem esse recado era dado naquele espaço-tempo, talvez precisemos nos indagar: as indicações e interrogações supracitadas fariam sentido no Brasil de 2018?

No livro Modulações militantes por uma vida não fascista, escrito pela professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alice De Marchi Pereira de Souza, e publicado pela editora Criação Humana em agosto de 2018, a resposta parece ser afirmativa. Nele, surgem as condições de possibilidade para uma estranha série – como a enciclopédia chinesa de Borges citada por Foucault em As palavras e as coisas – que faz aparecer uma sequência à primeira vista inusitada em suas marcações de espaço e de tempo: maio de 68, França, O Anti-Édipo, 1972,Gilles Deleuze, Felix Guattari, “Introdução à vida não fascista”, Michel Foucault, Estados Unidos da América, 1977, Alice de Marchi Pereira de Souza, Brasil, 2018, Modulações militantes por uma vida não fascista.

Em seu ensaio Por que ler os clássicos?, Italo Calvino defende a tese de que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Diríamos, de outro modo, que um clássico é um livro que ainda não terminou de dizer aquilo que tinha a dizer – o que no Brasil de 2018, a partir do que indica o livro que ora resenhamos, talvez faça tanto de O Anti-Édipo quanto de “Introdução à vida não fascista”, textos ainda clássicos: as forças que os instigaram a existir, no cenário militante francês dos anos 1970, talvez persistam, estranha e tristemente, no jogo do contemporâneo. É assim que, fazendo jus ao nome, as páginas de Modulações militantes para uma vida não fascista montam um campo de problematização que, a partir do Brasil do século XXI, indagam o êthos da militância de esquerda num extenso arco espaço-temporal; nelas ecoa tanto o inacabamento das lutas do passado, tão caras aos autores já mencionados, quanto a candência da problemática militante em nível global, em questões muito próximas às colocadas recentemente pelo coletivo Comitê Invisível, por exemplo. Desse mosaico, o leitor extrai não só pistas preciosas à cartografia das linhas de força do presente, mas também armas para os combates vindouros.

Não é à toa que Alice De Marchi, a partir de sua larga e consistente trajetória de trabalho no campo da esquerda e dos direitos humanos, faz do eco de uma da frases de Michel Foucault no prefácio supracitado uma espécie de charneira para o livro que escreveu. Não à toa, é junto com Deleuze, Guattari, Foucault e Alice que devemos, seguir interrogando a entonação da esquerda que às vezes se esquece de que não é preciso ser triste para ser um militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. Se nossa atenção se dirigir menos às causas que produzem uma interrogação e mais aos efeitos que uma interrogação pode produzir, como essa pergunta simples e afiada como um bisturi, que pode lenta e precisamente convocar a desfazer o vínculo histórico entre tristeza e militância?

Foi, portanto, a partir da experiência de quase uma década de militância no campo da esquerda e dos direitos humanos – em organizações não-governamentais, autarquias, articulações políticas, no trabalho profissionalizado, na informalidade e em movimentos sociais – que algumas posturas e práticas se tornaram uma questão para Alice De Marchi Pereira de Souza. Porque se era nítido que suas práticas se conduziam pela tentativa de resistir à força hegemônica do capitalismo e todas as formas variantes de exploração, opressão e desigualdade social, doravante será um outro exercício de resistência que se acrescentará como exigência para persistir na árdua tarefa de criação do mundo. Porque foi deste lugar, tantas vezes idealizado e imaculado, – e por não poucas vezes – que ela detectou que há também – e muito – a reprodução daquilo mesmo que se quer combater. E é justamente a partir desse diagnóstico experiencial que as perguntas fundamentais do livro se fazem e se refazem: como resistir aos microfascismos e paixões tristes que se alojam em nossos corpos militantes e se manifestam em nossos discursos e práticas? Como intensificar e criar práticas de resistência e invenção atravessadas pela alegria da potência de agir?

Equipada com a leitura de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, mas também montando sua caixa de ferramentas com outros ainda clássicos como Baruch de Espinosa e Friedrich Nietzsche, o livro de Alice lança o olhar sobre os atravessamentos tristes nos processos de subjetivação militantes. Tal visada, todavia, não se presta a derrotismos ou estagnações, a análise se dá como força motriz de diferenciação, sempre na direção da aposta em uma ultrapassagem possível daquilo que nos tornamos. Sem embargo, Alice defende que nessa ontologia histórica de nós mesmos – se podemos de fato dizer que nós mesmos somos, neste caso, a corporificação das forças que atravessam os gestos da militância de esquerda – reside uma pergunta e um trabalho éticos: como lidar com essas linhas que compõem o que temos inventado para nossas existências? Se não queremos tão somente reproduzir as modulações do poder sobre a vida, como dobrá-las na relação consigo e com o mundo? E, portanto e mais importante, como se implicam a invenção de si e do mundo no arriscado jogo militante?

É tomando o plano macro e micropolítico da experiência ou, dito de outro modo, a própria vida como território do processo de inquietação e escrita que uma militante, psicóloga e pesquisadora escreve cartas a uma amiga anônima. Não é demais lembrar que a correspondência foi uma das primeiras formas da escrita de si enquanto prática ascética: um exercício de si para si necessário para aprender a arte de viver. A escrita operava uma transformação da verdade em ética, desempenhando a função de converter discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em atitude. Nessa espécie estranha de escrita de si realizada por Alice, autoria e endereçamento se veem diluídos, problematizando, no arrastão interrogativo que já levava consigo desde o início as militâncias e as esquerdas, uma estética da existência. Por outra, neste jogo metodológico e intensivo das missivas, em que a oralidade penetra a institucionalidade da escrita acadêmica clássica, talvez se faça ver que o problema das militâncias e das esquerdas sempre foi um problema de estética da existência. Ou, num sopro alvissareiro, que o problema das militâncias e das esquerdas poderia ser também um problema de estética da existência: escrever para desviar – desviar a si mesma e ao mundo.

E são, de fato, essas as questões que atravessam as vinte e uma cartas – além de uma breve introdução e de um desfecho – que compõem o livro Modulações militantes para uma vida não fascista. Nesse estilo movente e dialógico de work in progress, a primeira carta anuncia a dificuldade de escrita – e é justamente enfrentando a dificuldade de escrever que a escrita se faz, ecoando a célebre formulação deleuziana segundo a qual só escrevemos no limiar entre nosso saber e nossa ignorância, operando passagens incessantes entre um e outro; o que talvez também signifique dizer que é enfrentando a dificuldade de se fazer a si mesmo que o si mesmo se faz. Enfrentar a dificuldade de se fazer a si mesma – de se forjar nesse campo histórico e duro das militâncias de esquerda – é, portanto, todo o trabalho instaurado nesse jogo dialógico que se opera nas cartas que montam o fio narrativo e problemático do livro.

Assim, sob a árdua tarefa de escrita e transformação de si, o território da micropolítica foi o que mais interessou à Alice De Marchi, que identifica a esquerda muito mais ao campo dos afetos e das experimentações do que a um quadro macropolítico formal. Doravante, portanto, a posição de esquerda não poderia ser identificada ou limitada como a disputa pelo centro do poder de Estado, mas como um modo de vida. Ser de esquerda é disputar territórios existenciais e subjetividades. Trata-se, portanto, de manter o estranhamento – o que Alice chama de um agonismo micropolítico – que produza desprendimentos do que se deve ser e conexões com o que se pode ser: uma ética militante da potência molecular. Se essa é uma arte de viver, resta a pergunta: como sermos artesãos de nós mesmos e do mundo de maneira ativa e não reativa? E se essa pergunta se justifica, ela traz consigo outra interrogação: como não nos assujeitarmos, submissos, tristes e impotentes, ao poder ou desejo de outrem, e subverter isso de forma a urdir uma arte de agir de tal modo a abrir um campo de experimentações sem recair na ingenuidade?

É claro que tais interrogações são feitas por alguém que se recusa a sair da esquerda e da defesa dos direitos humanos, mas que, nesta localização, recusa-se também a recair nos endurecimentos e entristecimentos do próprio campo ao qual não se furta a pertencer. Manter-se no campo interrogando-o faz com que o trabalho acompanhe, numa mescla de memórias, trechos de diários de campo, sonhos e acontecimentos que se davam na medida em que o texto era confeccionado, passagens desta curiosa experiência paradoxal de permanência e crítica. Narrar o trajeto, fazendo da escrita gesto cartográfico e movente, é, portanto, aquilo que conecta as cartas de uma amiga a outra. Passagens de reuniões de trabalho, de atos, de grandes manifestações, fricções e lanhados na relação entre o trabalho acadêmico e a militância. Tudo se torna matéria-prima para a afirmação interrogativa do campo da esquerda e dos direitos humanos, num gesto muito próximo ao que, já no final de sua vida, Michel Foucault chamou de cuidado de si.

Se onde há poder há resistência, há de se fazer valer um ponto de resistência política fundamental, situado na relação de si para consigo, a tarefa urgente de construir uma ética de si. Entre política e ética, cuidar de si é ocupar-se consigo, cuidar de si é problematizar a si mesmo. E é nesse gesto entendido por Alice como um convite amoroso à esquerda que reemergem as forças revoltosas e indignadas, os afetos que podem constituir a potência de agir quando ligados a uma alegria potente e política. Assim, uma experiência de esquerda vinculada a tal postura ética estará umedecida pela e na experiência, sem separar o que se pensa do modo como se vive. Atitude jamais estanque, sempre em vias de modificação. Atitude de esquerda, atitude militante para uma vida não fascista – modulações militantes mais libertárias, alegres, ásperas e potentes.

O mesmo Michel Foucault que empresta a provocação que serve de mantra ao livro – “não pense que é preciso ser triste para ser
militante” – declarara, certa feita, que em sua caneta existia uma velha herança do bisturi. Assim, a constelação epistolar montada pela escrita de Alice tem uma estranha coesão: é quando estamos aptos a saber que na verdade a suposta amiga com quem trocava cartas era ela mesma, em um trabalho de inquietação e agonística de si, tornamo-nos aptos também a ver a clareza problemática que tantas vezes só pode ser vislumbrada na confusão. Confusão que coloca na mesma imagem onírica os tantos tempos e locais em que a questão da militância se fez presente, fazendo tocarem-se corpos que nunca se viram, ladearem-se espaços mais distantes do que as bordas do Atlântico, sobreporem-se tempos que a cronologia pulsada da história jamais conseguirá sincronizar, mas que, sob a questão que interroga o fascismo da própria militância, aparecem tocados, ladeados e sobrepostos como num campo de batalha ainda e sempre em disputa. Nesse jogo de corte, montagem e escrita de si, vislumbramos em cada carta o impessoal e o intempestivo de uma militância pouco afeita a modelos e prescrições morais: o bisturi da autora, lenta e precisamente, cinde a história, a época e o próprio si, convocando o leitor a indagar e experimentar, ainda e sempre, a necessária tarefa de inventar a si mesmo, ao mundo e às infindas maneiras de disputar os sentidos da experiência da militância. É assim que Alice termina o livro e é assim que, com ela, com os que tombaram e com os que ainda virão, seguimos na luta: “Estava numa manifestação de rua, mas não fica bem nítido onde. Está com muita gente conhecida: amigos, namorado, algumas pessoas da família. Sua orientadora, de silhueta inconfundível, está bem ao lado, mas não grudada: mantém um espaço ótimo, seu caminhar tranquilo e confiante. Há outras silhuetas junto dela, que por ora não se vê a quem pertencem. (…) Chega-se a uma esquina e avista-se o Champs de Mars, a Torre Eiffel a perfurar o céu cinzento, milhares que dela se aproximam; seria 13 de maio, em 1968? Espere: mas aquilo ali não é uma barricada da Commune de 1871? Dobra-se a esquina e de repente se está em Barcelona, em plena guerra civil na década de 1930. (…) Olhando-se à frente, a paisagem muda completamente: avista-se a Cinelândia, a avenida Rio Branco com carros de som rodeados de bandeiras rubras, outras pretas, alguma confusão; era o Rio de Janeiro em 2013? Avista, no alto de um deles, Mao Tsé Tung. Alain Badiou e Zizek estavam ao lado. Estavam perto professores conhecidos. Há uma situação estranha, de instabilidade: não se consegue saber o que é – um desvio? Uma rota interrompida? Uma tensão entre grupos? Não há polícia. Parece haver uma ação para acontecer. É um grupo de libertários (…) Chega a se cogitar uma bomba, mas parece também uma performance artística. Parece haver fogo em algum lugar. Os que estão no alto do carro de som começam a ordenar que a multidão não entre na rua a que se estava rumando: não se entende exatamente as palavras que dizem, mas o tom é esse. Estão assustados. No grupo onde a militante-pesquisadora-psicóloga está há uma movimentação – só aí consegue distinguir Michel Foucault junto da orientadora e dos outros, seus amigos. Um grupo se afasta, parece mesmo investir num ato terrorista. Outro grupo recua, parece temer aquilo tudo. Ela, aquele grupo, ficam ali: em meio à alegria e ao perigo. Ela acorda” (pp. 326-327).

Resenha de Danichi Hausen Mizoguchi* e Gabriel Lacerda de Resende** em formato de artigo para a revista Ecopolítica.

*Professor do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Psicologia da UFF. Contato: [email protected] Lacerda de Resende

**Professor do curso de Psicologia da Faculdade Maria Thereza (Niterói/RJ). Mestre e doutor em Psicologia pela UFF. Contato: [email protected].

Referências bibliográficas
CALVINO, I. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. FOUCAULT, M. “Prefácio (AntiÉdipo: introdução à vida não-facista)”.
In: MOTTA, Manoel Barros de (org). Repensar a Política / Ditos e Escritos VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, pp. 103-106.